Caso Interativo - Ano 2016 - Volume 6 - Número 1
Uma criança com quadro súbito de anemia e trombocitopenia - Qual é o diagnóstico?
A child with acute anemia and thrombocytopenia - What is the diagnostic?
Un niño con cuadro súbito de anemia y trombocitopenia - ¿Cuál es su diagnóstico?
Paciente de sexo masculino, 7 anos e 2 meses, negro, apresentou quadro súbito de febre com temperatura axilar de 38 a 39ºC, com picos diários, de caráter intermitente, durante 12 dias, com difícil controle, mesmo com o uso de antitérmicos. No início do quadro, apresentou também cefaleia frontal e edema periorbitário bilateral. Negava vômitos e alterações neurológicas. No oitavo dia da doença, evoluiu com forte dor abdominal em região epigástrica, hiporexia, palidez e emagrecimento não quantificado. Procurou unidade de pronto atendimento, sendo encaminhado para internação hospitalar para investigação e tratamento. Na admissão, o hemograma revelava hemoglobina de 3,8 g/dl, plaquetas de 75.900/mm3 e teste de Coombs direto positivo. Diante do quadro de anemia grave, foi submetido à transfusão de concentrado de hemácias, porém durante o procedimento evoluiu com desconforto respiratório, calafrios e febre persistente, que motivaram suspensão da transfusão. Após dois dias, foi submetido à nova hemotransfusão, dessa vez sem intercorrências. Os exames realizados durante a internação estão listados na Tabela 1.
1) Diante dos sinais e sintomas descritos, qual a principal hipótese diagnóstica para o caso?
A) Síndrome da imunodeficiência adquirida.2) Quais exames podem ser solicitados para confirmar o diagnóstico?
B) Lúpus eritematoso sistêmico.
C) Doença de Hodgkin.
D) Síndrome de Evans.
E) Trombocitopenia imune. A síndrome de Evans é uma doença autoimune pouco frequente, de etiologia desconhecida. É caracterizada pela presença simultânea ou sequencial de anemia hemolítica autoimune (AHAI) e trombocitopenia imune (PTI)1,2. Esta síndrome pode ser classificada como primária ou idiopática quando não há nenhuma doença associada, e secundária quando está associada a outras doenças autoimunes1.
O curso clínico da doença é crônico, caracterizado por exacerbações e remissões frequentes ao longo da vida2.
A) Hemograma e teste de Coombs direto.3) A respeito do quadro apresentado pelo paciente durante a transfusão de concentrado de hemácias, pode-se afirmar que:
B) Anticorpos antinúcleo.
C) Transaminases e sorologias.
D) Biópsia de medula e USG de abdome.
E) Todas as opções acima. Nenhum exame laboratorial é conclusivo para o diagnóstico, e a suspeita deve se basear na avaliação clínica e laboratorial. Sinais e sintomas característicos de anemia hemolítica (palidez, letargia, icterícia, insuficiência cardíaca, em casos mais graves) e de trombocitopenia (petéquias, equimoses, hemorragia mucocutânea) podem estar presentes. O exame físico ainda pode revelar linfadenomegalia, hepatomegalia e/ou esplenomegalia3,4.
Nos exames laboratoriais, as provas de hemólise podem estar alteradas, como aumento de desidrogenase lática (LDH) e bilirrubinas, além de reticulocitose. O hemograma revela anemia usualmente normocítica e plaquetopenia4. Como a síndrome de Evans pode ser secundária a processos infecciosos diversos, a solicitação de sorologias diversas pode ser útil para complementação diagnóstica. Os exames laboratoriais do paciente são apresentados na Tabela 1.
O diagnóstico definitivo, no entanto, só pode ser confirmado após a investigação e exclusão de outras doenças possíveis. Uma variedade de testes pode ser solicitada para descartar outras condições. Esses testes podem incluir biópsia da medula óssea, ensaios de anticorpos adicionais, em casos mais complexos tomografia computadorizada de tórax, abdome e pelve5. O diagnóstico específico de Síndrome de Evans pode ser definido quando há AHAI, confirmado pelo teste de Coombs direto positivo, e PTI simultaneamente1,5.
A) Trata-se de provável reação transfusional aguda do tipo hemolítica e a suspensão da transfusão foi adequada.4) Como deve ser a terapia transfusional em pacientes com síndrome de Evans?
B) Trata-se de provável reação transfusional por contaminação da bolsa do concentrado de hemácias por bactérias, e o paciente deveria ter recebido antibioticoterapia.
C) Trata-se de reação transfusional aguda, porém o paciente poderia ter sido medicado com sintomáticos e a transfusão ser retomada após melhora.
D) Como o paciente apresentou desconforto respiratório, a principal hipótese é que a reação transfusional seja uma injúria pulmonar aguda relacionada a transfusão (TRALI).
E) A reação transfusional apresentada não teria ocorrido se o paciente tivesse recebido concentrado de hemácias leucorreduzidas ou filtradas. O quadro descrito, dentro do contexto clínico apresentado pelo paciente, é sugestivo de reação transfusional aguda do tipo hemolítica, estando, nesse caso, indicada a suspensão da transfusão e notificação do caso para investigação de uma possível transfusão de eritrócitos incompatíveis. A contaminação da bolsa por bactéria e a TRALI são mais incomuns e com curso clínico mais grave. A filtração ou leucorredução da bolsa não impedem a ocorrência da reação hemolítica aguda.
A) Não existe necessidade de transfundir paciente com síndrome de Evans.5) Qual deve ser o tratamento inicialmente adotado para a síndrome de Evans?
B) A dificuldade em encontrar uma bolsa compatível é rara.
C) Reações hemolíticas ocorrem por incompatibilidade entre os aloanticorpos eritrocitários.
D) A incompatibilidade causada por autoanticorpos tem relação com a sobrevivência das hemácias transfundidas.
E) A decisão de transfundir o paciente é baseada apenas nos testes de compatibilidade. Pacientes com AHAI frequentemente têm anemia de tal gravidade que transfusões de concentrado de hemácias podem ser necessárias. Esses pacientes são um desafio, pois é difícil encontrar sangue compatível quando os autoanticorpos no soro do paciente reagem com todas as células vermelhas do sangue6. Dessa forma, a prova cruzada entre o sangue do paciente e o sangue da bolsa candidata pode ser positiva devido à reação dos autoanticorpos com as hemácias do próprio paciente, e não do doador, dificultando a localização de uma bolsa compatível.
O erro mais comum na orientação terapêutica de pacientes com AHAI é a relutância em transfundi-los devido à incerteza do risco e benefício da transfusão de unidades "incompatíveis" devido à presença dos autoanticorpos. É esperado que reações hemolíticas graves ocorram quando há incompatibilidade dos aloanticorpos eritrocitários, ou seja, entre os anticorpos do receptor e as hemácias do doador. Porém, quando a incompatibilidade é causada por autoanticorpos, a sobrevivência das hemácias transfundidas é similar à do próprio paciente e pode oferecer um benefício transitório7,8.
Portanto, a decisão de transfundir o paciente não é baseada nos testes de compatibilidade, e as indicações para transfusão em pacientes com AHAI são similares àquelas usadas para pacientes anêmicos sem AHAI6,7. Além disso, a transfusão de hemácias em alguns casos pode ser vital para o paciente, uma vez que a hemólise é acentuada, e que a destruição das hemácias transfundidas não é observada como era se imaginava7.
A) São medicações de primeira linha ciclofosfamida e alemtuzumabe.
B) Esplenectomia após preparo cirúrgico.
C) O transplante de células-tronco ainda não é uma opção terapêutica.
D) A maioria dos pacientes responde bem à terapia com anti-inflamatórios não esteroidais.
E) Corticosteroides com ou sem imunoglobulina intravenosa. O tratamento da síndrome de Evans ainda é um desafio, pois a resposta terapêutica varia de acordo com a evolução e remissão da doença1,3.
O tratamento inicial mais frequentemente utilizado é com uso de corticosteroides com ou sem imunoglobulina intravenosa. Embora a maioria dos pacientes responda bem à terapia inicial, recaídas não são incomuns, e em alguns casos é necessário o uso de imunossupressores como terapia de segunda linha. As principais opções de terceira linha são a ciclofosfamida, alemtuzumabe ou transplante de células-tronco.1
Em alguns casos pacientes com recaídas graves, a esplenectomia pode ser considerada como um tratamento de segunda ou terceira linha, mas na maioria dos pacientes as terapias iniciais resultam em resposta duradoura9
O tratamento da síndrome de Evans ainda é um dilema, com respostas variáveis às terapias propostas e de protocolos específicos. Por se tratar de uma doença incomum, o tratamento destes pacientes deve ser individualizado e orientado de acordo com a resposta clínica à terapêutica.
CONCLUSÃO
O mielograma evidenciou medula hipercelular, sem sinais de displasia ou doença proliferativa. As sorologias para Mycoplasma e Parvovírus foram positivas. O paciente recebeu tratamento com prednisona 20 mg/dia, e azitromicina. Evoluiu com melhora importante dos sintomas, controle do consumo de hemácias e plaquetas, e do quadro febril. Recebeu alta hospitalar com acompanhamento ambulatorial do serviço de hematologia e manutenção do corticosteroide. A pesquisa de anticorpos mostrou a presença de anti-I, caracterizando uma AHAI por hemoaglutininas a frio, associadas a infecções por Mycoplasma. Apresentou dois quadros de agudização da anemia, associados a tentativas de retirada do corticoide e a processos infecciosos de vias aéreas superiores. Até o momento, o paciente não apresentou reação medicamentosa ou sinais de complicações.
Por se tratar de uma doença incomum e complexa, ainda existe pouca informação disponível na literatura. Doenças incomuns como a síndrome de Evans podem ter seu diagnóstico e início de tratamento adiados pelo desconhecimento de suas características. A fim de minimizar esses desafios, seria de enorme importância a realização de estudos multicêntricos, para ampliar o conhecimento sobre a doença, e elaboração de protocolos, para o rápido diagnóstico e tratamento adequado. Além disso, é importante que clínicos, pediatras e residentes estejam atentos a essa hipótese diagnóstica frente a pacientes com quadros agudos de anemia e trombocitopenia.
Notas adicionais
Os pacientes com diagnóstico de síndrome de Evans devem ser avaliados e seguidos cuidadosamente, pois as alterações hematológicas podem ser a primeira manifestação clínica de um quadro de imunodeficiência primária10. Com o progresso no conhecimento e a possibilidade de novos testes imunológicos, muitos pacientes que tiveram diagnóstico de síndrome de Evans apresentavam na verdade a síndrome linfoproliferativa autoimune (ALPS)11.
As citopenias podem ocorrer concomitante ou sequencialmente, às vezes com um hiato de até 3 anos. Em geral, a combinação mais frequente é a de anemia hemolítica autoimune e trombocitopenia, mas há casos com neutropenia11.
São causas de síndrome de Evans secundária11:
Infecções
Vírus: hepatite B e C, HIV, CMV, Epstein-Barr, parvovírus B19Imunodeficiências e doenças linfoproliferativas
Mycoplasma e Helicobacter pylorii
Imunodeficiência comum variávelDoenças autoimunes e reumatológicas
Imunodeficiência combinada grave
Síndrome de Di George
ALPS
Doença de Castleman
Outras
Lúpus eritematosos sistêmicoNeoplasias malignas
Síndrome dos antifosfolipídios
Artrite reumatoide
Hepatite de células gigantes
LinfomasDrogas e vacinação
Leucemias
Mielodisplasia
Transplante de células tronco
O diagnóstico de hemólise imunomediada se baseia em teste direto de antiglobulina (teste de Coombs direto) positivo, reticulocitose, níveis elevados de bilirrubina indireta e desidrogenase lática e nível reduzido de haptoglobina11.
A haptoglobina é uma proteína sintetizada pelo fígado e está significantemente diminuída nos processos de hemólise intra ou extravascular. Nas AHAI representa o marcador mais sensível de hemólise e é o último a normalizar após a recuperação12.
Em alguns casos, o único sinal de envolvimento das hemácias é um teste de Coombs direto positivo. Entretanto, esse teste pode ser negativo em cerca de 10% dos pacientes que apresentam um nível muito baixo de anticorpos quentes do tipo IgG na superfície dos eritrócitos e nos casos em que a hemólise é devida a anticorpos frios ou a anticorpos quentes do tipo IgM ou IgA. Nesses casos com teste negativo, recomenda-se a exclusão de causas não imunes de hemólise e, se houver trombocitopenia concomitante, é necessário avaliar púrpura trombocitopênica trombótica e formas atípicas da síndrome hemolítica-urêmica11.
O diagnóstico diferencial é um desafio, pois nem todos os exames necessários estão disponíveis para a maioria dos pediatras na sua rotina clínica e nem mesmo para muitos especialistas.
A biópsia de medula óssea está indicada em todos os casos de anemia hemolítica autoimune que cursam com reticulocitopenia e nos pacientes com síndrome de Evans para excluir doença proliferativa ou mielodisplasia. Em crianças muito jovens com neutropenia, a biópsia pode excluir neutropenia congênita, que geralmente mostra parada de maturação no estágio de prómielócito.
As transfusões de hemácias devem ser reservadas para pacientes muito sintomáticos e a decisão de transfundir deve ter como objetivo principal minorar os sintomas clínicos e não a correção do nível de hemoglobina. As transfusões de plaquetas devem ser prescritas apenas para os casos com hemorragias com risco de morte.
O papel da imunoglobulina intravenosa está bem estabelecido para os casos de púrpura trombocitopênica imune, mas nos casos de AHAI e de síndrome de Evans o seu uso é ainda controverso, havendo poucos dados disponíveis na literatura11.
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1. Acadêmico de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora - Acadêmico de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora MG, Brasil
2. Residente em Pediatria no Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora - Residente em Pediatria no Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
3. Hematologista e Hemoterapeuta pelo Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora - Médica do Serviço de Hematologia do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
4. Infectologista Pediatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - Professora Assistente do Departamento Materno-Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
5. Hematologista e Hemoterapeuta Pediátrica - Professora Auxiliar do Depto. Materno-Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
6. Médica pediatra. Servidora aposentada do Hospital Federal dos Servidores do Estado, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
7. Professora de Pneumologia Pediátrica. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro -UNIRIO. Médica do Setor de Pneumologia do IFF/Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência:
Sabrine Teixeira Ferraz Grunewald
Hospital Universitário da UFJF - Enfermaria de Pediatria
Rua Catulo Breviglieri, s/nº, Bairro Santa Catarina
Juiz de Fora - MG. Brasil. CEP: 36036-110