Relato de Caso
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Ano 2024 -
Volume 14 -
Número
4
AVC isquêmico na infância associado à COVID - 19
Ischemic stroke in childhood associated with COVID-19
Victor Hugo Alves Diniz1; Guilherme Barros de Mattos1; Lucas Roncoletta Vicentino1; Vinicius Camargo Achermann1; Maria Clara Pimenta Figueiredo1; Gustavo Manginelli Lamas2; Flavia Faganello Colombo3; Katia Maria Ribeiro Silva Schmutzler4; Elizete Aparecida Lomazi3
RESUMO
Este relato de caso trata de um AVC isquêmico em uma criança de 2 anos e 5 meses, associado à COVID-19. O paciente, inicialmente apresentando paresia e paralisia facial, testou positivo para o coronavírus. Exames complementares sugerem um evento vascular agudo sem fatores de risco aparentes. A discussão destaca a possível relação entre COVID-19 e AVC isquêmico pediátrico. O caso visa contribuir para a compreensão da possível ligação entre a COVID-19 e AVC em crianças, abordando o diagnóstico, tratamento e possíveis mecanismos subjacentes dessa associação.
Palavras-chave:
AVC isquêmico, Criança, COVID-19, Paresia.
ABSTRACT
This case report deals with an ischemic stroke in a 2-year-and-5-month-old child associated with COVID-19. The patient, initially presenting with paresis and facial paralysis, tested positive for the coronavirus. Additional examinations suggest an acute vascular event without apparent risk factors. The discussion highlights the potential relationship between COVID-19 and pediatric ischemic stroke. The case aims to contribute to the understanding of the possible link between COVID-19 and stroke in children, addressing diagnosis, treatment, and potential underlying mechanisms of this association.
Keywords:
Ischemic stroke, Child, COVID-19, Paresis.
INTRODUÇÃO
O acidente vascular cerebral (AVC) em crianças é definido como episódio agudo de súbita oclusão ou ruptura de vasos cerebrais resultando em disfunção cerebral focal levando a déficits neurológicos clínicos, com duração maior do que 24 horas com alteração nos exames de imagem. Dados sugerem que o AVC é um pouco mais comum do que o tumor cerebral nesse grupo de pacientes, com uma incidência de 2 a 13 por 100.000 crianças ao ano. Apesar dos esforços para aumentar a conscientização sobre o AVC em crianças, essa condição é frequentemente negligenciada como causa dos sintomas pelos profissionais de saúde e pelas famílias1. O atraso no diagnóstico é apenas uma das questões relacionadas ao cuidado das crianças com AVC. Pode ser isquêmico (55%), por embolia ou trombose arterial ou venosa e o infarto lacunar ou hemorrágico (45%), por hemorragia intracerebral (80%) (malformações vasculares) ou subaracnóidea (20%). Diferente do adulto em que predomina o tipo isquêmico, a criança é mais suscetível à hemorragia. Nestas, o AVC é uma das dez principais causas de morte, cerca de 10% a 20% falecem da doença. Por isso é uma emergência médica, eventualmente cirúrgica, em que as terapias dependentes de tempo demonstram ser bem-sucedidas. O tratamento da fase aguda do AVC está intimamente ligado ao conceito de atendimento de emergência2.
De acordo com o IPSS, o AVC pediátrico divide-se em três tipos:
1. O perinatal: da 20ª semana de idade gestacional até o 28º dia de vida;
2. O infantil: acima do 28º dia de vida até 18 anos;
3. Presume-se que tenha ocorrido no período perinatal (associado à paralisia cerebral do tipo hemiparético).
Significativas diferenças são observadas entre os grupos perinatal e infantil. Além da incidência, que é mais frequente no perinatal, a recorrência no infantil é semelhante à do adulto: 25% podem apresentar recorrência do AVC, quando tratadas previamente, e 50% quando não. No perinatal, apesar de ser mais frequente, sua recorrência é baixa (1% a 2%).
Os fatores de risco são diferentes entre adultos e crianças. As evidências atuais apoiam a hipótese de que a patogênese do AVC na infância é multifatorial, e muitas vezes há uma confluência de fatores de risco hereditários que aumentam a suscetibilidade de uma criança ao AVC e fatores de risco adquiridos que podem desencadear um AVC em um determinado momento3. Uma ampla gama de fatores sistêmicos subjacentes foi relacionada ao AVC na infância, dentre eles: cardiopatias, anemia falciforme, distúrbios de coagulação, malformações vasculares, arteriopatias, vasculites sistêmicas, infecções agudas, infecções crônicas, doenças genéticas e metabólicas, linfomas e outros tipos de câncer, trauma de crânio e cervical, coagulopatias hereditárias e trombofilias, além do uso de drogas. Adicionalmente, em cerca de 1/3 dos casos não é possível identificar uma causa subjacente4.
A maioria das crianças infectadas pelo coronavírus apresenta sintomas leves a moderados. No entanto, relatos de complicações graves indicam que a infecção por COVID-19 também pode ter consequências, como o AVC pós-COVID, para as quais os profissionais de saúde, pais e cuidadores devem estar atentos para permitir um diagnóstico e tratamento mais rápidos5.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo masculino, branco, com 2 anos e 5 meses de idade, foi admitido no pronto-socorro com queixa de paresia em membro superior esquerdo, paralisia facial esquerda, sialorreia e coriza, que foram notados pela família há 1 dia. A mãe relata ter visitado outro serviço de atenção à saúde, onde foi conduzida com observação e a realização de um estudo de uma tomografia computadorizada de crânio, com nova tomografia de crânio de controle após 24 horas.
Posteriormente, por falta de especialidade de neurologia na origem, foi encaminhado para o serviço, onde uma terceira tomografia de crânio foi realizada, após 72 horas do início dos sintomas, evidenciando hipodensidade nucleocapsular em região da artéria cerebral média direita (ACMD). Foi avaliado pela neurocirurgia, com conduta expectante da especialidade. A mãe nega pródromos gripais e adoecimentos na família.
Paciente é recém-nascido a termo, com parto vaginal sem intercorrências e incompatibilidade Rh no nascimento. A mãe recebeu imunoglobulina e não foi necessária a internação. O paciente tem diagnóstico de lactente sibilante, sem outras comorbidades. A mãe relata que o paciente tem 2 irmãos mais velhos, hígidos, e nega história de tromboses ou abortamentos, nega AVC em jovens na família, nega alergias e internações prévias. Refere uso de salbutamol em crises, sem uso de qualquer outro medicamento.
Ao exame físico, a criança com peso de 14,150kg e estatura de 87cm, apresentava bom estado geral, corado, hidratado, afebril, acianótico, acordado, orientado. Apresentação neurológica: responde ao examinador com frases simples. Pupilas isofotorreagentes, movimentação ocular extrínseca preservada com hemiparesia completa proporcionada à esquerda. Apresentava andar com dificuldade, dificuldade para erguer a perna esquerda, além de dificuldade para sorrir mostrando os dentes à esquerda. Não apresentava dificuldade em franzir a testa. Sem outras alterações no exame físico.
Dado anamnese e exame físico, foi aventada a possibilidade de AVC isquêmico nucleocapsular em território de ACM direita, com Ictus: entre os dias 8 e 9/04, de etiologia a esclarecer (paciente COVID +). Interrogada a possibilidade de arteriopatia cerebral transitória, cardioembólico, arterite inflamatória e vasculite.
EXAMES COMPLEMENTARES
- (9/04) - TC crânio: Sem alterações.
- (10/04) - TC de crânio contrastada: Hipodensidade cortico subcortical na região nucleocapsular direita, notadamente na cabeça do núcleo caudado, determinando leve efeito expansivo nas estruturas regionais, caracterizado por redução do corno frontal do ventrículo lateral direito. Não há sinais de hemorragia aguda. O conjunto de achados é sugestivo de evento vascular isquêmico recente, em território de artéria cerebral média. Não se evidenciam áreas de realce anômalo ao meio de contraste.
- (11/04) SARS-Cov-2: POSITIVO / Teste rápido de influenza: negativo / VSR: negativo.
- (11/04) LCR: Límpido, incolor, proteínas 27, glicose 65,7, leuco 4, hemácias 0.
- C4 28 / C3 121 / Antiestreptolisina O <100 / IgM 115 / IgG 733 / IgA 46 / CK 23 / CKMB 18 / PCR <1 / Troponina T 7.64.
- ECG: ritmo sinusal, sem alterações.
- (12/04) Toxo IgG e IgM NR / TSH 0,85 / T4L 1,73 / CMV IgG NR e IgM R / TTSif NR / BT 0,64 / C4 28,0 / C3 121,0 / Estreptolisina O <100,0 / Fibrinogênio 250,23 / D-Dímero 190 / ACANE NR / PCR CMV NEG / Mononucleose infecciosa NR / Hep B NR / Hep C NR / Hep A IgG R e IgM NR / HIV NR /
ECOCARDIOGRAMA PEDIÁTRICO TRANSTORÁCICO COM COLOR DOPPLER ANÁLISE SEGMENTAR SEQUENCIAL - CONCLUSÃO: FORAME OVAL PATENTE, SEM REPERCUSSÃO HEMODINÂMICA.
ANGIOTOMOGRAFIA COMPUTADORIZADA ARTERIAL CERVICAL E INTRACRANIANA
Análise: Hipodensidade na região nucleocapsular direita, acometendo o terço médio dos núcleos da base, com leve efeito expansivo. Não há sinais de hemorragia aguda. Discreta irregularidade parietal e reduçã o do calibre no segmento M1 da artéria cerebral média direita em comparaçã o à contralateral, mantendo fluxo preservado. Sem outras alterações no exame. Conclusão: Insulto vascular isquêmico recente na região nucleocapsular direita. Discreta irregularidade parietal e reduçã o do calibre no segmento M1 da artéria cerebral média direita em comparaçã o à contralateral, mantendo fluxo preservado.
DISCUSSÃO
Embora as crianças pareçam menos afetadas durante a doença aguda, podem ocorrer complicações pós-COVID, como a síndrome inflamatória multissistêmica em crianças (MIS-C), complicações neurológicas imunomediadas e outras condições imunomediadas.
As manifestações clínicas dos pacientes com coronavírus variam consideravelmente, desde infecções assintomáticas até o óbito6. Segundo um estudo inicial realizado em Wuhan, China, embora a grande parte dos sintomas causados pela COVID-19 eram respiratórios, 2,3% dos 214 pacientes hospitalizados apresentaram um quadro de acidente vascular cerebral isquêmico7.
A causa do AVC isquêmico associado à COVID-19 ainda não está clara, porém estudos anteriores sugeriram que tempestades de citocinas inflamatórias podem ser um gatilho para o estado de hipercoagulabilidade ou dano endotelial8. Além disso, vários estudos têm descrito os diferentes mecanismos pelos quais o SARS-CoV-2 pode causar distúrbios neurológicos e acidentes vasculares cerebrais. Muitos desses mecanismos se concentram na enzima conversora de angiotensina-2 (ACE-2), que é o local de ligação do SARS-CoV-2 e sua função como um gatilho para uma série de eventos que levam à vasoconstrição, hipertensão ou desequilíbrio da trombose. Outros estudos sugerem que os mecanismos mediados pelo sistema imunológico e a superexpressão de citocinas, estado de hipercoagulabilidade e tromboembolismo são causas potenciais de AVC9,10. É possível notar que a COVID-19 está intimamente relacionada ao AVC isquêmico, pois possui potenciais fatores que podem levar a um AVC.
Como a pesquisa de SAR-CoV-2 no líquido cefalorraquidiano (LCR) não é sempre possível, a maioria dos estudos considera o diagnóstico presumido quando o paciente tem sinais neurológicos clínicos e sorologia positiva para COVID-1910.
No caso, foi um evento vascular agudo sem outros fatores de risco. Realizado teste COVID com resultado positivo, a criança foi mantida em internação de isolamento. Paciente evoluiu com melhora dos déficits neuromotores e da coriza. Exames laboratoriais e de imagem foram realizados para investigação da etiologia, descartando outras causas. Sendo a principal hipótese de AVC isquêmico por arteriopatia cerebral transitória, de etiologia infecciosa associada à COVID-19.
REFERÊNCIAS
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1. UNICAMP, Faculdade de Ciências Médicas (FCM) - Campinas - São Paulo - Brasil
2. EPM/UNIFESP, Departamento de Neurologia Vascular, NeuroIntensivismo e Neurossonologia - São Paulo - SP - Brasil
3. UNICAMP, Departamento de Pediatria / FCM / UNICAMP - Campinas - São Paulo - Brasil
4. UNICAMP, Departamento de Neurologia Setor de Neurologia Infantil - Campinas - São Paulo - Brasil
Endereço para correspondência:
Victor Hugo Alves Diniz
UNICAMP, Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
R. Tessália Vieira de Camargo, 126 - Cidade Universitária
Campinas - SP, 13083-887
E-mail: victordinizhugo123@gmail.com; v254769@dac.unicamp.br
Data de Submissão: 10/10/2023
Data de Aprovação: 14/02/2024