ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2025 - Volume 15 - Número 1

Hipertricose generalizada exuberante em um lactente: relato de caso

Exuberant generalized hypertrichosis in an infant: case report

RESUMO

Resumo A hipertricose é caracterizada pelo crescimento excessivo de pelos em qualquer região corporal, podendo ocorrer de forma localizada ou generalizada. Esta última comumente está relacionada a síndromes genéticas ou uso de determinados fármacos. Este relato de caso apresenta um lactente com mucopolissacaridose tipo II que foi submetido a um transplante de medula óssea (TMO) e fez uso de ciclosporina, apresentando consequentemente um quadro exacerbado de hipertricose generalizada. O objetivo deste estudo é revisar as principais causas de hipertricose e discutir sobre as hipóteses que levam ao desenvolvimento dessa patologia.

Palavras-chave: Hipertricose, Mucopolissacaridose II, Ciclosporina, Dermatologia, Pediatria

ABSTRACT

Hypertrichosis is characterized by excessive hair growth in any body region, occurring either in a localized or generalized manner. The last one is commonly associated with genetic syndromes or use of specific drugs. This case report presents an infant with mucopolysaccharidosis type II who underwent a bone marrow transplant (BMT) and received cyclosporine, consequently exhibiting an exacerbated condition of generalized hypertrichosis. The aim of this study is to review the main causes of hypertrichosis and discuss hypotheses regarding the development of this pathology.

Keywords: Hypertrichosis, Mucopolysaccharidosis II, Cyclosporine, Dermatology, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

A hipertricose é uma condição caracterizada pelo crescimento excessivo de pelos em áreas não normalmente pilosas, podendo ocorrer de forma generalizada ou localizada (1). Em crianças, essa manifestação pode estar associada a diversas condições genéticas ou ser um efeito colateral de medicamentos (1,2). O presente relato descreve o caso de um paciente de 1 ano e 5 meses, portador de mucopolissacaridose tipo II, que apresenta quadro de hipertricose generalizada exacerbada após a realização de transplante de medula óssea (TMO) e uso de ciclosporina, que pode estar contribuindo para a exacerbação da condição. Este caso levanta a discussão sobre as possíveis causas da hipertricose em crianças, considerando tanto fatores genéticos quanto medicamentosos.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 1 ano e 5 meses de idade, vem à consulta em ambulatório de dermatologia com queixa de dermatite atópica leve na face. Sabidamente portador de mucopolissacaridose tipo II, diagnosticado ao nascimento através do sequenciamento completo do gene IDS. Foi submetido a transplante de medula óssea (TMO) há 6 meses. Atualmente, em uso de carvedilol 2,5mg/dia, ciclosporina 8mg/kg/dia, prednisolona 0,1mg/kg/dia em desmame, magnésio 200mg/ dia, sulfametoxazol-trimetoprima 200mg/dia, aciclovir 400mg/dia, ácido fólico e polivitamínico. Nega outras comorbidades. História gestacional sem intercorrências.

Ao exame físico, apresentava placas eczematosas na face e pele xerótica em todo o corpo. Hipertricose generalizada mais evidentenas regiões laterais demembros inferiores,faceextensora de membros superiores, dorso e face (Figuras 1 e 2). Mãe relata que paciente apresentava hipertricose desde o nascimento, no entanto não era tão exuberante, tendo ocorrido uma exacerbação do quadro após o TMO. Trouxe exames laboratoriais realizados no dia anterior mostrando dosagem de TSH de 2,16µUI/mL e T4 livre de 0,87ng/dL, ambos normais para a faixa etária, excluindo a possibilidade de hipotireoidismo.







DISCUSSÃO

Hipertricose é definida como crescimento excessivo de pelos em qualquer lugar do corpo, diferentemente do hirsutismo, que é o aumento de pelos em áreas da pele dependentes da ação dos hormônios androgênicos1,2. Ela pode ser classificada em hipertricose generalizada ou localizada1. A forma generalizada pode ser fruto de diversas síndromes genéticas1, tal qual a mucopolissacaridose tipo II3 ou secundária a medicamentos1,2. Algumas das drogas que mais comumente causam hipertricose generalizada são o ácido valproico, fenitoína, penicilamina, ciclosporina e o uso materno de minoxidil1,4.

O paciente em questão apresentava tanto a síndrome genética quanto a exposição à ciclosporina, que podem causar hipertricose. Acreditamos que o fator principal para o quadro atual seja a exposição à ciclosporina, uma vez que antes do início da medicação o quadro era muito mais brando.

A ciclosporina é um polipeptídeo cíclico lipofílico que inibe a transcrição de interleucina-2 em linfócitos T auxiliares2,5. Isso impede a ativação e proliferação dos linfócitos T auxiliares (CD4) e das células T citotóxicas (CD8), inibindo etapas importantes na via da imunidade celular5. Dessa forma, a ciclosporina tem propriedades imunossupressoras e é utilizada como terapia de primeira linha na profilaxia e tratamento da rejeição de transplantes5, como no TMO, ao qual o paciente em estudo foi submetido.

A hipertricose é um dos eventos adversos mais comuns relacionados ao uso da ciclosporina, mas geralmente os sintomas são leves a moderados e desaparecem com a redução da dose medicamentosa5, sendo que aproximadamente 50% dos pacientes apresentam hipertricose reversível, especialmente em face e parte superior do tronco4. Sua patogênese ainda não é totalmente compreendida, porém sabe-se que é um efeito colateral dose-dependente observado na população pediátrica principalmente nos primeiros seis meses de uso2. Nosso paciente encontrava-se no sexto mês de uso da ciclosporina, em conformidade com a literatura. Porém, não foi observada melhora da hipertricose com a redução gradativa da dose medicamentosa, levantando a possibilidade de que essa persistência dos sintomas possa estar relacionada tanto ao uso do fármaco quanto à presença da mucopolissacaridose tipo II. Além disso, quando altas doses de glicocorticoides orais são administradas por um longo período, há crescimento de pelos androgênio-independentes, principalmente no dorso de crianças4. Isso provavelmente se deve à conversão direta dos pelos na fase telógena para a fase anágena4. O paciente fez uso de doses gradativamente menores de prednisolona desde o TMO, o que também levanta a hipótese de um possível efeito desse medicamento no surgimento da hipertricose. O caso apresentado ilustra uma apresentação exuberante de hipertricose generalizada, evidenciando que pode haver uma multicausalidade nesse paciente. É importante conhecer as causas mais comuns de hipertricose em crianças e entender que em alguns casos podemos ter efeitos adicionais de diversos agentes causais.


REFERÊNCIAS

1. Saleh D, Yarrarapu SNS, Cook C. Hypertrichosis. [Updated 2022 Jul 4]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2023 Jan; [cited 2024 jan 2]. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK534854/.

2. Souza KF, Andrade PFB de C, Cassia F de F, Castro MCR de. Cyclosporine-induced childhood generalized hypertrichosis. An Bras Dermatol. 2020;95(3):402-3. DOI: https://doi.org/10.1016/j.abd.2019.08.027.

3. Wraith JE, Scarpa M, Beck M, Bodamer OA, De Meirleir L, Guffon N, et al. Mucopolysaccharidosis type II (Hunter syndrome): A clinical review and recommendations for treatment in the era of enzyme replacement therapy. Eur J Pediatr. 2008;167(3):267-77.

4. Camacho-Martίnez FM. Hypertrichosis. In: Blume-Peytavi U, Tosti A, Trüeb R. (editors). Hair Growth and Disorders. Springer, Berlin, Heidelberg: 2008. Cap. 16. DOI: https://doi.org/10.1007/978-3-540-46911-7_16.

5. Faulds D, Goa KL, Benfield P. Cyclosporin: A Review of its Pharmacodynamic and Pharmacokinetic Properties, and Therapeutic Use in Immunoregulatory Disorders. Drugs. 1993;45(6):953-1040.










1. Hospital Pequeno Príncipe, Pediatria, Curitiba, Paraná, Brasil
2. Hospital Pequeno Príncipe, Dermatologia Pediátrica, Curitiba, Paraná, Brasil

Endereço para correspondência:

Gabriel Bordignon
Hospital Pequeno Príncipe. Rua Desembargador Motta, 1070, Água Verde
Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80250-060.
E-mail: gbordela@gmail.com

Data de Submissão: 15/01/2024
Data de Aprovação: 13/03/2024