ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo de Revisao - Ano 2024 - Volume 14 - Número 2

Associação entre exposição a telas na infância e obesidade pediátrica: uma revisão de literatura

Association between childhood screen exposure and pediatric obesity: a literature review

RESUMO

INTRODUÇÃO: Grande parte das crianças são expostas a telas e mídias digitais de modo precoce e por um tempo maior que o recomendado pelas sociedades científicas. Esse fenômeno traz várias consequências danosas para a saúde e para o desenvolvimento infantil. A obesidade pediátrica tem se destacado como um desses efeitos, podendo relacionar-se à exposição a telas enquanto comportamento sedentário.
OBJETIVOS: Buscar e descrever as evidências presentes na literatura sobre a relação entre obesidade pediátrica e exposição a telas na infância.
METODOLOGIA: Foi realizada uma revisão não sistemática da literatura incluindo artigos publicados no período entre 2018 e 2022 nas seguintes bases de dados: Cochrane, PubMed, SciELO e LILACS. Foram utilizados os termos “tempo de tela” e “obesidade pediátrica” como descritores.
RESULTADOS: Foram encontradas associações entre o tempo de exposição a telas e o aumento da circunferência abdominal, do índice de massa corporal (IMC) e do estágio de obesidade infantil. Além disso, o uso de telas mediou a relação positiva entre obesidade e condição social do bairro de moradia das crianças, bem como a relação entre obesidade e asma. Conclusão: A maioria dos estudos avaliados demonstrou uma associação positiva entre o uso de telas por crianças e a ocorrência de obesidade na pediatria.

Palavras-chave: Obesidade pediátrica, Tempo de tela, Estilo de vida, Comportamento sedentário.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Most children are exposed to screens and digital media early and for a longer period than recommended by scientific societies. This phenomenon has several harmful consequences for the health and development of children. Pediatric obesity has been highlighted as one of these effects, which may be related to exposure to screens as a sedentary behavior.
OBJECTIVES: To search for and describe the evidence in the literature on the relationship between pediatric obesity and exposure to screens in childhood.
METHODOLOGY: A non-systematic literature review was performed including articles published between 2018 and 2022 in the following databases: Cochrane, PubMed, Scielo and Lilacs. The terms “screen time” and “pediatric obesity” were used as descriptors.
RESULTS: Associations were found between screen exposure time and increased waist circumference, body mass index (BMI) and childhood obesity stage. In addition, the use of screens mediated the positive relationship between obesity and the social status of the childrens neighborhood, as well as the relationship between obesity and asthma.
CONCLUSION: Most of the evaluated studies demonstrated a positive association between the use of screens by children and the occurrence of obesity in pediatrics.

Keywords: Pediatric obesity, Screen time, life style, Sedentary behavior.


INTRODUÇÃO

A exposição a telas na infância tem ganhado grande importância em nosso meio. Em parte, isso ocorre pela alta prevalência do uso de telas por crianças de todas as faixas etárias. Uma pesquisa realizada no Brasil, em 2018, revelou que 86% das crianças com idade entre 9 e 16 anos estavam conectadas à internet1. Em 2021, Arantes e de-Morais (2022)2 publicaram um estudo realizado no Distrito Federal no qual foi observado que todas as crianças participantes, entre zero e seis anos de idade, faziam uso diário de dispositivos de mídia.

Outro aspecto importante do uso de telas na infância é o excesso de horas nas quais as crianças passam utilizando os mais diversos dispositivos de mídia. As principais sociedades de especialistas concordam que, em faixas etárias mais avançadas, da idade escolar à adolescência, o tempo diário de uso de telas não ultrapasse duas horas diárias1,3. Apesar disso, dados dos Estados Unidos demonstraram que apenas 32% dos jovens relatam cumprir um tempo inferior a duas horas por dia de uso de telas4. No Brasil, estudo publicado em 2022 revelou que 87,3% das crianças participantes, com idade menor que seis anos, faziam uso de telas por tempo superior a 1 hora diária, o que excede as recomendações nacionais2.

Todos esses fatores em conjunto trazem malefícios à saúde e ao desenvolvimento infantil, como vem sendo demonstrado em trabalhos recentes. Estudo brasileiro de revisão, publicado em 2022, descreveu prejuízos importantes no neurodesenvolvimento, tais como: déficit cognitivo, dificuldades comportamentais e na linguagem, além de problemas emocionais5. Outros efeitos deletérios na saúde infantil incluem diminuição da duração e da qualidade do sono, hipertensão arterial, redução do HDL (high density lipoproteins), fadiga ocular, menor densidade mineral óssea, postura inadequada, comportamento relacionado ao transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e dependência de mídias digitais6,7.

Em paralelo a esse fenômeno de disseminação do uso de telas na infância, há uma epidemia mundial de obesidade infantil, refletida também no território nacional. Dados divulgados em 2019 pela Federação Mundial de Obesidade revelaram que havia a estimativa de 124 milhões de crianças e adolescentes obesos no mundo, com uma projeção de aumento do número para 250 milhões até o ano de 2030, caso não fossem instituídas medidas substanciais de intervenção8. No Brasil, os estudos realizados demonstraram que há variação na prevalência da obesidade infantil a depender da região estudada, estimada entre 10,4% e 28,8% na faixa etária de 2 a 19 anos9.

Além de sua alta prevalência, a obesidade infantil torna-se importante ainda devido à série de implicações negativas na saúde das crianças. Dentre elas, podemos citar as seguintes: desregulação da glicose, hipertensão arterial, dislipidemia, síndrome metabólica, doença hepática gordurosa não alcoólica, síndrome dos ovários policísticos, apneia do sono, dor musculoesquelética, doença do refluxo gastroesofágico, transtornos psiquiátricos e dificuldades de aprendizagem10.

Enquanto condição de saúde adquirida, a obesidade é resultado do desequilíbrio entre o consumo e o gasto energético, podendo ser influenciada pelo estilo de vida do paciente11. Sendo a exposição a telas considerada um comportamento sedentário, ela pode interferir nesse balanço energético, através da diminuição do gasto. Assim, percebe-se uma relação entre a obesidade e a exposição a telas na infância12. Essa associação foi objeto de estudo de várias publicações, que buscaram identificar e registrar a presença da relação entre as duas entidades, além de elucidar seus potenciais mecanismos mediadores.

Diante do exposto, e visando estabelecer subsídios para o estímulo à prevenção tanto da obesidade infantil quanto da exposição a telas na infância, a presente revisão tem por objetivo buscar e descrever as evidências presentes na literatura sobre a relação entre exposição de crianças a telas e obesidade.


METODOLOGIA

Foi realizada uma revisão simples e não sistemática da literatura, com busca abrangente por artigos científicos, nas seguintes bases de dados: Cochrane, PubMed, SciELO e LILACS. Os descritores, baseados no DeCS (Descritores em Ciências da Saúde), usados na busca foram “tempo de tela” e “obesidade pediátrica”, combinados através do operador booleano “e”, bem como seus correspondentes na língua inglesa (“screen time” e “pediatric obesity”), combinados através do operador booleano “and”. Foram selecionados os estudos publicados nos últimos cinco anos (2018 a 2022), em inglês, português e espanhol, que relacionavam o tempo de tela com a obesidade pediátrica.

Foram encontrados, ao todo, 141 publicações. Após leitura do título e resumo, foram excluídas as publicações que descreviam estudos ainda em realização ou que não relacionavam o tempo de tela com a obesidade infantil, amostras compostas por participantes adultos, consensos, revisões, posicionamento de sociedades científicas e diretrizes, bem como os estudos duplicados, restando 10 artigos científicos.


RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os artigos selecionados estão sumariamente descritos no Quadro 1. A seguir, discutiremos os resultados com base nos critérios estudados em cada artigo.




Tempo de tela como mediador do efeito de intervenções para prevenção e tratamento da obesidade infantil

Um estudo realizado na Noruega, publicado em 2022, avaliou os fatores que poderiam estar envolvidos nos resultados de um programa de intervenção que visava a diminuição do IMC (índice de massa corporal) em crianças obesas entre 6 e 12 anos de idade. Houve um maior aumento da circunferência da cintura ao fim de dois anos de acompanhamento nas crianças com maior tempo de tela. Porém, o tempo de tela não foi associado de forma estatisticamente significativa com os valores de IMC13. Apesar de não haver relação com o IMC, a associação do tempo de tela com a circunferência abdominal é importante na obesidade, pois essa medida é utilizada para avaliação da gordura visceral, e quando alterada, indica risco de adiposidade central23.

Outro programa de intervenção, chamado Time2bHealthy, também serviu de base para estudar os possíveis fatores mediadores da diminuição do IMC. Esse programa era focado na prevenção da obesidade infantil, através da mudança de estilo de vida. Na Austrália, foram acompanhados e estudados 88 pré-escolares, sendo verificado que houve uma melhora do IMC no grupo que participou da intervenção. Porém, de acordo com os resultados, concluiu-se que o tempo de tela não foi considerado um mediador dessa melhora no IMC das crianças18.

Neshteruk et al. (2021)20 conduziram um estudo longitudinal realizado com 252 crianças de dois a cinco anos, participantes de um ensaio randomizado focado na prevenção da obesidade infantil. Ao fim do acompanhamento de 59 semanas, foi visto que a atitude dos pais em utilizar a exposição a telas como recompensa na educação dos filhos relacionou-se com aumento do escore Z do IMC da criança. Por outro lado, as crianças cujos pais limitaram e/ou monitoraram o tempo de tela tiveram menor circunferência da cintura e diminuição do escore Z do IMC20.

Função do tempo de tela como mediador da ação de outros fatores na obesidade infantil

Em 2020, Saelee et al. (2020)15 publicaram um estudo no qual foi avaliada a influência de alguns mediadores (dentre eles, o tempo de tela) da associação entre obesidade infantil e o status econômico e desorganização social do bairro de moradia das crianças. Eles concluíram que um tempo de tela maior que duas horas diárias mediou a relação entre obesidade e status socioeconômico do bairro. Além disso, o fato de assistir televisão foi correlacionado com obesidade15.

Papel da exposição a telas na associação entre obesidade infantil e outras doenças

A asma é uma doença muito importante na faixa etária pediátrica, pela sua prevalência e morbidade. Pesquisa chinesa com 16.837 crianças entre 6 e 12 anos de idade identificou que aquelas que tinham asma possuíam risco maior de obesidade. Esse risco foi ainda maior nas crianças asmáticas que praticavam atividade física moderada a vigorosa por um período menor que 60 minutos por dia e nas que utilizavam telas por um tempo maior que duas horas diárias14.

Relação entre exposição a telas e diferentes graus de obesidade infantil

Para definir diferentes níveis de gravidade da obesidade, com base nas complicações decorrentes da doença, foi criado o Sistema Edmonton de Estadiamento da Obesidade em Pediatria (EOSS-P)10. Tomando por base esse sistema de estadiamento, foram avaliadas e classificadas 361 crianças, na Grécia, com idade entre 2 e 14 anos, sendo mensuradas também nessa população algumas variáveis de estilo de vida e sua relação com os diferentes graus de obesidade encontrados.

O tempo de tela foi uma dessas variáveis estudadas, sendo que os resultados demonstraram associação positiva do tempo de tela com a obesidade, bem como com um aumento nos estágios de gravidade da obesidade de acordo com o EOSS-P16.

Outro estudo que associou tempo de tela com a gravidade da obesidade foi realizado com adolescentes obesos, de 11 a 17 anos de idade. Nessa pesquisa, foi avaliado especificamente o tempo gasto em jogos eletrônicos. Foi visto que havia uma relação gradual entre o tempo de jogos e a obesidade grave (classe 3), sendo que os adolescentes que jogavam por mais de quatro horas diárias tiveram 1,94 vezes mais chances de ter obesidade grave em comparação com os jovens que jogavam menos que quatro horas por dia17.

Relação direta entre tempo de tela e obesidade infantil

Estudo transversal realizado em Omã avaliou a relação entre os escores Z do IMC de crianças com algumas variáveis de estilo de vida. A pesquisa foi feita com crianças selecionadas em escolas públicas e centros comunitários, contando com uma amostra de 197 crianças com idade entre 6 e 10 anos de idade. Os resultados indicaram que não havia relação significativa entre os escores Z do IMC com o tempo de tela. Vale ressaltar que aproximadamente 80% das crianças participantes da pesquisa relataram um tempo diário de exposição a telas menor que 120 minutos19.

Outro estudo transversal, dessa vez realizado com 681 meninas moradoras de uma cidade da Arábia Saudita, buscou descrever a associação entre comportamentos relativos ao uso de telas e o valor do IMC. Os resultados evidenciaram que não houve relação estatisticamente significativa entre o aumento do IMC e o tempo de uso de dispositivos eletrônicos. O IMC elevado foi associado apenas com um tipo de aparelho específico, a televisão21.

Bejarano et al. (2022)22 realizaram uma pesquisa nos Estados Unidos com mais de 320.000 crianças, buscando associar a obesidade com o seguimento às diretrizes recomendadas para tempo de atividade física, de sono e de tela. Foi visto que as crianças que se encontravam dentro das faixas de peso consideradas saudáveis tiveram maior prevalência de obedecer às diretrizes, quando comparadas com crianças com peso não saudável22.


CONCLUSÃO

A maioria dos estudos que avaliaram a relação entre o uso de telas na infância com medidas antropométricas que indicam obesidade demonstraram que há uma relação positiva entre o tempo de tela e a obesidade infantil.

No entanto, algumas pesquisas ainda indicaram resultados conflitantes. Mas vale ressaltar que os dois estudos, incluídos nesta revisão, que não identificaram uma relação entre o uso de telas e a obesidade pediátrica foram pesquisas de caráter transversal com algumas limitações metodológicas, como tamanho pequeno da amostra e avaliação de grupos muito específicos. Isso pode limitar a validade externa dos resultados.

Ademais, novas pesquisas são necessárias para determinar a influência individual do tempo de tela na prevenção e tratamento da obesidade infantil. Ainda é difícil mensurar seu efeito, visto que geralmente a exposição a telas além do recomendado pelas sociedades científicas está associada a outros comportamentos de estilo de vida que também influenciam na obesidade infantil, como o tempo insuficiente de realização de atividade física, baixa qualidade ou quantidade de horas diárias de sono e consumo de alimentos hipercalóricos, processados ou ultraprocessados. Além disso, a alta prevalência de crianças com tempo de tela excessivo, tanto entre obesas quanto entre aquelas com peso saudável, é um fator limitante que dificulta a avaliação da exposição a telas enquanto fator de risco para obesidade.

Por fim, ressaltamos que a exposição excessiva a telas é um assunto de extrema importância, fazendo-se necessário que o pediatra esteja atento a sua alta prevalência e suas consequências danosas para a saúde da criança, incluindo a obesidade infantil. Com base nessas informações, o pediatra deve orientar as famílias sobre o tema, a fim de conscientizar os pais e diminuir o tempo de tela das crianças sob seus cuidados.


REFERÊNCIAS

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23. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Departamento de Nutrologia. Obesidade na infância e adolescência: Manual de Orientação. 3ª ed. São Paulo: SBP; 2019.










1. Universidade Federal da Paraíba, Residência Médica em Pediatria - João Pessoa - Paraíba - Brasil
2. Hospital Universitário Lauro Wanderley, Pediatria - João Pessoa - Paraíba - Brasil

Endereço para correspondência:

Liliane Coelho Vieira
Universidade Federal da Paraíba
Cidade Universitária, s/n - Conj. Pres. Castelo Branco III
João Pessoa/PB - CEP 58051-900
E-mail: liliane.ppl@gmail.com

Data de Submissão: 24/02/2023
Data de Aprovação: 29/03/2023