ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2024 - Volume 14 - Número 4

Aspiração de corpo estranho: causa de estridor recorrente no lactente - Relato de caso

Foreign body aspiration: cause of recurrent stridor in infants - Case report

RESUMO

A aspiração de corpo estranho (ACE) é um evento adverso muito comum na prática pediátrica, potencialmente fatal e que pode apresentar sintomatologia variada. Diversos fatores contribuem para o diagnóstico tardio da ACE, o que traz prejuízos exuberantes à criança e familiares. O diagnóstico pode ser feito por exames de imagem e, em geral, é necessário complementação através de broncoscopia. O presente relato irá descrever um caso desse fenômeno numa lactente jovem, evidenciando os diversos fatores de confundimento e possíveis erros diagnósticos ao longo da investigação de uma ACE.

Palavras-chave: Aspiração respiratória, Broncoscopia, Espasmo brônquico, Sons respiratórios.

ABSTRACT

Foreign body aspiration (FBA) is a common adverse event in pediatric practice, potentially fatal, that can present a variety of symptoms. Several factors contribute to the delay of diagnosis, promoting harm to the child and family. The diagnosis can be suggested by imaging exams and, most of the time, bronchoscopy is necessary. The present report will describe a case FBA in a young infant, highlighting the various confounding factors and possible mistakes during the investigation.

Keywords: Bronchoscopy, Foreign bodies, Bronchial spasm, Respiratory sounds.


INTRODUÇÃO

Corpo estranho (CE) é qualquer objeto ou substância que inadvertidamente penetra o corpo ou suas cavidades. Pode ser ingerido ou colocado pela criança nas narinas e conduto auditivo, mas apresenta um risco maior quando é aspirado para o pulmão1.

A maioria dos casos de aspiração de corpo estranho (ACE) são de lactentes e crianças na primeira infância, principalmente entre um e três anos de vida2-4. É a quarta causa de morte acidental em crianças menores de 3 anos e a terceira em crianças menores de 1 ano3.

A sintomatologia da ACE é variável e depende principalmente do tamanho do objeto aspirado, de sua localização e do grau de obstrução2. Pode haver desde casos assintomáticos ou com estridor isolados até presença de tosse paroxística, dispneia, sibilos e cianose. Insuficiência respiratória grave necessitando de intervenção imediata ocorre nos casos de obstrução total das vias aéreas2. Uma vez que os sintomas podem simular doenças respiratórias como asma ou crupe é comum que haja atraso no diagnóstico da ACE, aumentando sua morbidade e mortalidade3.

O reconhecimento precoce da ACE é essencial, pois o retardo no seu reconhecimento e tratamento pode incorrer em sequela definitiva ou dano fatal2,3,5. A investigação diagnóstica é feita com história clínica, achados no exame físico e avaliação radiológica4. A broncoscopia deve ser realizada em todos os casos de suspeita de ACE2,4,5. As taxas de sucesso na extração de corpos estranhos são acima de 98%2,5.


OBJETIVO

O objetivo deste estudo é relatar um caso de aspiração de corpo estranho, que vinha sendo tratado como sibilância recorrente, sem melhora.


RELATO DE CASO

Lactente, um ano e 3 meses, feminino, atendida na emergência com quadro de febre, tosse e taquidispneia importante iniciados há 6 dias, associados a estridor. Foi internada com diagnóstico de laringite, e iniciado corticoterapia sistêmica e nebulização com adrenalina. Durante anamnese, a mãe relatou que o estridor se iniciou antes da alta da maternidade, e que vinha apresentando piora importante há 3 meses, quando detectou mofo em sua residência. Relata que, apesar da mudança recente de domicílio, não houve melhora do quadro. Paciente com história de diversas idas a emergências devido ao estridor, recebendo diagnóstico de laringite e asma. Estava em uso recorrente de salbutamol e corticoterapia oral há quase 1 ano. Durante o atendimento, além dos sintomas já descritos, apresentou queda de saturação e episódio de cianose central. Recebeu ainda oxigenioterapia e após estabilização do quadro foi realizada nasofibrolaringoscopia flexível sob anestesia geral, sem relaxamento muscular, que evidenciou pregas vocais móveis e corpo estranho em subglote. Depois, realizada laringoscopia direta com laringoscópio de Hollinger e removido o corpo estranho com pinça apropriada. Material apresentava aspecto de cerâmica e, ao ser apresentado à mãe, a mesma o reconheceu como fragmento do piso de sua residência (Figura 1). A radiografia de tórax da admissão da internação referida apresentava faixa atelectásica em lobo superior direito (Figura 1 A), que normalizou após procedimento endoscópico (Figura 2 B).





Figura 2. A e B: radiografia de tórax em PA evidenciando faixa atelectásica no lobo superior do hemitórax direito; demonstrando normalização após remoção do corpo estranho



DISCUSSÃO

A aspiração de corpo estranho é um acidente que, apesar de evitável, ainda é muito frequente na infância e cursa com altas taxas de morbidade, principalmente em menores de 3 anos2. A associação de fatores como reflexo de fechamento da laringe para proteção da via aérea ineficiente, controle inadequado da deglutição, inabilidade em mastigar alimentos e a tendência de conhecer e explorar objetos levando-os à boca, torna a população pediátrica mais vulnerável1,3,4. Além disso, é comum que, visando encorajar a criança a conhecer novos tipos de alimentos, os pais ofereçam a ela alimentos que ainda não está apta a mastigar e engolir, aumentando o risco de aspiração3. Dentre os principais elementos envolvidos nos casos de ACE encontram-se alimentos como pipoca, nozes, amendoim, milho e feijão e objetos pequenos aos quais a criança teve acesso, o que evidencia a relevância da orientação das famílias a respeito da prevenção de acidentes3,6. É essencial, por parte do pediatra, que haja orientação sobre medidas que reduzam o risco de ACE, tais como manter ao alcance das crianças apenas objetos grandes (pelo menos 3cm de diâmetro e 6cm de comprimento), comprar brinquedos adequados à idade e certificados pelo INMETRO, oferecer alimentos bem cortados e em pequenas quantidades para evitar que as crianças coloquem muita comida na boca, não dar alimentos duros e crocantes a crianças com menos de 4 anos, certificar-se de que a criança esteja acordada e bem alerta antes de oferecer comida e nunca permitir que a ela se alimente deitada, ensinar as crianças a mastigar bem seus alimentos. Sentar-se e comer com elas para dar o exemplo, sendo um modelo positivo, mastigando bem os alimentos e comendo lentamente6.

Embora seja frequente e potencialmente fatal, diversos fatores atrasam o diagnóstico de uma ACE. Após um episódio de aspiração do corpo estranho ocorre, habitualmente, acesso de tosse e engasgamento, nem sempre valorizado ou presenciado pelos pais, postergando o diagnóstico2,7. Caso o evento inicial não seja notado, ocorrerá um período assintomático que pode durar de dias até meses e que poderá ser erroneamente interpretado por familiares como resolução do quadro. Após esse período, novas manifestações clínicas reaparecerão de forma intermitente e, ao procurar atendimento médico, é comum que não ocorra o relato do evento agudo pela família por não suspeitarem de possível aspiração e por não correlacionarem com os novos sintomas2,5.

Além disso, a sintomatologia da ACE é extremamente variável e pode assemelhar-se a doenças extremamente comuns na prática pediátrica, como laringotraqueíte e asma brônquica, fazendo com que grande número de pacientes seja tratado por semanas e meses por doenças respiratórias recorrentes, antes da suspeita da ACE. No relato apresentado, a lactente já estava em tratamento para sibilância recorrente há aproximadamente um ano, sem controle dos sintomas, e apresentando piora da sintomatologia do estridor. Fato esse que fez levantar a hipótese de alguma lesão anatômica promovendo obstrução persistente de via aérea superior. O evento inicial pode cursar com tosse importante, vômitos, sibilância, estridor e cianose em até 15% dos casos. Em seguida, acontece o período de latência que pode cursar com crises leves de tosse, sibilância e estridor. A partir daí, as manifestações clinicas se tornam mais exuberantes e intermitentes, eventualmente podendo cursar com manifestações graves como pneumonia lobar, episódios de broncoespasmo frequentes, graves e resistentes ao tratamento, além de complicações como estenoses em seguimentos do trato respiratório7. A paciente em questão não apresentou complicações de caráter infeccioso, mas apenas obstrutivo, como a atelectasia na radiografia do tórax, refletindo a obstrução da passagem aérea, com resolução após a retirada do corpo estranho.

Casos suspeitos devem ser investigados com estudo radiológico, que tem como achados mais frequentes hiperinsulflação, atelectasias, infiltrados e consolidações2,8,9. A radiografia pode não revelar alterações, devendo-se prosseguir para avaliação endoscópica, que também é o método de escolha para a retirada do possível corpo estranho da via aérea. A broncoscopia deve ser realizada com broncoscópio rígido, de tubo aberto, com visualização direta10. A demora na realização do estudo endoscópico aumenta o risco de complicações e, portanto, a morbidade do quadro, devido ao aumento progressivo da inflamação no entorno do corpo estranho, que não aconteceu no caso em questão2,11,12.

Cada caso deve ser individualizado, mas é necessário atentar-se para o tratamento das possíveis complicações, podendo ser necessário o uso de antibióticos para possíveis infecções secundárias e o agendamento de nova broncoscopia de controle após algumas semanas, para avaliação e abordagem de possíveis estenoses ou formações de novos tecidos de granulação.

A não identificação de provável ACE acarreta prejuízos importantes tanto pelo possível uso crônico de medicamentos com efeitos colaterais exuberantes como os corticoesteroides quanto por sequela definitiva ou dano fatal devido ao diagnóstico tardio.


CONCLUSÃO

Com este relato de caso enfatiza-se a importância da coleta minuciosa e valorização da história clínica, que é o principal elemento na suspeita de ACE, principalmente em casos com piora respiratória recorrente e baixa resposta ao tratamento adequado. A demora na suspeição e diagnóstico aumenta a morbidade do evento, aumentando o risco de complicações e favorecendo o uso prolongado de medicações como antibióticos e corticoides.

Por fim, a ACE é um tipo de acidente na infância que pode ser prevenido13, sendo necessária a educação de pais e cuidadores quanto a hábitos evitáveis que podem favorecer a ocorrência de um acidente em cada faixa etária. Além disso, é importante a orientação sobre medidas básicas de desobstrução de via aérea e a procura de ajuda médica após presenciado o evento.


REFERÊNCIAS

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Data de Submissão: 31/03/2021
Data de Aprovação: 20/08/2021