ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2024 - Volume 14 - Número 3

Investigação de neutropenia em pacientes pediátricos

Investigation of neutropenia in pediatric patients

RESUMO

A neutropenia é comum tanto em adultos quanto em crianças. Definida como uma contagem de neutrófilos no sangue periférico <1.500 cels/µl. As causas são variáveis, sendo importante considerar as diferentes faixas etárias e os quadros clínicos associados. Suas consequências podem ser graves, podendo levar até mesmo ao óbito. Na literatura, a mortalidade por neutropenia, quando associada à febre, pode chegar até 10%. Em pacientes onco-hematológicos, essa porcentagem chega a 16%. Diante do exposto e da importância do tema para pediatras e hematologistas, optou-se pela formulação deste trabalho. O estudo será apresentado sob a forma de revisão narrativa. Terá a intenção de revisar as principais causas de neutropenia na infância, a propedêutica e a identificação de indicadores de gravidade com a proposta de aplicação de um fluxograma de investigação inicial de neutropenia em pediatria, além de orientar quando encaminhar esses pacientes para serviços especializados.

Palavras-chave: Neutropenia, Criança, Pediatria.

ABSTRACT

Neutropenia is common in both adults and children. Defined as a count of peripheral blood neutrophils <1,500 cells/µl. The causes are variable, it is important to consider the different age groups and associated clinical conditions. Its consequences can be serious and may lead even to death. In the literature, mortality from neutropenia, when associated with fever, can reach up to 10%. In Oncohematological patients this percentage reaches 16%. In view of the above and the importance of theme for pediatricians and hematologists, we chose to formulate this work. The study will be presented in the form of a narrative review. It intends to review the main causes of neutropenia in childhood, propaedeutics and identification of severity indicators with the proposal application of a neutropenia initial investigation flowchart in pediatrics, in addition to guiding when refer these patients to specialized services.

Keywords: Neutropenia, Child, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

Os neutrófilos são células com tamanho de 10 a 15mm, com núcleo polimórfico multilobado. Possuem cromatina altamente condensada e um citoplasma amarelo-rosa contendo numerosos grânulos, bem como aglomerados de glicogênio. A taxa de produção de neutrófilos é de 109 células/kg/dia, com vida útil na medula óssea de 14 dias. Estima-se que na corrente sanguínea a meia-vida seja de 6 a 10 horas1. Os neutrófilos saem da circulação por diapedese entre/através das células endoteliais para os locais de inflamação ou infecção nos tecidos. Nesses últimos, o tempo de vida é de 1 a 2 dias e a seguir sofrem apoptose e são absorvidos por macrófagos2.

Neutropenia é definida como uma contagem absoluta de neutrófilos no sangue periférico <1.500 cels/µl em adultos e crianças3. É uma alteração comum tanto em adultos quanto em crianças. As causas são variáveis, sendo importante considerar as diferentes faixas etárias e os quadros clínicos associados.

Muitas vezes a neutropenia pode ser encontrada em crianças assintomáticas e geralmente só ocorrem manifestações clínicas quando a contagem é <500 cels/µl. Este é o ponto que define a neutropenia como grave, onde o paciente se encontra em alto risco de infecções ameaçadoras à vida, sobretudo quando as contagens encontram-se <200 cels/µl4. É importante salientar que a gravidade das manifestações depende não apenas do valor absoluto de neutrófilos, mas também do tempo de instalação e duração da neutropenia. A relação entre o valor e a gravidade ocorre nas neutropenias por hipoprodução por supressão ou falência medular. De um modo geral, a neutropenia por destruição periférica cursa com menor gravidade, provavelmente devido à capacidade de liberação do "pool" de neutrófilos disponíveis na medula óssea.

A neutropenia pode ser encontrada isolada ou associada a outras citopenias. Esse é um fator determinante para o seguimento da investigação. Quando o paciente apresenta mais de uma citopenia, já deve ser encaminhado para avaliação imediata do hematologista, pois podemos estar diante de doenças de maior gravidade.

As causas de neutropenia são divididas em crônicas e agudas ou transitórias. As transitórias podem ter diversas etiologias, sendo as principais: virais, bacterianas, medicamentosas. Dentre as causas crônicas na infância, podem ser ressaltadas a neutropenia congênita, cíclica e autoimune.

A investigação da causa da neutropenia e o domínio sobre sua respectiva gravidade são de suma importância não só para o hematologista, mas também para o pediatra geral. A identificação da etiologia pode ser difícil, porém é determinante para a abordagem terapêutica e avaliação do prognóstico. Sobretudo na infância, são comuns internações e utilização de antibioticoterapia algumas vezes desnecessárias.


OBJETIVO

Objetivo primário


1- Revisar a literatura na forma de revisão narrativa sobre neutropenia;

2- Propor para os pediatras a aplicação de um fluxograma de investigação da neutropenia na faixa etária pediátrica e de quando encaminhar para o especialista.

Objetivos secundários

1- Descrever as principais causas de neutropenia na infância;

2- Descrever a investigação básica de neutropenia para pediatras e hematologistas.


METODOLOGIA

Estudo conduzido sob a forma de revisão narrativa, com revisão bibliográfica não sistemática, usando-se para a pesquisa os termos descritos nas palavras-chave deste trabalho. A busca foi realizada na base de dados Medline/PubMed, de artigos de revisão, na língua portuguesa e inglesa, de 2015 até 2020. A seleção de artigos foi realizada por um único revisor e os materiais selecionados foram lidos na íntegra, categorizados e analisados criticamente. O critério de exclusão foi artigos com conteúdo referente à neutropenia em adultos.

Será descrita uma breve revisão sobre as causas mais frequentes sobre o tema e elaborado um fluxograma para investigação de neutropenia na infância voltado para o público pediátrico.


QUESTÕES ÉTICAS

O projeto foi submetido à Plataforma Brasil n.º 41712821.6.0000.5264, em consonância com a legislação vigente, atendendo à resolução n° 466, de 12 de dezembro de 2012.


REVISÃO DA LITERATURA

Os neutrófilos são células sanguíneas leucocitárias originadas na medula óssea componentes do sistema imune. Em conjunto com os eosinófilos e os basófilos formam a classe dos granulócitos. Considerando a morfologia celular, o termo neutrófilo engloba os bastões, segmentados, metamielócitos e mielócitos. Entretanto, na prática clínica, a neutropenia é considerada com base na soma dos valores absolutos dos bastões e dos segmentados.

A neutropenia na faixa etária pediátrica é um tema amplamente abordado na hematologia e pediatria devido à sua marcada frequência na prática clínica e diversidade de causas e manifestações clínicas. Pode ser classificada quanto à sua etiologia (causas hereditárias ou adquiridas), temporalidade e intensidade. A neutropenia é considerada quanto ao tempo de duração em aguda ou transitória e crônica (duração menor que 6 semanas e maior que 6 semanas, respectivamente)5. Os quadros com duração superior a 7 dias estão associados a um pior prognóstico. A intensidade de redução do número de neutrófilos classifica a neutropenia em grave (<500 neutrófilos/µL), moderada (<1000 neutrófilos/µL) e leve (<1500 neutrófilos/µL). Vale ressaltar que crianças menores de um ano de idade possuem o limite para definição de neutropenia estabelecido em <1000 neutrófilos/µL.


NEUTROPENIA DE CAUSA INFECCIOSA

As infecções virais são a principal causa da neutropenia na faixa etária pediátrica embora as bactérias, fungos e uso de medicamentos também estejam envolvidos nas causas de neutropenia adquirida aguda, com curso geralmente benigno e resolução dentro de 6 semanas. Em geral, são leves a moderadas e o curso tende a ser benigno, com resolução espontânea dentro de seis semanas.

Nos quadros virais, coincidem com o período da viremia e costumam surgir nas primeiras 24 a 48 horas de doença E na maioria das vezes não necessitam de intervenção terapêutica. As neutropenias mais graves e duradouras podem ocorrer com infecções virais específicas como Citomegalovírus, HIV, Epstein-Barr e Parvovírus B19. Por serem a principal causa de neutropenia na infância, é fundamental que o pediatra saiba identificá-las e tenha conhecimento da benignidade do quadro.


NEUTROPENIA DE CAUSA MEDICAMENTOSA

As neutropenias causadas por drogas podem cursar com quadros de neutropenia leve até agranulocitose. Os mecanismos de neutropenia são diversos, desde agressão medular direta, mecanismos imunes e reação idiossincrática. As reações idiossincráticas são mais comuns em homens e pacientes mais velhos. Os principais fármacos envolvidos nas neutropenias medicamentosas são anticonvulsivantes, antibióticos, antipsicóticos e medicações utilizadas em patologias reumatológicas. Os quimioterápicos são uma classe de medicamentos que cursam com neutropenia frequentemente e por vezes necessitam de intervenção com a introdução de antibioticoterapia empírica. A neutropenia secundária aos quimioterápicos é variável de acordo com cada droga. Geralmente os quadros induzidos por drogas possuem resolução dentro de 6 semanas, após a cessação do uso da medicação. No entanto, as reações medicamentosas mielossupressoras podem durar de dias a meses ou anos, enquanto as reações imunomediadas duram geralmente de 6 a 8 dias. Durante a recuperação, pode ocorrer leucocitose reacional ("de rebote"), acompanhada por um desvio à esquerda no sangue periférico.


NEUTROPENIA CRÔNICAS

Em crianças, as neutropenias crônicas podem ser causadas por diversas etiologias com prognósticos variáveis. Podem ser divididas em congênitas e adquiridas. Serão abordadas as neutropenias congênitas graves, neutropenia cíclica, congênita benigna, citopenia refratária da infância e neutropenia autoimune.

A neutropenia congênita grave constitui um grupo heterogêneo de doenças hematológicas hereditárias raras, caracterizadas por defeito na maturação dos neutrófilos e cursam geralmente com neutrófilos abaixo de 200 células por µL. A incidência é de aproximadamente dois casos por milhão na população mundial.

De grande relevância histórica, a síndrome de Kostmann foi descrita pela primeira vez por Rolf Kostmann em indivíduos de uma família sueca que faleceram em idade muito precoce6. Esses primeiros casos seguiram um padrão hereditário autossômico recessivo. Posteriormente foram descritos outros casos de neutropenia congênita grave com diferentes padrões hereditários. Antes do advento do estudo genético, considerava-se toda essa classe de neutropenias como Kostmann, e à medida que diferentes alterações genéticas foram descobertas, percebeu-se que não se tratava de uma patologia única, mas sim de um grupo heterogêneo de doenças. O prognóstico desses pacientes é sombrio, com infecções graves e recorrentes desde os primeiros meses de vida. Em aproximadamente 50% dos casos ocorrem mutações autossômicas dominantes no gene ELANE, responsável pela codificação da elastase dos neutrófilos. Essa enzima é uma protease capaz de digerir a elastina, presente em diversos micro-organismos, levando à sua morte. Em 10 a 20% dos casos, ocorrem mutações autossômicas recessivas no gene HAX1, que contribui para a ativação da via de sinalização do fator estimulador de colônias dos granulócitos7. No entanto, até o presente momento, 24 genes foram descritos nesse grupo heterogêneo de doenças8.

As neutropenias congênitas podem predispor a síndrome mielodisplásica e leucemia mieloide aguda. O padrão-ouro para o diagnóstico é a evidência de anormalidade genética, embora os testes genéticos não estejam acessíveis facilmente9. O diagnóstico pode ser realizado baseado na combinação do quadro clínico, na intensidade da neutropenia no sangue periférico e na avaliação medular. É possível evidenciar em sangue periférico eosinofilia e monocitose, além da neutropenia. Apesar de incomum, é descrito na literatura associação com anemia e trombocitopenia. O exame da medula óssea mostra caracteristicamente uma "parada de maturação" mieloide no estágio de desenvolvimento dos mielócitos, com números normais a aumentados de promielócitos, mas com poucas formas mais maduras. Os promielócitos podem mostrar morfologia displásica, incluindo tamanho grande, núcleos atípicos e citoplasma vacuolado. A eosinofilia da medula e a monocitose são comuns e não mudam durante o tratamento. A celularidade é geralmente normal ou ligeiramente diminuída. Megacariócitos são normais em número e morfologia.

Deve sempre ser considerada a hipótese de neutropenia congênita em bebês neutropênicos com infecções graves e recorrentes. Devido à gravidade do quadro, é importante o uso de fator estimulador de colônias de granulócitos de modo profilático para melhoria da qualidade de vida desses pacientes. Antes do advento dessa terapia na década de 80, a maioria desses pacientes iam a óbito nos primeiro dois anos de vida. Mais de 95% dos pacientes respondem ao tratamento com fator estimulador de colônias granulocíticas, com um aumento na contagem de neutrófilos para mais de 1000 por µL, com redução documentada do número de episódios e da gravidade das infecções10. A terapia em longo prazo, entretanto, pode cursar com a mutação no gene do receptor CFS3R e acarretar a ocorrência de mielodisplasia e alterações genéticas, sobretudo a monossomia do 7. Como consequência, é possível a evolução para leucemia mieloide aguda. Durante o curso da doença, é recomendado que sejam feitas avaliações medulares anuais, devido ao risco de evolução para síndrome mielodisplásica e leucemia mieloide aguda. O único tratamento curativo é o transplante de células-tronco hematopoiéticas, que deve ser precoce se o paciente apresentar alterações citogenéticas ou não responder a altas doses do fator estimulador de colônias granulocíticas.

A neutropenia crônica benigna da infância geralmente é idiopática e os pacientes são assintomáticos, com grau leve a moderado de neutropenias, sem cursar com infecções graves. Em geral, é apenas um achado em hemograma realizado por outro motivo e deve ser um diagnóstico de exclusão. Possui bom prognóstico, apesar de não ocorrer resolução espontânea. Dentro desse subtipo de neutropenia, encontra-se a neutropenia benigna étnica, associada a indivíduos de origem afrodescendente, árabe ou judaica11. Não é necessário tratamento desses pacientes, visto que a chance de infecções é a mesma da população pediátrica, em geral. Podem apresentar, além da neutropenia, ausência do antígeno eritrocitário Duffy, o que corrobora o diagnóstico de neutropenia étnica. O mecanismo para neutropenia e leucopenia em pacientes com antígeno Duffy negativo/receptor de antígeno Duffy para quimiocinas (DARC) nulo não era esclarecido até recentemente. Atualmente, estudos demonstraram que as células hematopoiéticas DARC nulo serão diferenciadas em progenitores mieloides nulos e, posteriormente, em neutrófilos ativados maduros DARC nulo. Esses últimos na circulação, juntamente com a expressão normal de DARC nas células endoteliais, levarão à sua saída para o baço, causando uma neutropenia relativa. Além de neutropenia, os pacientes Duff negativo também apresentam proteção contra malária, pois o DARC é um receptor para plasmodium vivax e plasmodium knowlesi12.

A neutropenia cíclica é um distúrbio hematológico em que a contagem absoluta de neutrófilos no sangue periférico é flutuante, variando em ciclos de aproximadamente 21 dias, podendo chegar até 6 semanas. Ocorre uma neutropenia grave de pelo menos 3 a 5 dias com valores inferiores a 200 céls/µL. A incidência é de 0,5 a 1 caso por milhão de habitantes. A maioria desses pacientes apresenta mutações no gene ELANE, responsável pela produção da elastase dos neutrófilos e o diagnóstico genético pode ser confirmado pelo sequenciamento do gene ELANE. Esses pacientes não costumam cursar com alta morbidade, possuindo baixo risco de progressão para síndrome mielodisplásica e leucemia mieloide aguda. Os aspirados da medula óssea mostram morfologia altamente variável, dependendo da fase do ciclo. A série mieloide pode mostrar hipoplasia com "parada de maturação" no estágio de mielócitos durante a fase declinante da oscilação de neutrófilos, mas pode ser evidenciada mielopoiese normal ou hiperplásica durante a recuperação de neutrófilos.

O diagnóstico de neutropenia cíclica é feita com hemogramas seriados para a detecção dos ciclos. A maioria dos autores sugere 2 a 3 hemogramas semanais durante 6 semanas a 8 semanas2. Quando necessitam do uso de fator estimulador de colônias de granulócitos, baixas doses são suficientes para elevar a contagem de neutrófilos absolutos em sangue periférico para >1.000 neutrófilos/µL. Apesar disso, quando a contagem de neutrófilos é menor que 500 neutrófilos/µL por mais de sete dias, é frequente a ocorrência de úlceras orais, abscessos cutâneos e infecções de trato respiratório superior. O tratamento com fator estimulador de colônias de granulócitos não anula o ciclo, mas aumenta a contagem absoluta de neutrófilos e encurta o período de neutropenia, além de evitar infecções graves e deve ser prescrito para pacientes com <500 neutrófilos/µL. Na neutropenia cíclica, o uso de fator estimulador de colônias granulocíticas não predispõe ao desenvolvimento de síndrome mielodisplásica e leucemia mieloide aguda. Muitos pacientes sintomáticos na infância apresentam melhora clínica com o envelhecimento.

A fisiopatologia da neutropenia cíclica ainda é incerta, porém existem duas teorias principais: as mutações ELANE causariam uma resposta proteica não dobrada no retículo endoplasmático, levando à ativação das proteínas deste e consequentemente ao estresse do retículo endoplasmático. Esse estresse causaria uma inibição temporária da proliferação/diferenciação de células hematopoiéticas e células progenitoras de neutrófilos na medula óssea13. A segunda teoria, proposta por Tidwell et al., sugere que a mutação do ELANE resultaria na produção de proteínas de comprimento total e níveis reduzidos das isoformas truncadas amino-terminais. Esta proteína mutada estaria associada à proteína não dobrada do retículo endoplasmático e, consequentemente, ao seu estresse, levando à neutropenia.

A ciclagem da neutropenia cíclica ocorre porque no limite inferior da neutropenia, os altos níveis da proteína dobrada e das espécies reativas de oxigênio leva ao dano das células progenitoras, porém células precursoras já diferenciadas ainda conseguem gerar neutrófilos suficientes para elevar a contagem neutrofílica. Curiosamente o porquê da neutropenia cíclica ser considerada uma doença mais branda que a neutropenia congênita apesar de ambas serem causadas pela mesma mutação se baseia na hipótese de que a inibição da proliferação e diferenciação das células hematopoiéticas e progenitoras induzidas pelas proteínas não dobradas e pelas espécies reativas de oxigênio na neutropenia cíclica não é completa quando comparada com a neutropenia congênita. Algumas células escapam do dano e respondem ao fator estimulante de colônias granulocíticas de forma mais eficaz13.


NEUTROPENIA DE CAUSA AUTOIMUNE

Dentre as causas crônicas adquiridas, a mais comum é a neutropenia autoimune primária da infância, com incidência de 1 a cada 100.000 crianças por ano. Ocorre produção de anticorpos contra os antígenos dos neutrófilos. A autoimunidade pode ocorrer como um processo isolado, como manifestação de outras doenças autoimunes ou como uma complicação secundária de infecção, drogas ou malignidade. Ocorre destruição periférica de neutrófilos ligados a anticorpos, porém esses também podem interferir diretamente na mielopoiese. O pico de incidência ocorre em bebês e crianças pequenas, com idade média do diagnóstico entre 8 e 11 meses. São incomuns infecções graves na neutropenia autoimune da infância, geralmente restringindo-se a infecções cutâneas ou respiratórias leves e o grau de neutropenia pode variar de leve a agranulocitose.

De modo geral, cursam com prognóstico excelente e têm curso autolimitado, não sendo necessário tratamento. A remissão ocorre em 6 a 54 meses. As características clínicas e o valor absoluto de neutrófilos foram descritos em uma grande coorte de 157 pacientes. A mediana de neutrófilos foi 0,45x 109/L e a idade de diagnóstico foi de 1,06 anos, com mediana do tempo de resolução de 2,14 anos. Infecções graves ocorreram em apenas 9,6% dos casos e a recuperação da neutropenia ocorreu em cerca de 89,9% dos pacientes dentro de 5 anos a partir do diagnóstico14. No sangue periférico pode ser evidenciada monocitose associada, e na medula óssea, a celularidade encontra-se normal a aumentada, com hiperplasia mieloide. A dosagem de anticorpos antineutrófilos não é necessária para o diagnóstico, pois parte da população saudável pode tê-los apenas como um achado e sem repercussão. Além disso, é possível que pacientes com neutropenia autoimune não apresentem os anticorpos nos exames laboratoriais. A maioria dos testes possui altas taxas de resultados falso negativo e falso positivo. Pode ser realizada a estimulação com glicocorticoide para elucidação diagnóstica. Esse teste demonstra a mobilização do "pool" de reserva dos neutrófilos na medula óssea. Dosam-se os neutrófilos em sangue periférico e a seguir a criança ingere uma dose única de 1 a 2mg/kg de predsnisona. Após 4 a 6 horas da medicação, dosam-se novamente os neutrófilos absolutos de sangue periférico. Na neutropenia autoimune, é esperado um aumento de 2 vezes ou mais na contagem inicial de neutrófilos absolutos no sangue periférico.

É importante salientar que as crianças com neutropenia autoimune atípica, incluindo início tardio, recuperação lenta ou envolvimento de outra linhagem além dos neutrófilos, devem ser investigadas minuciosamente. Essas merecem avaliação imunológica, com dosagem de imunoglobulinas e avaliação de linfócitos T duplamente negativos, pensando-se principalmente no diagnóstico da síndrome linfoproliferativa autoimune (ALPS)14.


OUTRAS CAUSAS DE NEUTROPENIA

A citopenia refratária da infância também é um importante diagnóstico a ser aventado durante a elucidação diagnóstica de um quadro de neutropenia. É um grupo raro de desordens clonais das células-tronco hematopoiéticas caracterizadas por variados graus de citopenias, hematopoiese ineficaz e displasias, com risco de transformação leucêmica. É a principal forma de apresentação das síndromes mielodisplásicas da infância e constitui metade dos casos. Necessária avaliação da medula óssea com biópsia, apresentando <5% de blastos na medula óssea.

Na deficiência nutricional de vitamina B12, ácido fólico, cobre ou até mesmo a desnutrição proteica grave podem levar à granulopoiese ineficaz e neutropenia. A instalação é lenta, muitas vezes com clínica sugestiva, sendo comum cursar com pancitopenia. A correção da causa de base leva à resolução da neutropenia.


INVESTIGAÇÃO DE NEUTROPENIA

Para iniciar a investigação, o primeiro passo é repetir o hemograma para confirmar a neutropenia. Com a confirmação, é importante avaliar qual sua intensidade, se há outras alterações e citopenias associadas e em que séries ocorrem. Muitas vezes o hemograma repetido já mostra melhora evolutiva, não sendo necessário o encaminhamento ao hematologista inicialmente.

As crianças e adolescentes com neutropenia moderada a grave ou com mais de uma citopenia devem ser encaminhadas diretamente ao hematologista para investigação. Já os pacientes com neutropenia leve podem ser investigados inicialmente pelo pediatra geral (Figura 1).





Inicialmente devem ser realizados anamnese e exame físico detalhados, com o propósito de guiar a investigação diagnóstica.

Anamnese

- Familiares com neutropenia ou doenças hematológicas?
- A criança já apresentava neutropenia em exames prévios?
- História de infecções graves ou infecções de repetição?
- Internação por infecção?
- Uso de medicamentos que levem à neutropenia?
- Diagnóstico prévio de alguma patologia que curse com neutropenia?
- Infecção viral recente?
- Neutropenia isolada?
- Febre?
- Descendência judaica, árabe ou afrodescendente?

Exame físico:

- Peso e estatura
- Sangramentos
- Fissuras e abscessos perianais
- Hepatomegalia
- Esplenomegalia
- Mucosite/gengivite
- Infecções dentárias
- Infecções de trato respiratório
- Alterações de pele, unha, esqueleto compatíveis com diagnósticos sindrômicos.

Após o exame físico e anamnese, é necessário seguir com a investigação laboratorial. Esta será guiada pelas principais suspeitas clínicas:

Infecção → Sorologias para toxoplasmose, HIV, HTLV, citomegalovírus, hepatites, herpes vírus, Epstein-Barr e parvovírus B19;

Imunodeficiências → Imunoglobulinas

Hipovitaminoses → Ácido fólico e vitamina B12

Hematológico → Lâmina de sangue periférico e hemogramas seriados

Doenças reumatológicas → Anticorpos antinucleares

Malformações/características sindrômicas → Avaliação do geneticista

Fluxograma orientando a investigação e seguimento em paciente com neutropenia nos ambulatórios de pediatria.


CONCLUSÃO

O seguinte trabalho dissertou sobre as neutropenias, suas causas, apresentações clínicas e manejo. O desfecho deste trabalho foi a elaboração de um fluxograma de investigação de neutropenia para os pediatras. É de suma importância para esses profissionais terem conhecimento aprofundado sobre as neutropenias devido à vasta variedade de causas e ampla possibilidade de manifestações clínicas. Além disso, com este trabalho pensou-se na otimização de recursos e tempo, evitando-se, assim, encaminhamentos desnecessários e atraso para a investigação do especialista nos casos de maior gravidade.


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UFRJ, Hematologia pediátrica - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:
Laís de Paiva Gabriel
UFRJ, Hematologia pediátrica - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
Av. Carlos Chagas Filho, 373, Edifício do Centro de Ciências da Saúde, Bloco K, Cidade Universitária
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 21.941.902
E-mail: laispaivagab@yahoo.com.br

Data de Submissão: 10/03/2023
Data de Aprovação: 25/08/2023