Ponto de Vista
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Ano 2024 -
Volume 14 -
Número
2
Escorbuto: o retorno de uma doença quase esquecida
Scurvy: the return of an almost forgotten disease
Sheila Knupp Feitosa de Oliveira1; Felipe Oliveira De Paula2
RESUMO
Os últimos 20 anos mostraram um aumento nos casos de escorbuto em crianças com queixas de dores nos membros, nas costas e recusa em andar. O artigo ajuda a identificar as causas e os pacientes em risco, como diagnosticar, tratar e prevenir.
Palavras-chave:
Escorbuto, Dor, Transtorno do Espectro Autista.
ABSTRACT
The last 20 years have shown an increpa-se in cases of scurvy in children complaining of pain in the limbs, back and refusal to walk. The article helps identify the causes and patients at risk, how to diagnose, treat and prevent.
Keywords:
Scurvy, Pain, Autism Spectrum Disorder.
Durante décadas não ouvimos falar em escorbuto. Isso era coisa do passado, descrita há alguns séculos em marinheiros com mínimo acesso a frutas frescas e vegetais e, posteriormente, em crianças quando a desnutrição era um grande problema socioeconômico. Neste ano fiquei surpresa ao ver 4 temas livres apresentados em congressos no Brasil relatando 5 casos de escorbuto em crianças com queixas de dores nos membros e que foram atendidas em serviços de Reumatologia Pediátrica de 4 estados (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Minas Gerais)1-4. Esse retorno não ocorre só no Brasil, como mostra um artigo de revisão de 2022 que reuniu 166 casos semelhantes nos últimos 20 anos5.
O que liga essa doença à reumatologia pediátrica? Que tipo de criança é acometida? Como se comporta? Como diagnosticar? Como tratar? Essas são apenas algumas perguntas cujas respostas podem alertar os pediatras sobre como identificar e tratar esses pacientes, evitando as complicações decorrentes do atraso no diagnóstico.
O escorbuto se deve à falta de vitamina C (ácido ascórbico) que é encontrada em frutas frescas e vegetais. Esse componente dietético é essencial em várias funções orgânicas como a síntese de colágeno, de neurotransmissores, de óxido nítrico e no transporte de ácidos graxos. Infelizmente o corpo não possui mecanismos de armazenamento de vitamina C e as primeiras manifestações de deficiência podem surgir após 1 a 3 meses de carência6. Os casos descritos nos últimos 20 anos têm sido identificados frequentemente em crianças com alguma comorbidade neurológica ou associada a alguma restrição alimentar voluntária (apetite seletivo). O transtorno do espectro autista foi o responsável pelo escorbuto em 16%, paralisia cerebral e atraso neurológico em 8%. Cerca de 29% estiveram ligado à desnutrição e 23 % das crianças foram consideradas saudáveis5.
Os primeiros sintomas são inespecíficos e incluem fadiga, dores, irritabilidade, perda do apetite, fadiga, alteração do humor. A doença progride com manifestações cutâneas e ósseas devido à redução da síntese colágeno que torna os capilares frágeis e a estrutura óssea defeituosa6. As manifestações cutâneas se expressam com hiperceratose, petéquias, equimoses, hemorragia perifolicular. Doenças hematológicas como doença de von Willebrand, púrpura e leucemia costumam ser consideradas, mas apenas 42% dos pacientes pediátricos apresentam anemia, provavelmente devido ao papel da vitamina C na absorção de ferro. Além disso, não há trombocitopenia e o coagulograma é normal6. A formação desordenada da matriz osteoide é mais importante na criança do que em adultos, levando a alterações esqueléticas mais frequentes e graves. Artralgias, mialgias (principalmente nos membros inferiores), dores nas costas, claudicação aguda ou recusa para andar são as queixas mais comuns (92%) e geralmente levam o médico a considerar o diagnóstico de escorbuto após algumas semanas ou meses de investigação para outras condições reumatológicas, hematológicas, infecciosas ou de amplificação dolorosa. Uma característica importante é a permanência dos sintomas dolorosos com a imobilização. Mais raramente são descritos hemartrose, sangramento dentro de músculos e do periósteo. Gengivas inchadas, hipertrofiadas e sangrantes, manifestações clássicas de escorbuto, costumam surgir mais tardiamente e frequentemente a hipótese de escorbuto já foi pensada5.
As áreas dolorosas identificadas na história e no exame físico orientam a realização de exames de imagem que poderão confirmar escorbuto e/ou excluir alguns diagnósticos diferenciais. Na revisão de 166 casos, Trapani et al. (2022)5 registraram a presença de alterações radiológicas clássicas: osteopenia generalizada e afilamento da cortical (31%), imagem circular opaca ao redor do centro de ossificação epifisária ou sinal de Wimberger (41%), calcificação epifisária densa ou linha de Frankel (73%), faixa metafisária radiotransparente ou zona de Trummerfeld no lado diafisário da linha de Frankel (14%), esporão metafisário ou esporão de Pelkan (18%), reação periosteal devido à hemorragia subperiosteal e hemartrose5. Embora esses sinais sejam específicos, nem sempre serão corretamente valorizados se o diagnóstico de escorbuto não for considerado. A ressonância magnética raramente é necessária e há poucas descrições dessas imagens na literatura7. O comprometimento simétrico, difuso ou multifocal ajuda no diagnóstico diferencial com outras doenças5,7. Podem ser observadas áreas simétricas de imagem hipotensa em T1 e hiperintensa em T2 na medula óssea ao longo das metáfises de ossos longos, edema de partes moles e faixas de esclerose metafisárias, coleções de líquido subperiosteal e reação periosteal8. O diagnóstico diferencial dessas imagens inclui condições de alta morbidade como leucemia, metástases de neuroblastoma, osteomielite crônica multifocal, osteomielite bacteriana7,9.
Se a história alimentar é compatível com deficiência de vitamina C e as manifestações clínicas e radiológicas estão presentes, o diagnóstico é fácil. Na dúvida, testes sanguíneos poderão confirmar o diagnóstico ao mostrar níveis baixíssimos ou indetectáveis de ácido ascórbico (valores normais variam entre 0,6 e 2 mg/dL)5,7.
O tratamento de crianças é feito com 3 doses diárias de 100 mg de ácido ascórbico na primeira semana e, depois, uma dose diária por várias semanas até a recuperação total6. O prognóstico do escorbuto é muito bom, já que resposta ao tratamento é observada em 48 horas e a recuperação completa dos sintomas pode ser observada em 2 semanas7.
Nosso objetivo é alertar os pediatras para o aumento de casos de escorbuto diagnosticados em crianças com hábitos alimentares inadequados, que excluem alimentos com vitamina C da dieta10. Alimentação seletiva e restrita, como é frequente no autismo e em condições associadas com o atraso no desenvolvimento (muitas com alteração da marcha, dificuldades para se alimentar, uso de sonda), torna essas crianças mais suscetíveis ao escorbuto mas não é impossível a ocorrência em crianças saudáveis8,11. É provável que alguns desses pacientes apresentem também outras deficiências nutricionais e, portanto, merecem uma investigação mais ampla. Interessante notar que apesar de muitas dessas crianças descritas serem acompanhadas regularmente por pediatras, pouca importância era dada à história alimentar.
REFERÊNCIAS
1. Campos L, Oliveira C, Lima F, et al. Pediatric Scurvy Mimicking Spondyloarthritis. Apresentação de Cartaz no XXV Congresso Pan-Americano de Reumatologia – PANLAR; 2023 abr 26-29; Rio de Janeiro/RJ.
2. Soveral RT, Carlos LR, Gonçalves LMK, et al. Vitamin C deficiency mimicking artritis associated with enthesitis. Apresentação de Cartaz no XL Congresso Brasileiro de Reumatologia; 2023 set 4-7; Goiânia/GO.
3. França MS, Cunha ALG, Santos ITBM, et al. Scurvy as a differential diagnosis for lower limb pain: presentation of two cases. Apresentação de Cartaz no XL Congresso Brasileiro de Reumatologia; 2023 set 4-7; Goiânia/GO.
4. Camargo MB, Ourique JM, Scheid TDS, Machado SH. Escorbuto mimetizando doença reumatológica. Cartaz apresentado no XL Congresso Brasileiro de Reumatologia, 4 a 7 de setembro de 2023, Goiânia/GO.
5. Trapani, S, Rubino C, Indolfi G, Lionetti P. A narrative review on pediatric scurvy: the last twenty years. Nutrients. 2022;14(3):684-96.
6. Gandhi M, Elfeky O, Ertugrul H, Chela HK, Daglila E. Scurvy: Rediscovering a forgotten disease. Diseases. 2023;11(2):78-89.
7. Biswas S, Miller S, Cohen HL. Scurvy in a malnourished Child: Atypical imaging Findings. J Radiol Case Rep. 2022;16(9):11-5.
8. Alten ED, Chaturvedi A, Cullimore M, Fallon AA, Habben L, Hughes I, et al. No longer a historical ailment: two cases of childhood scurvy with recommendations for bone health providers. Osteoporos Int. 2020;31(5):1001-5.
9. Gulko E, Collins LK, Murphy RC, Thornhill BA, Taragin BH. MRI findings in pediatric patients with scurvy. Skeletal Radiol. 2015;44(2):291-7.
10. Hahn T, Adams W, Williams K. Is vitamin C enough? A case report of scurvy in a five- year-old girl and review of the literature. BMC Pediatrics. 2019;19(74):1-6.
11. Zessis NR, Peters SW, Samet JD, Parzen-Johnson S, Russo LT, Samady W, et al. Unusual Presentation of Pediatric Scurvy: A Necrotic Gastrostomy Tube Site in a 14-Year-Old Boy. Am J Case Rep. 2023;24:e940770-1–8.
1. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pediatria - Rio De Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
2. Universidade Estácio de Sá, Curso de Medicina - Rio De Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
Endereço para correspondência:
Sheila Knupp Feitosa de Oliveira
Universidade Federal do Rio de Janeiro
R. Bruno Lobo, 50 - Cidade Universitária
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 21941-912
E-mail: sheila_knupp@hotmail.com
Data de Submissão: 20/11/2023
Data de Aprovação: 19/03/2024