ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2025 - Volume 15 - Número 1

Aplasia pura de células brancas em crianças: relato de dois casos

Children's pure white cell aplasia: two cases report

RESUMO

A aplasia pura de células brancas é uma rara inibição da granulopoiese, com megacariopoiese e eritropoiese normais, apresentando-se como uma neutropenia grave. O mecanismo patológico e as causas ainda são pouco conhecidas. Infecção recorrente é a complicação mais frequente dessa doença, sendo a sepse a principal causa de óbito. Este é o primeiro relato de caso de aplasia pura de células brancas em crianças, apresentando dois casos de pacientes pediátricos com manifestações semelhantes, mas desfechos diferentes, tendo por objetivo contribuir para um diagnóstico precoce e manejo clínico adequado dos pacientes acometidos, com a discussão de possíveis complicações da doença.

Palavras-chave: Agranulocitose, Doenças hematológicas, Pediatria, Neutropenia febril.

ABSTRACT

Pure white cell aplasia is a rare inhibition of granulopoiesis, with normal megakaryopoiesis and erythropoiesis, presenting as severe neutropenia. The pathological mechanism and causes are still poorly understood. Recurrent infection is the most frequent complication of this disease, with sepsis being the main cause of death. This is the ?rst case report of pure white cell aplasia in children, presenting two cases of pediatric patients with similar manifestations but different outcomes, aiming to contribute to an early diagnosis and adequate clinical management of affected patients, with the discussion of possible complications of the disease.

Keywords: Hematologic diseases, Agranulocytosis, Pediatrics, Febrile neutropenia.


INTRODUÇÃO

Aplasia pura de células brancas (APCB) é uma rara inibição da granulopoiese, mantendo normais a megacariopoiese e a eritropoiese1,2, apresentando-se como neutropenia grave3. O mecanismo patológico é pouco conhecido4. Algumas evidências sugerem a presença de autoanticorpos contra receptores da maturação dos mielócitos5,6 e um possível envolvimento do sistema complemento e das células T1,6. Não existe causa definida, podendo estar relacionada a doenças autoimunes, infecciosas, medicamentos ou timomas7. A complicação mais frequente da APCB é infecção recorrente3, sendo a sepse a principal causa de óbito1.

Os relatos na literatura de APCB são em adultos, não havendo publicações suficientes na população pediátrica para embasar o tratamento em crianças, sendo feita extrapolação das descrições em adultos, em que é relatada a remoção do agente agressor7,8, além de imunossupressão com corticosteroides, ciclosporina, imunobiológicos, fator estimulante de colônias granulocíticas (G-CSF), imunoglobulina (IGIV), plasmaférese4-7,9 e transplante de medula óssea1,3. Importante salientar que o uso de G-CSF isolado é ineficaz1,6.

Objetivando contribuir com diagnóstico precoce e manejo clínico adequado dos pacientes acometidos, descrevemos a evolução de dois pacientes pediátricos com aplasia pura de células brancas.


CASO 1

Masculino, 11 anos, previamente hígido, em junho de 2020 iniciou febre, otalgia, odinofagia e linfonodomegalia cervical. Iniciado antibioticoterapia oral, mas manteve febre e evoluiu com prostração, tosse, lesões bolhosas em axilas, diarreia, dor perianal e neutropenia grave, sendo internado para antibioticoterapia venosa. Realizado mielograma e biópsia de medula óssea (BMO) que descartou doença neoplásica e evidenciou intensa redução de precursores mieloides, estando o setor eritroide e megacariocítico normais, caracterizando agranulocitose, compatível com APCB. Recebeu G-CSF sem resposta, sendo iniciado metilprednisolona 2mg/kg/dia e ciclosporina 5mg/kg/dia. Evoluiu com abscesso perirretal fistulizado para o reto, justificando a ampliação da cobertura antibiótica. O sequenciamento de painel genético ampliado para erros inatos da imunidade não evidenciou mutações, apesar de dosagem sérica demonstrar deficiência de IgA. Após 22 dias de ciclosporina e corticoterapia, apresentou resposta medular com mielograma e BMO normais e recuperação granulocitária. Porém, manteve febre com dor abdominal e múltiplos abscessos esplênicos ao ultrassom, realizado aspirado por laparoscopia cuja análise direta sugeria fungo, sendo associado anfotericina B ao esquema imunossupressor. Porém, manteve febre e provas inflamatórias positivas, sendo indicado esplenectomia (Figura 1), mas pesquisa de fungo foi negativa na peça cirúrgica, sendo aventada hipótese de Síndrome Inflamatória da Reconstituição Imunológica (SIRI), com melhora completa da febre após cirurgia, sendo trocado antifúngico para fluconazol. Recebeu alta hospitalar após 64 dias de internação e seguiu em acompanhamento ambulatorial, com redução gradual de corticoterapia até suspensão após 2 meses da alta, mantendo uso de antifúngico por 6 meses e ciclosporina por 1 ano. No acompanhamento, evoluiu com lesão em fêmur esquerdo (Figura 1), suspeita de osteomielite crônica, porém cultura óssea negativa, corroborando a hipótese de a lesão óssea ser decorrente da SIRI na fase de recuperação medular. Atualmente, paciente com 15 anos, sem uso de medicação contínua, assintomático, em acompanhamento hematológico, não repetida análise medular por apresentar hemogramas de controle normais.





CASO 2

Masculino, 7 anos, previamente hígido, em janeiro de 2022 iniciou febre, tosse, coriza e vômitos, com teste rápido de COVID-19 positivo. Sem melhora do quadro, foi iniciado antibioticoterapia oral, porém evoluiu com volumosa linfonodomegalia cervical bilateral e neutropenia grave, sendo internado para antibioticoterapia venosa. Foi realizado mielograma e BMO, que descartou doença neoplásica e evidenciou agranulocitose, com diagnóstico de APCB, sendo iniciado prednisona 2mg/kg/dia e ciclosporina 5mg/Kg/dia, porém como desenvolveu toxicidade hepática com encefalopatia e lesão renal aguda, foi suspenso a ciclosporina e prescrito IGIV 1g/kg/dose por 2 dias. Após melhora da função hepática, foi reintroduzido ciclosporina em dose mais baixa (2mg/kg/dia), apresentando resposta medular, com mielograma normal após 22 dias do início da terapia e 5 dias após retorno da ciclosporina. Evoluiu com enterorragia, epistaxe, equimoses e petéquias, apresentando trombocitopenia grave sem resposta a transfusão de plaquetas, sendo feito IGIV 1g/kg/dose por 2 dias e pulsoterapia com metilprednisolona para tratamento de Púrpura Trombocitopênica Imune (PTI) concomitante. Recebeu alta após 60 dias de internação, em uso de ciclosporina e redução gradual de corticoterapia.

Após 29 dias em domicílio, apresentou febre, diarreia, vômitos e dor abdominal, com recidiva da neutropenia grave e tomografia de abdome sugestiva de apendicite. Foi submetido a apendicectomia e antibioticoterapia de amplo espectro. Mielograma e BMO compatível novamente com APCB. Foi reiniciado corticoterapia e tentado aumentar a dose de ciclosporina para 3mg/kg/dia, porém houve novamente acometimento hepático, sendo retomada dose tolerada de 2mg/kg/dia e prescrito rituximabe. Após 6 dias do início do imunobiológico, já com granulócitos normais, apresentou retorno da febre e dor abdominal, com tomografia de abdome demonstrando múltiplas lesões em fígado e baço sugestivas de microabscessos (Figura 2), quadro compatível com candidíase sistêmica e provável SIRI, sendo iniciado micafungina, à qual apresentou reação alérgica, sendo trocada por fluconazol. Mielograma e BMO de controle normais. Completou o esquema de 4 doses do rituximabe e iniciou redução gradual de corticoterapia ambulatorialmente. Recebeu alta após 42 dias desta internação, sendo suspensa a ciclosporina após 7 meses de uso, considerando que mantinha níveis subterapêuticos da medicação. Completou 6 meses de uso do fluconazol e manteve-se assintomático, com hemogramas de controle normais e tomografia de abdome com as lesões hepatoesplênicas calcificadas (Figura 2).





Em julho de 2023, apresentou novo quadro de febre com amigdalite, linfonodomegalia cervical, massa cervical com compressão extrínseca de via aérea e neutropenia grave. Mielograma e BMO compatíveis novamente com APCB. Iniciado antibioticoterapia de amplo espectro, corticoterapia, ciclosporina, IGIV e rituximabe semanal. A biópsia da massa cervical descartou neoplasia, mas foi positiva para Candida parapisilosis, sendo acrescentado anfotericina B ao esquema antimicrobiano, além de aciclovir para infecção por herpes vírus. No entanto, manteve febre persistente, aumento da massa cervical e insuficiência respiratória por compressão extrínseca. Em mielogramas de controle, mantinha APCB a despeito do tratamento, sem resposta medular, evoluindo com choque séptico refratário e óbito.


DISCUSSÃO

APCB é uma doença rara, de causa e fisiopatologia pouco conhecidas, em que há ausência de células precursoras mieloides na medula óssea, mantendo a eritropoiese e a megacariopoiese preservadas1, evoluindo com infecções de repetição e neutropenia grave. Toda a literatura encontrada foi de pacientes adultos com idade média de 56 anos3, descrevendo APCB relacionada a malignidade6,7, autoimunidade5, uso de medicações10 ou doenças infecciosas6, sendo este provavelmente o primeiro relato em faixa etária pediátrica.

Os principais diagnósticos diferenciais são doenças que podem cursar com neutropenia, como infecções, neoplasias hematológicas, doenças reumatológicas como lupus eritematoso sistêmico (LES), síndrome hemofagocítica (SHF) e imunodeficiências.

Os dois casos deste estudo apresentaram-se inicialmente como uma infecção de via aérea e linfonodomegalia cervical, evoluindo com neutropenia febril. Em ambos, o mielograma e BMO foram compatíveis com APCB, mostrando agranulocitose, com setor eritroide e megacariocítico normais. Foram pesquisados diagnósticos diferenciais extensivamente, sendo descartadas: doenças neoplásicas pela BMO negativa e imunofenotipagem normal; descartadas doenças reumatológicas, com pesquisa de autoanticorpos negativa; painel genético para erros inatos da imunidade negativo; não cumpriram critérios para SHF, além de ausência de hemofagocitose na medula óssea; e apresentaram sorologias virais negativas, exceto pelo caso 2 que teve teste positivo para COVID-19 na primeira apresentação.

Corroborando descrição em literatura, o caso 1 não respondeu à monoterapia com G-CSF, ocorrendo recuperação de neutrófilos apenas após imunossupressão com corticoterapia e ciclosporina. O caso 2 apresentou toxicidade à ciclosporina, necessitando de subdose dessa medicação, além da realização de corticoterapia e IGIV. Este apresentou recidiva da doença, respondendo de forma mais sustentada após realização de rituximabe. Há também outros relatos mostrando trombocitopenia imune concomitante com APCB7, como ocorreu no caso 2.

Nos dois casos, após a recuperação dos neutrófilos, os pacientes mantiveram febre, apesar da terapia antimicrobiana, evoluindo com lesões multifocais hepatoesplênicas, de provável etiologia fúngica. Trata-se de candidíase disseminada, que não responde adequadamente aos antifúngicos e, que nos pacientes em fase de recuperação imunológica, pode representar uma forma de SIRI11,12, onde ocorre intensa liberação de citocinas, após longos períodos de agranulocitose com resolução rápida e exacerbada da neutropenia13,14. O tratamento recomendado é realizado com antifúngico (anfotericina B, equinocandina ou fluconazol), devendo-se manter fluconazol por tempo prolongado, até estabilização clínica ou calcificação das lesões multifocais12, por vezes sendo necessário esplenectomia quando não há melhora clínica, como ocorreu no caso 1. Além disso, estudos demonstram benefício no uso de corticoterapia concomitante14,15 naqueles pacientes que mantêm febre de difícil controle na SIRI, por exemplo com prednisona 0,5 a 1mg/kg/dia11, terapia também utilizada nos pacientes descritos.

O caso 1 não teve recidivas da doença, no entanto o caso 2 apresentou dois novos quadros compatíveis com APCB após apresentação inicial, não respondendo às terapias no último evento, evoluindo a óbito por sepse.

Os dois casos relatados demonstram as particularidades entre os quadros de uma mesma doença e a gravidade da patologia, com morbimortalidade alta e internações prolongadas. Por ainda não haver relatos prévios na população pediátrica, são necessários mais estudos para descrição de terapia apropriada para essa faixa etária.


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Data de Submissão: 06/11/2023
Data de Aprovação: 28/06/2024