ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2025 - Volume 15 - Número 1

Hipoglicemia hiperinsulinêmica da infância refratária ao uso de diazóxido

Hyperinsulinemic hypoglycemia of childhood refractory to the use of diazoxide in an infant: case report

RESUMO

INTRODUÇÃO: A hipoglicemia hiperinsulinêmica da infância é uma patologia rara, grave, porém é a etiologia mais comum de hipoglicemia persistente em crianças e neonatos. Pode ser congênita, secundária, associada a doenças metabólicas e síndromes genéticas, como a Beckwith-Wiedmann.
OBJETIVO: Relatar o caso de hipoglicemia refratária ao uso de diazóxido e descrever a importância do diagnóstico e da terapêutica.
RELATO DE CASO: Lactente do sexo feminino em investigação de hiperinsulinismo congênito não responsivo a diazóxido, com imagem sólido-cística em topografia de pâncreas. Foi realizada pancreatectomia caudal, porém paciente continuou com episódios de hipoglicemia e evoluiu com distensão abdominal e intolerância à dieta enteral. Nova tomografia computadorizada de abdome mostrou sinais de ressecção da cauda pancreática com alças intestinais, sem sinais de tumoração, diagnosticando como nesidioblastose. Paciente manteve quadro de hipoglicemia mesmo com uso de octreotide, sendo encaminhada à cirurgia para pancreatectomia subtotal com exérese de tumor retroperitoneal. Após estabilização do quadro em unidade de terapia intensiva, recebeu alta para seguimento em ambulatório de endocrinologia pediátrica e investigação para a síndrome de Beckwith-Wiedmann.
CONCLUSÃO: O diagnóstico é clínico e a terapêutica consiste no uso de diazóxido via oral, visando prevenir crises hipoglicêmicas e evitar repercussões sistêmicas. Pelo potencial de gravidade, a demora para o diagnóstico e tratamento corretos pode levar a complicações para toda a vida, como danos neurológicos graves.

Palavras-chave: Hipoglicemia, Hiperinsulinismo congênito, Síndrome de Beckwith-Wiedemann.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Hyperinsulinemic hypoglycemia in childhood is a rare and serious pathology, but it is the most common etiology of persistent hypoglycemia in children and neonates. It can be congenital, secondary, associated with metabolic diseases and genetic syndromes, such as Beckwith-Wiedmann.
OBJECTIVE: To report a case of hypoglycemia refractory to the use of diazoxide and describe the importance of diagnosis and therapy.
CASE DISCUSSION: female infant undergoing investigation for congenital hyperinsulinism unresponsive to diazoxide, with solid-cystic image in pancreas topography. A caudal pancreatectomy was performed, but the patient continued to experience episodes of hypoglycemia and developed abdominal distension and intolerance to the enteral diet. A new abdominal computed tomography showed signs of resection of the pancreatic tail with intestinal loops, without signs of tumor, diagnosing it as nesidioblastosis. The patient maintained hypoglycemia even with the use of Octreotide, and was referred to surgery for subtotal pancreatectomy with excision of the retroperitoneal tumor. After stabilization in the intensive care unit, he was discharged for follow-up in a pediatric endocrinology outpatient clinic and investigation for Beckwith-Wiedmann syndrome.
CONCLUSION: The diagnosis is clinical and the therapy consists of the use of oral diazoxide, aiming to prevent hypoglycemic crises and avoid systemic repercussions. Due to its potential severity, delays in correct diagnosis and treatment can lead to lifelong complications, such as severe neurological damage.

Keywords: Hypoglycemia, Congenital hyperinsulinism, Beckwith-Wiedemann syndrome.


INTRODUÇÃO

A hipoglicemia hiperinsulinêmica da infância (HHI) é rara, mas é a principal causa de hipoglicemia persistente em crianças e neonatos1. A incidência é de 1 a cada 50.000 nascimentos2, mas, em algumas populações, pode-se ter 1 acometido a cada 2.500-3.000 nascidos vivos2,3. Ocorre principalmente em meninos, neonatos e lactentes1. Uma vez diagnosticada, necessita ser rapidamente tratada, visto cursar com deterioração do sistema nervoso central, prejudicando o desenvolvimento neuropsicomotor. A hipoglicemia possui múltiplas etiologias e alterações moleculares, sendo o aumento difuso das células beta-pancreáticas, conhecido como nesidioblastose, o mais comum.


RELATO DE CASO

AT, 3 meses, prematura de 29 semanas, admitida em 24/05/2021 para investigar hiperinsulinismo congênito não responsivo a diazóxido. Usava octreotide 34 mcg/kg/dia e possuía ultrassonografia e tomografia computadorizada (TC) de abdome com imagem sólido-cística em topografia de pâncreas. Assim, realizado pancreatectomia caudal em 01/06/2021 e laudado como adenoma seroso microcístico do pâncreas com exérese completa da lesão. A imuno-histoquímica revelou cisto seroso benigno do pâncreas. Após cirurgia, manteve hipoglicemia e evoluiu com distensão abdominal e intolerância à dieta enteral. Nova TC de abdome (16/06/2021) evidenciou lesão entre a topografia da adrenal esquerda, medindo cerca de 3,0 cm no maior eixo axial, com suspeita para neoplasia (Figuras 1 e 2).









Ressonância magnética de abdome em 22/06/2021 mostrou fígado com dimensões discretamente aumentadas e lesões focais esparsas com restrição à difusão, aparentemente hipervascularizadas, sugestivas de acometimento neoplásico secundário; lesão sólida com necrose e foco hemático central, medindo 2,6 cm, na loja adrenal esquerda, suspeita para neoplasia. Encaminhada ao Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer em São Paulo em 06/07/2021, onde realizou TC abdome com sinais de ressecção da cauda pancreática sem sinais de tumoração, descartando neoplasia e realizado diagnóstico de nesidioblastose. No retorno, em 20/07/2021, manteve hipoglicemia com octreotide, sendo encaminhada à pancreatectomia subtotal (80%) com exérese de tumor retroperitoneal e biópsia hepática em 03/08/2021. O laudo anatomopatológico descreveu linfangioma pancreático, hiperplasia adrenal, cirrose com colestase moderada e proliferação de ductos biliares. No pós-operatório em UTI pediátrica, apresentou distúrbios hidroeletrolíticos múltiplos (hiponatremia, hipopotassemia, hipomagnesemia, hipocalcemia), sugestivo de Insuficiência Adrenal Transitória, iniciando hidrocortisona intravenosa. Realizado exoma apresentando gene PTCH2 com variante de significado incerto. Após estabilização do quadro, admitida em 04/03/2022 na enfermaria, recebendo alta no dia 14/03/2022 e encaminhada ao ambulatório de endocrinologia pediátrica para seguimento. Em maio de 2023, apresentou exame genético com hipermetilação em mosaico do centro IC1, hipometilação em mosaico do centro IC2 e número de cópias normal das regiões estudadas em 11p15 compatíveis com uma dissomia uniparental paterna, confirmando o diagnóstico genético de síndrome de Beckwith-Wiedemann.


DISCUSSÃO

Possui etiologia congênita, exemplificada pelas mutações nos genes ABCC8, KCNJ11, HNF4A, HNF1A, GLUD1, GCK, HADH1, UCP2, MCT1, HK1 e PGM1, que não costumam responder ao uso de diazóxido2,4. As formas secundárias são geralmente transitórias e relacionadas ao diabetes mellitus gestacional, isoimunização Rh, asfixia perinatal e restrição de crescimento intrauterino. Em relação às doenças metabólicas, têm-se a tirosinemia tipo 1 e as doenças da glicosilação. E, por último, as síndromes genéticas associadas são Soto, Kabuki, Usher, Timothy, Costello, Trissomia do 13, mosaicismo de Turner e Beckwith-Wiedemann, a principal2,4.

A HHI deriva de secreção anormal de insulina, apesar do nível de glicemia baixo2, que pode estar associado a 3 possíveis alterações1: defeito da sinalização de insulina nas ilhotas pancreáticas com células beta-pancreáticas normais; aumento de células beta-pancreáticas; ou defeito nas células beta-pancreáticas. Este último é dividido em alterações dos canais de potássio ou alterações metabólicas2,5. Os canais de potássio ATP dependentes estão presentes nas células beta-pancreáticas e possuem 4 canais de potássio (codificada pelo gene KCNJ11) e 4 receptores 1 de sulfolinureia (SUR1) (codificado pelo gene ABCC8). Quando funcionam normalmente, desencadeiam a exocitose de insulina. A mutação do SUR1, implicada na HHI, leva ao fechamento dos canais de cálcio, secretando anormalmente a insulina5. Em relação às alterações metabólicas, há defeito de três enzimas: glutamato desidrogenase, glicoquinase e hidroxiacil-CoA-desidrogenase de cadeia curta2,5. Os pacientes com defeitos nas enzimas glutamato desidrogenase e hidroxiacil-CoA-desidrogenase apresentam resposta ao diazóxido, exceto o defeito pela glicoquinase, pois reduzem o limiar para a secreção de insulina e podem suprimir o efeito do diazóxido3. Muitos genes envolvidos na HHI estão relacionados às formas monogênicas do diabetes (MODY), incluindo o defeito da glicoquinase levando ao MODY 2 e mutações dos genes HNF4A e HNF1A que estão associados ao MODY 1 e MODY 33.

À histologia, pode ser focal, difusa ou atípica2,5. A forma focal corresponde a 30%-40% das lesões e representa regiões pancreáticas com adenomatose, sendo casos esporádicos; a difusa, em 60%-70% dos casos, nomeada como nesidioblastose, pode ser familiar ou esporádica; já a atípica é a fusão das duas.

As manifestações clínicas são marcadoras da HHI, mas inespecíficas na faixa etária neonatal. Os neonatos podem apresentar dificuldade na amamentação, letargia, palidez, apneia, má perfusão tecidual, hipotermia, convulsões, macrossomia (se hiperinsulinemia materna), cardiomiopatia hipertrófica e hepatomegalia1-3,5.

O diagnóstico é baseado em critérios clínicos1: hipoglicemia não cetótica (glicemia abaixo de 36 mg/dl) pós-prandial; hiperinsulinemia (acima de 3 mU/L) e necessidade de rápida infusão de glicose (acima de 10 mg/kg/min) para manter a glicemia acima de 54 mg/dl. Se diagnóstico incerto, pode-se infundir glucagon intravenoso na dose de 0.03 mg/kg e avaliar a glicemia em 0, 10, 20 e 30 minutos após. O nível glicêmico para confirmação é acima de 30 mg/dl2. O exame padrão-ouro2 é a tomografia por emissão de pósitrons com dopamina e flúor-18-dihidroxifenilalanina (PET-CT ((18)F-DOPA), porém indisponível em muitos serviços.

O diagnóstico diferencial inclui uso de drogas maternas na gestação (beta-bloqueadores e ácido valproico), prematuridade, insuficiência adrenal, sepse, insulinoma (hipoglicemia hiperinsulinêmica pancreatogênica), entre outros2,4. Assim, solicita-se: hemograma, gasometria arterial, glicemia, lactato, corpos cetônicos, peptídeo-C, ácidos graxos, eletrólitos, função renal, hormônio do crescimento, cortisol e hormônios tireoidianos2.

O manejo visa prevenir crises hipoglicêmicas e evitar repercussões2. Cursa com infusão intravenosa de glicose e glucagon na emergência, seguido de diazóxido 5 a 20 mg/kg/dia via oral a cada 8 horas. Esta se liga ao SUR12 e mantém os canais de potássio ATP abertos, evitando a secreção de insulina pelas células beta-pancreáticas, contudo pode causar retenção hídrica, insuficiência cardíaca, leucopenia, eosinofilia, hipertricose e, se prematuridade extrema associada a cardiopatias e pneumopatias, induzir hipertensão pulmonar, reabertura de ducto arterioso, trombocitopenia e hiperuricemia4. Associa-se ao diazóxido, a hidroclorotiazida, 7 a 10 mg/kg/dia via oral a cada 12 horas, pelo efeito sinérgico e hiperglicemiante5. Se não houver resposta, usa-se octreotide, que atua nos receptores 2 e 5 da somatostatina, inibindo a mobilização de cálcio intracelular, reduzindo a secreção de insulina pelas células beta-pancreáticas4. Inicia-se com 5 μg/kg/dia por via subcutânea ou intravenosa, aumentando até 30–35 μg/kg/dia. Outras medicações descritas em literatura são lanreotide (análogo da somatostatina), glucagon, acarbose, sirolimus e everolimus (ambos inibidores de mTOR). O nifedipino parece causar efeitos benéficos, mas carece de estudos1.

Os pacientes precisam alimentar-se em horários regulares com suplementação de fibras, proteínas, carboidratos de longa metabolização e gorduras. Há estudos sugerindo que a HHI propicia maior suscetibilidade do sistema nervoso a manifestações de hipoglicemia, sendo a dieta cetogênica uma das formas de prevenção2.

Em falha terapêutica medicamentosa, indica-se tratamento cirúrgico1,2, sendo importante diferenciar se o comprometimento pancreático é difuso ou focal. Pode-se utilizar ressonância magnética, ultrassonografia intraoperatória ou TC com contraste para diagnosticar lesões, como insulinomas. Em imagens negativas para lesões focais, o teste de estimulação com cálcio e avaliação da insulina na artéria gastroduodenal costuma ser recomendado. Caso seja focal, a excisão é curativa, geralmente acometendo a cauda e o corpo do pâncreas. Em lesões difusas, a terapêutica medicamentosa costuma ser pouco resolutiva, priorizando a pancreatectomia subtotal1,2. A longo prazo, pacientes podem desenvolver diabetes mellitus antes da puberdade, insuficiência pancreática e dano ao ducto biliar2.

Os pacientes portadores de HHI geralmente têm lesões difusas, dificuldade em deglutição e sucção; atraso motor, de fala, da linguagem e visão; convulsões; espasmos; microcefalia, fraqueza muscular e até paralisia cerebral2, consequências que impactam negativamente a vida. O principal seria o desenvolvimento neuropsicomotor, que é mais grave quando iniciado antes dos 7 dias de vida e usada dose máxima de diazóxido. São pacientes que podem depender de cuidados multidisciplinares a longo prazo, contudo ainda há poucos estudos na literatura que avaliem formas de repercussões e impactos na qualidade de vida dos pacientes.


CONCLUSÃO

A HHI é uma entidade rara, grave e a principal causa de hipoglicemia na infância. Apresenta quadro clínico inespecífico no período neonatal que dificulta o diagnóstico precoce, necessitando de exames complementares para sua elucidação. A terapêutica envolve o uso de diazóxido via oral para prevenir crises hipoglicêmicas e evitar repercussões sistêmicas. O atraso no tratamento repercute em múltiplos sistemas orgânicos, principalmente o sistema nervoso central, que está em rápido desenvolvimento durante esse período, levando a danos cerebrais graves e, às vezes, irreversíveis.


REFERÊNCIAS

1. Goel P, Choudhury SR. Persistent hyperinsulinemic hypoglycemia of infancy: An overview of current concepts. J Indian Assoc Pediatr Surg. 2012;17(3):99-103. DOI: https://doi.org/10.4103/0971-9261.98119.

2. Krawczyk S, Urbanska K, Biel N, Bielak MJ, Tarkowska A, Piekarski R, et al. Congenital Hyperinsulinaemic Hypoglycaemia - A Review and Case Presentation. J Clin Med. 2022 Oct 12;11(20):6020. DOI: https://doi.org/10.3390/jcm11206020.

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4. Lopes AA, Miranda AC, Maior MS, de Mello RV, Bandeira FA. Nesidioblastosis Associated with Pancreatic Heterotopia as a Differential Diagnosis of Hypoglycemia: A Literature Review and Case Report. Am J Case Rep. 2020 Jul 6;21:e922778. DOI: https://doi.org/10.12659/AJCR.922778.

5. Liberatore Junior RDR, Martinelli Junior CE. Hipoglicemia hiperinsulinêmica da infância. Arq Bras Endocrinol Metab. 2011Apr;55(3):177-83. DOI: https://doi.org/10.1590/S0004-27302011000300001.










1. PUC-Campinas, Pediatria - Campinas - São Paulo - Brasil
2. Iamspe, Clínica Médica - São Paulo - São Paulo - Brasil
3. PUC-Campinas, Pediatria e Endocrinologia - Campinas - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:
Ana Beatriz Charantola Beloni
PUC-Campinas
Av. John Boyd Dunlop, S/N - Jardim Londres
Campinas, SP, Brasil. CEP: 13034-685
E-mail: biacbeloni@gmail.com

Data de Submissão: 31/10/2023
Data de Aprovação: 15/01/2024