Relato de Caso
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Ano 2024 -
Volume 14 -
Número
3
Tricobezoar associado à tricotilomania: relato de caso pediátrico
Trichobezoar associated with trichotillomania: pediatric case report
Bárbara Alves Deus1; Ana Beatriz Ferreira de Souza Toge1; Leonardo de Oliveira Antunes1; Guilherme Diego de Oliveira Barbosa1; Adriana de Oliveira Ribeiro dos Santos1; João Carlos Diniz1; Olavo Novaes Vieira Braga Ferraz1; Henrique Vilela de Oliveira1
RESUMO
Relato de caso de paciente feminina de 7 anos com diagnóstico de tricobezoar gástrico com necessidade de intervenção cirúrgica para remoção. Foram abordados aspectos psíquicos relacionados ao transtorno obsessivo compulsivo de arrancar e ingerir cabelos, bem como opções de diagnóstico e de tratamento. Justifica-se a relevância deste trabalho, uma vez que o quadro tem sua predominância na faixa etária pediátrica e, na maioria dos casos, o primeiro profissional a entrar em contato com esse paciente será o pediatra.
Palavras-chave:
Tricotilomania, Cabelo, Transtorno obsessivo-compulsivo, Bezoares.
ABSTRACT
Case report of a 7-year-old female patient diagnosed with gastric trichobezoar requiring surgical intervention for removal. Psychic aspects related to obsessive-compulsive hair-pulling disorder were addressed, as well as diagnostic and treatment options. The relevance of this work is justified, since the condition is predominant in the pediatric age group and in most cases the first professional to contact this patient will be the pediatrician.
Keywords:
Trichotillomania, Hair, Obsessive-compulsive disorder, Bezoars.
INTRODUÇÃO
A tricotilomania é definida como um transtorno obsessivo-compulsivo, em que a pessoa retira cabelos ou pelos de qualquer área do corpo, resultando em regiões de rarefação capilar1. Os locais mais comuns são o couro cabeludo, região nucal, sobrancelhas, cílios e região pubiana1. O bezoar gástrico, por sua vez, corresponde ao acúmulo de materiais estranhos no estômago, de modo que, a depender do material acumulado, dá-se um nome descritivo2. Portanto, o tricobezoar é resultante do acúmulo de cabelos e o principal grupo com predisposição a desenvolvê-lo são os portadores de tricotilomania2.
A prevalência na população geral é estimada em 0,5% a 2% e estudos sugerem predominância do sexo feminino na faixa etária pediátrica2.
As manifestações clínicas são tardias e, na maioria das vezes, surgem em decorrência da obstrução ao esvaziamento gástrico, sendo elas dor abdominal, distensão, náuseas e vômitos3. Há achados típicos vistos na radiografia abdominal, como grande defeito de enchimento intraluminal com translucidez mosqueada e achado ultrassonográfico de massas intraluminais sombreadas3. O tratamento consiste na retirada cirúrgica por via laparoscópica na grande maioria dos casos3.
Os principais diagnósticos diferenciais para perda de cabelo na infância são a alopecia areata, Tinea capitis e eflúvio telógeno2.
O trabalho relata o caso de uma escolar com o diagnóstico de tricobezoar, levando em consideração as características clínicas, fundamentais para condução, diagnóstico, tratamento precoce e evolução favorável dos pacientes4. Além disso, considerando a predominância do quadro na faixa pediátrica, os casos devem ser avaliados minuciosamente especialmente por pediatras, pois podem ser os primeiros a entrarem em contato com esses pacientes4.
RELATO DE CASO
Paciente SRAS, feminina, 7 anos, previamente hígida, com histórico de alergia à proteína do leite de vaca (APLV) tratada até 2 anos de idade, com alta após tratamento. Paciente apresentou quadro de vômitos e diarreia iniciados em março de 2022, com duração de 3 dias, que evoluíram com dor abdominal intensa e recusa alimentar. Foi procurado o Pronto-Socorro Infantil (PSI) na ocasião, onde foi realizada investigação com Tomografia Computadorizada (TC) de abdome sem alterações, tendo alta com sintomáticos e retorno em ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica para seguimento. Paciente manteve-se sem melhora do quadro após 1 mês e apresentava persistência de vômitos pós-alimentares e dor em andar superior do abdome, retroesternal e por vezes infraumbilical, associado à inapetência, labilidade emocional e perda ponderal de 4kg, então retornou ao PSI. Ao exame físico, apresentava-se apática, descorada, emagrecida, com pele xerótica, linfonodos cervicais móveis e incaracterísticos e com área de rarefação capilar em região occipital. Foi realizada investigação laboratorial, radiografia de tórax e abdome e Ultrassonografia de abdome sem alterações. Então, foi realizada Endoscopia Digestiva Alta (EDA) na qual foi visualizado grande tricobezoar gástrico (Figura 1), comprometendo toda a luz do antro, impossibilitando a retirada endoscópica devido às grandes dimensões do corpo estranho. A paciente foi encaminhada para remoção cirúrgica do corpo estranho por laparotomia exploradora, sendo retirado tricobezoar de 6 cm de diâmetro. Paciente evoluiu sem complicações, recebeu alta após 8 dias de internação e foi encaminhada para acompanhamento ambulatorial com equipe de cirurgia pediátrica e para os serviços de psiquiatria e psicologia infantil.
Figura 1. Visão endoscópica de tricobezoar em antro gástrico.
DISCUSSÃO
A tricotilomania é classificada de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM 5ª edição como um transtorno obsessivo-compulsivo, apresentando como critérios diagnósticos (Quadro 1) o fato de arrancar de forma recorrente o próprio cabelo, realizar tentativas de reduzir ou parar de arrancar o cabelo, a atividade causa sofrimento ou prejuízo funcional à pessoa, o ato não se deve a outra condição médica e não é mais bem explicado por outro transtorno mental5. Uma das consequências desse comportamento é a tricofagia, o ato de engolir o cabelo, o que pode levar à formação de bezoares5.
Os bezoares são formados por agrupamentos de materiais não digeridos e retidos no trato gastrointestinal, sendo o tipo mais comum o fitobezoar, o qual é composto de fibras, plantas, vegetais e frutas3. Em 1779, M. Baudamant, médico francês, relatou pela primeira vez o caso de um bezoar em ser humano, um tricobezoar, composto por cabelos, achado em necropsia em uma mulher6,7.
O tricobezoar, representa menos de 6% de todos os casos, sendo mais comumente observado em crianças e adolescentes8. Condição essa rara que se localiza em geral no estômago, podendo chegar ao intestino delgado e cólon, caracterizando-se como a Síndrome de Rapunzel, descrita em 1968 por Vaughan et al. (1968)3,9. O caso em paciente mais jovem já relatado em literatura ocorreu em Uberaba/MG, em uma criança de 2 anos e 11 meses, a qual apresentou a Síndrome de Rapunzel6.
Em nosso relato de caso, a paciente de 7 anos descrita, assim como na maioria dos relatos, apresentou sintomas obstrutivos após quadro mais arrastado de distensão abdominal, dores, inapetência, náuseas e vômitos, levando à perda ponderal8. No início do quadro, podem surgir também sintomas inespecíficos e que muitas vezes não são adequadamente valorizados, como dor esporádica, mal-estar, halitose e anemia7.
Na investigação diagnóstica, atrelada ao exame físico, o auxílio de imagem escolhido como método principal é a Tomografia Computadorizada (TC), em detrimento da radiografia e da Ultrassonografia, devido à maior precisão do método e possibilidade de realizar diagnóstico diferencial3. No caso relatado, foi realizada uma TC de abdome no mês anterior ao diagnóstico que descartou alterações, sendo realizada EDA, outra opção diagnóstica que possui a visualização direta e pode servir como terapêutica10. Em nosso relato, obteve-se diagnóstico por meio desse método, mas o tratamento foi inviabilizado devido à dimensão do tricobezoar.
A grande maioria dos casos apresenta tratamento conservador, sendo raro a possibilidade de remoção endoscópica ou dissolução química6,7. A depender do tamanho do bezoar, a escolha é o tratamento cirúrgico, como em nosso relato de caso, através da via laparoscópica ou laparotômica, levando a uma taxa de sucesso de 99%6,7,11. Diante do quadro, não só o diagnóstico e tratamento são de extrema relevância, como também o seguimento multidisciplinar necessário para acompanhar a tricotilomania e a tricotilofagia, tanto pelas complicações clínicas quanto relacionado ao prejuízo psicossocial associado ao quadro4,6.
REFERÊNCIAS
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2. França K, Kumar A, Castilho D, Jafferany M, Costa Neto MH, Damevska K, et al. Trichotillomania (hair pulling disorder): Clinical characteristics, psychosocial aspects, treatment approaches, and ethical considerations. Dermathol Ther. 2019 Jul;32(4):e12622.
3. García-Ramírez BE, Nuño-Guzmán CM, Zaragoza-Carrilo RE, Salado-Rentería H, Gómez-Abarca A, Corona JL. Small-Bowel Obstruction Secondary to Ileal Trichobezoar in a Patient with Rapunzel Syndrome. Case Reports in Gastroenterology. 2018 Sep-Dec;12(3):559-65
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7. Silveira HJV, Coelho-Junior JA, Gestic MA, Chaim EA, Andreollo NA. Tricobezoar gigante: relato de caso e revisão da literatura. ABCD, Arq Bras Cir Dig. 2012 Apr;25(2):135–6. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-6720201200020001.
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11. Kwok AMF. Trichobezoar as a cause of pediatric acute small bowel obstruction. Clin Case Rep. 2020 Jan;8(1):166-70.
Hospital Municipal Universitário de Taubaté, Pediatria - Taubaté - São Paulo - Brasil
Endereço para correspondência:
Bárbara Alves Deus
Hospital Municipal Universitário de Taubaté, Pediatria - Taubaté
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E-mail: barbaraalvesdedeus@gmail.com
Data de Submissão: 03/07/2023
Data de Aprovação: 18/09/2023