ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 2

Exacerbação pulmonar de fibrose cística por Brevibacterium sp. em criança: relato de caso e revisão de literatura

Pulmonary exacerbation of cistic fibrosis by Brevibacterium sp. in a child: case report and literature review

RESUMO

A fibrose cística (FC) é uma doença autossômica recessiva que afeta principalmente o sistema respiratório, resultando em infecções crônicas e deterioração da função pulmonar, além de comumente afetar o sistema digestivo e o pâncreas. Neste relato de caso, descrevemos uma criança do sexo feminino de 8 anos com FC, colonizada por Pseudomonas aeruginosa, que desenvolveu exacerbação pulmonar não responsiva ao tratamento empírico inicial de amplo espectro direcionado contra os agentes de colonização prévia. Brevibacterium sp. foi detectado em cultura de lavado broncoalveolar coletada em broncoscopia. O esquema antimicrobiano foi mudado para meropenem e amicacina com melhora clínica e radiológica após 23 dias de tratamento, recebendo alta após 30 dias de internação para seguimento ambulatorial. É fundamental que os profissionais de saúde considerem a possibilidade de germes atípicos em casos de exacerbação pulmonar em pacientes com fibrose cística, principalmente em crianças sem resposta clínica inicial ao tratamento instituído empírico de amplo espectro.

Palavras-chave: Criança, Fibrose Cística, Brevibacterium, Broncopneumonia.

ABSTRACT

Cystic fibrosis (CF) is an autosomal recessive disease that usually affects the respiratory tract causing recurrent infections and deterioration of lung function. Other organs such as the digestive system and pancreas are also affected. In this report, we describe an 8-year girl with CF, previously colonized with Pseudomonas aeruginosa that developed pulmonary exacerbation not responsive to empiric treatment of broad spectrum antibiotics directed against prior colonization. Brevibacterium sp. was detected in culture of bronchoalveolar lavage during bronchoscopy. Antimicrobial treatment was changed to vancomycin, meropenem, amikacin and ciprofloxacin with clinical, laboratorial and radiologic improvement after 23 days of treatment. Patient received discharge 30 days after admission for ambulatory follow-up. Its important that healthcare workers consider the possibility of atypical agents causing pulmonary exacerbation in patients with cystic fibrosis, mainly in children with initial failure of empiric treatment.

Keywords: Child, Cystic fibrosis, Brevibacterium, Bronchopneumonia.


INTRODUÇÃO

A fibrose cística (FC) é uma doença autossômica recessiva que afeta principalmente o sistema respiratório, resultando em infecções crônicas e deterioração da função pulmonar, além de comumente afetar o sistema digestivo e o pâncreas1.

As exacerbações pulmonares em crianças com FC são importantes causas de morbidade e de mortalidade, sendo os agentes causadores mais comuns o Staphylococcus aureus (resistentes ou não à oxacilina) e Pseudomonas aeruginosa2. Em virtude da dificuldade do clearance adequado de secreções respiratórias, microrganismos incomuns e oportunistas têm sido relatados como causa de infecções respiratórias, particularmente infecções respiratórias do trato respiratório inferior3,4.

O Gênero Brevibacterium, da família Brevibacteriaceae, é formado por bactérias Gram-positivas, com forma de bastonetes curtos e não ramificados, não formadoras de esporos, com crescimento aeróbico, encontradas na pele humana, leite cru e fontes animais5.

Há alguns relatos na literatura de infecção por Brevibacterium na forma de bacteremia, sepse, endocardite em pacientes imunossuprimidos e, até mesmo, sepse em imunocompetentes6-9. O principal fator de risco da infecção é a imunossupressão e a principal causa é a infecção hospitalar pela via de um cateter6,9,10. Considerando os recentes relatos desse agente oportunista, o objetivo deste trabalho é relatar o caso de uma pneumonia por Brevibacterium sp., patógeno emergente e oportunista que deve ser considerado em pacientes com fibrose cística.


RELATO DE CASO

A.J.M.S., sexo feminino, 8 anos, 18,4 kg, com diagnóstico de fibrose cística e colonizada por Pseudomonas aeruginosa e enterobactéria produtora de beta-lactamase de espectro estendido (ESBL), foi internada em unidade hospitalar localizada na Baixada fluminense, Rio de Janeiro, com quadro de taquipneia e dificuldade respiratória. Foi diagnosticada com exacerbação pulmonar na unidade de origem, através de exame físico e radiografia de tórax, sendo iniciado tratamento com cefepime 150 mg/kg/dia. Após 17 dias de tratamento, apresentou piora do quadro respiratório e manutenção da atelectasia. Em função da persistência dos sintomas e não melhora clínica, foi transferida para outra unidade hospitalar localizada no município do Rio de Janeiro para realização de broncoscopia.

Na admissão na nova unidade, paciente apresentava-se hipocorada (+/4+), roncos no aparelho respiratório e estertores crepitantes esparsos bilateralmente. A radiografia de tórax mostrou hipotransparência à base do hemitórax direito com desvio para a direita (Figura 1). A tomografia computadorizada demonstrou redução do volume do pulmão direito, mediastino e traqueia com desvio para a direita, atelectasia do lobo inferior direito com espessamento intersticial bilateral com predominância direita e áreas de atenuação em vidro fosco à esquerda (Figura 2).


Figura 1. Radiografia de tórax na admissão da paciente, 9/9/2022.




Figura 2. Tomografia computadorizada de tórax da admissão, 9/9/2022.



Hemograma com leucócitos de 14.200/mm3 e 4 bastões, PCR de 0,9 mg/dl (VR <1,0 mg/dl). Hemocultura negativa e swab retal de rastreio da entrada confirmou colonização por Escherichia coli ESBL. Paciente necessitou de ventilação não invasiva através de máscara facial por 21 dias, nebulização com alfadornase de 12/12 horas, salina hipertônica, salbutamol, salmeterol+flucatisona, acetilcisteína e fisioterapia respiratória intensiva com 3 períodos ao dia. A paciente foi submetida à broncoscopia cinco dias após a admissão que evidenciou traqueia com sinais de inflamação, hiperemia acentuada e edema, associada à secreção purulenta espessa abundante e difusa. No momento da broncoscopia, foi coletada amostra de secreção brônquica para realização de cultura, que foi positiva para Brevibacterium sp. O germe não possui antibiograma padronizado pelo BrCAST, que é o órgão recomendado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para normas de interpretação para os testes de sensibilidade aos antimicrobianos (TSA), conforme Portaria nº 64, de 11 de dezembro de 2018, do Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde11. Não houve relato de isolamento do mesmo germe em outras crianças no mesmo mês da realização do exame e nem nas amostras de ambiente que são realizadas rotineiramente no setor. Adicionalmente também não foram relatadas contaminações do equipamento de broncoscopia pela checagem sistemática do reprocessamento do material e nem isolamento do agente em outras crianças submetidas a broncoscopias.

No sexto dia de internação, a paciente apresentou febre, piora dos indicadores laboratoriais e atelectasia importante na radiografia de tórax. Após discussão com a equipe de infectologia, o esquema antimicrobiano foi trocado para meropenem, vancomicina, ciprofloxacin e amicacina. No segundo dia de administração, a vancomicina necessitou ser suspensa em virtude de reação alérgica significativa, porém com retorno do tratamento no mesmo dia após pré-medicação com corticoide sistêmico. Recebeu no total 15 dias de meropenem e amicacina, 19 dias de vancomicina e 17 dias de ciprofloxacin. Paciente evoluiu satisfatoriamente com melhora clínica, laboratorial e radiológica com controle de tomografia de tórax realizada 29 dias após a internação e 23 dias de tratamento antibiótico, houve melhora clínica e radiológica significativas, porém ainda com atelectasia em base direita e bronquiectasias (Figura 3). Paciente recebeu alta após 30 dias de internação, com seguimento ambulatorial com equipe assistente. Infelizmente não foi possível realizar a espirometria durante a internação.


Figura 3. Tomografia computadorizada de tórax realizada após 23 dias de tratamento antibiótico.



DISCUSSÃO

Brevibacterium é um gênero de bactérias Gram-positivas que é comumente encontrado no solo, água e em produtos lácteos, como queijo6. Essas bactérias eram consideradas não patogênicas e não causavam doenças em seres humanos saudáveis6. Até o presente momento, foram encontradas cerca de 50 espécies, sendo que 9 delas foram isoladas em humanos12. No entanto, em pacientes imunocomprometidos, em doenças como fibrose cística e AIDS, o Brevibacterium pode causar infecções e, como apresentado neste relato, até infecções respiratórias5,8. Além disso, há um relato de infecção em paciente imunocompetente, comprovando a necessidade de vigilância e atenção quanto a este patógeno9.

Apesar do relato do isolamento do Brevibacterium casei em superfícies hospitalares, em unidade de atendimento a pacientes adultos com fibrose cística, não há nenhum relato de situação semelhante em crianças. Além disso, no nosso caso, não houve isolamento do agente em nenhum equipamento, amostra de ambiente, no equipamento ou em paciente no mesmo período, o que descarta a possibilidade de contaminação ambiental13.

No nosso caso, em virtude da falência de tratamento inicial empírico de amplo espectro, em outra instituição, direcionado contra os germes Gram-negativos que previamente a colonizaram, foi necessário ampliar a investigação diagnóstica com a realização de broncoscopia diagnóstica e terapêutica. Considerando o contexto clínico do paciente com falha terapêutica e piora clínica evidente, o germe isolado foi considerado como patogênico e iniciado tratamento, com excelente resposta clínica.

Até o presente momento, há poucos relatos de casos de infecção por Brevibacterium em crianças. Neumeister et al. (1993)14 relataram um caso de osteomielite de esterno causado por Brevibacterium sp. em uma criança de 4 meses com tratamento bem-sucedido com cefazolina e oxacilina. Castagnola et al. (1997)15 descreveram uma série de casos de bacteremias por germes não usuais relacionadas a cateteres venosos de Broviac na Itália, sendo isolado Brevibacterium casei em hemocultura em uma criança com neuroblastoma. Mais recentemente, Bal et al. (2015)10 reportaram um caso de infecção de corrente sanguínea relacionada a cateter venoso em criança de 6 anos com leucemia aguda. Ao nosso conhecimento, trata-se do primeiro relato na literatura de pneumonia por Brevibacterium sp. em crianças.

O tratamento específico dos casos de infecções por Brevibacterium não é padronizado na literatura e nos trabalhos previamente publicados são relatadas combinação de múltiplos antibióticos, especialmente glicopeptídeos, quinolonas e remoção de cateteres10, sendo a vancomicina um dos medicamentos mais comuns9,10,12. Considerando os relatos de casos anteriores, optamos por associar vancomicina ao meropenem, amicacina e ciprofloxacin, antibióticos de amplo espectro contra germes Gram-negativos, o que se mostrou efetivo na melhora clínica e radiológica da paciente. Além disso, não foram encontrados casos de pneumonia descritos na literatura, por isso, não há um tratamento padronizado para pneumonia por Brevibacterium.

Deve-se levar em consideração que o acompanhamento multiprofissional e o tratamento adequado são fundamentais para melhorar a qualidade de vida dos pacientes com FC. A paciente necessitou de apoio da fisioterapia e da nutrição devido ao acometimento da doença de base.


CONCLUSÃO

Apresentamos um caso de tratamento bem-sucedido de uma criança com fibrose cística diagnosticada com exacerbação pulmonar causada por Brevibacterium sp. e tratada com meropenem e amicacina. É fundamental que os profissionais de saúde considerem a possibilidade de germes atípicos em casos de exacerbação pulmonar em pacientes com fibrose cística, principalmente nos casos em que não houve resposta clínica inicial ao tratamento instituído empírico de amplo espectro.


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1. Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Medicina - Niterói - Rio de Janeiro - Brasil
2. Hospital Prontobaby - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
3. Faculdade de Medicina, Universidade Federal Fluminense, Departamento Materno-infantil - Niterói - Rio de Janeiro - Brasil
4. Grupo Prontobaby, Comissão de Controle de Infecção Hospitalar - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:

Davi Shunji Yahiro
Universidade Federal Fluminense
R. Des. Athayde Parreiras, 100 - Fátima
Niterói/RJ- CEP 24070-090
E-mail: daviyahiro@id.uff.br

Data de Submissão: 09/03/2023
Data de Aprovação: 26/03/2023