ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo de Revisao - Ano 2016 - Volume 6 - Supl.1

A autonomia e o respeito pelo ser humano

The autonomy and the respect for the Humanity

RESUMO

A autonomia refere-se à capacidade que a pessoa possui para decidir sobre aquilo que ela julga ser o melhor para si. A autonomia também não deve ser entendida como direito absoluto: seus limites são dados pelo respeito à dignidade e à liberdade dos outros e da coletividade.

Palavras-chave: autonomia pessoal, populações vulneráveis, criança, adolescente.

ABSTRACT

The autonomy refers to the ability of the person has to decide what it thinks is the best to himself. Autonomy also should not be understood as absolute right: its boundaries are given by respect for dignity and freedom of others and the community.

Keywords: Personal Autonomy. Vulnerable Populations. Child. Adolescent.


O avanço dos estudos e da conceituação sobre a autonomia fez também que aumentasse a dúvida de como se conduzir em situações de conflito nas quais a análise dos limites da autonomia seja obrigatório.

A autonomia refere-se à capacidade que a pessoa possui para decidir sobre aquilo que ela julga ser o melhor para si. Por isso, pressupõe que a pessoa é livre para fazer suas escolhas pessoais desde que suficientemente esclarecida. Deve ter liberdade de pensamento e estar livre de coações internas e externas para escolher entre alternativas apresentadas. Se não há a chance de escolha ou a alternativa apresentada, não há o exercício da autonomia.

O termo "autonomia" origina-se do grego "autonomia", composta pelo adjetivo "autos" (o próprio, por si mesmo) e "nomos" (compartilhamento, lei, convenção), significando a competência de "dar-se as próprias leis".

O exercício da autonomia também contempla a proteção das pessoas dependentes ou vulneráveis contra danos ou abusos. Ainda há que se considerar sobre a autonomia que o respeito ao ser humano é basilar em qualquer relacionamento ético, bem como imperativo na prática médica e na relação médicopaciente. Há que se lembrar de que o indivíduo é soberano sobre seu corpo e mente e, por isso, respeitar a autonomia é, pois, valorizar seus julgamentos e dar a liberdade de ação baseada nesses julgamentos. Respeita-se, assim, a capacidade de autodeterminação, reconhecendo como essenciais a liberdade e a ação para o pleno exercício da autonomia.

O Relatório Belmont, que estabeleceu as bases para a adequação ética da pesquisa, propôs que os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos e que as pessoas com autonomia reduzida devem ser protegidas, considerando, pois, duas exigências morais separadas.


A REDUÇÃO DA AUTONOMIA E OS VULNERÁVEIS

A redução da autonomia pode existir de maneira temporária ou definitiva.

Na redução temporária enquadram-se as crianças, alguns adolescentes, enfermos e prisioneiros porque estão impedidos de manifestar sua vontade e se espera que, cessado o impedimento, possam fazê-lo de maneira inequívoca.

Na redução definitiva estão as pessoas para as quais não haja possibilidade de reversão de seu estado, como em alguns casos de doença física grave ou mental.

Em ambos os casos de redução de autonomia, é imperativa a existência de um representante legal que possa falar pela pessoa em todos os impedimentos, caracterizando, assim, a autonomia com tutor.

Os vulneráveis são pessoas que, por condições sociais, culturais, étnicas, políticas, educacionais e de saúde, têm as diferenças estabelecidas entre eles e a sociedade transformadas em desigualdades, o que os torna incapazes ou lhes dificulta enormemente a capacidade de expressar livremente sua vontade.

A vulnerabilidade pode ser individual ou coletiva, enquanto que a redução de autonomia é sempre individual.

A autonomia também não deve ser entendida como direito absoluto: seus limites são dados pelo respeito à dignidade e à liberdade dos outros e da coletividade.

No iminente perigo de morte ou na tentativa de suicídio, a pessoa perde sua autonomia, já que a legislação, tanto penal, como civil e ética lhe garante o direito à vida, mas não sobre a vida. Ela tem plena autonomia para viver, mas não para morrer.

O avanço dos estudos, conceituação e definições sobre a autonomia fez com que aumentasse também a dúvida de como conduzir-se nas situações de conflito, em que a análise dos limites da autonomia seja obrigatória.

A dificuldade surge em decorrência de, apesar das definições formais existentes, não ser possível ainda dar o assunto como encerrado, com o risco de ser injusto com a complexidade do estudo que o tema requisita.

É salutar que fiquem portas abertas à discussão, mas também que a discussão seja sempre feita em bases fundamentadas ou em teorias que apresentem alguns indicativos de racionalidade e aplicabilidade ética.

No sentido ético, importa a discussão sobre a capacidade para entender a autonomia dentro do binômio liberdade/normas.

E essa capacidade de entendimento pode ser fruto de várias interpretações do que é o indivíduo que obedece a leis feitas por ele próprio ou que obedece às normas de sua própria razão ou que escolhe seus valores, faz seus projetos e toma suas decisões. Ou, ainda, entender o que é aquele indivíduo que preserva a liberdade individual, mas que valoriza a utilidade do ato.

Na prática da bioética essas diferenças trazem consequências importantes porque, segundo a concepção kantiana, infringir o princípio de autonomia consiste em violar substancialmente a própria pessoa, ao passo que para a concepção utilitarista infringir o princípio de autonomia pode ser justificado tendo em conta outros objetivos desejáveis e, portanto, úteis à própria pessoa.

Isso faz com que haja uma relatividade entre os princípios de autonomia, beneficência e não maleficência, procurando sempre entender e dirimir as dúvidas e resolver os conflitos dentro de uma análise contextual na qual se valorize uma hierarquia dos valores, o grau de discernimento, o risco - benefício do ato para a pessoa, entendendo que a autonomia não deva ser exercida quando, desse exercício, resultar dano ou prejuízo à própria ou a outras pessoas.

Ainda dentro da discussão sobre autonomia, há que se dedicar espaço para a relação médico-paciente-família, principalmente em relação à criança e ao adolescente no que tange ao consentimento esclarecido do representante legal e o assentimento da criança e do adolescente naquelas situações em que já existe um avançado grau de discernimento e de tomada de decisão, confrontando com o permitido em função da idade.

O Código de Ética Médica faz previsão desse assentimento livre e esclarecido para a área de pesquisa, mas a evolução da assistência clínica já tem tornado essa prática defensável entre os pediatras e a sociedade.

No código está definido:

"Art. 101. É vedado ao médico: Deixar de obter do paciente ou de seu representante legal o termo de consentimento livre e esclarecido para a realização de pesquisa envolvendo seres humanos, após as devidas explicações sobre a natureza e as conseqüências da pesquisa.

Parágrafo único. No caso do sujeito de pesquisa ser menor de idade, além do consentimento de seu representante legal, é necessário seu assentimento livre e esclarecido na medida de sua compreensão
".

Na Pediatria é importante que se veja esse ser do ponto de vista holístico e não somente cronológico. A simples aplicação do dispositivo legal (Código Civil) pode induzir a uma anulação de uma vontade já legítima decorrente de uma capacidade de discernimento já presente no adolescente, na maioria das vezes.

O exercício da autonomia leva ao reconhecimento do direito aos valores e à proteção que qualquer indivíduo merece. E, no caso da criança e do adolescente, a preocupação aumenta na medida em que tal desrespeito possa levar a abusos, gerando violência, tanto física como psíquica e, ainda, tanto institucional como doméstica.


A AUTONOMIA DA CRIANÇA E DO ADOLES-CENTE

Segundo Leone, a análise do respeito à autonomia de uma criança ou de um adolescente só tem sentido se for conduzida a partir do conhecimento da evolução de sua competência nas diferentes idades.

O limite da autonomia deve, pois, ter uma avaliação contextual em que seja valorizado o momento de desenvolvimento em que se encontra a criança e o adolescente, lembrando que esse é um processo dinâmico no qual as habilidades e capacidades são adquiridas e vivências são incorporadas, dentro de uma evolução constante.

Não se devem criar estereótipos, já que a individualidade desse ser em formação faz com que cada um seja único, mesmo que cronologicamente da mesma idade que outros. O ser humano cresce e se desenvolve como fruto de fatores intrínsecos (congênitos e genéticos) e extrínsecos (socioculturais) e isso tem reflexo na formação de sua inteligência e de sua capacidade de discernimento, o que lhe dá competência para tomar decisões legítimas, independentemente das normas legais vigentes referentes à idade.

O ser humano em seu desenvolvimento na infância e adolescência pode tomar decisões baseadas no medo do desconhecido ou ditadas por um capricho da vontade ou ainda como fruto de uma reflexão amadurecida. E essa grande variação de fatores desencadeantes é que traz à tona toda a dificuldade envolvida quando se quer analisar a competência para decidir.

O que pais/responsável legal e os médicos/equipe devem considerar é a aplicação da legislação em consonância com a análise da autonomia da criança e do adolescente, procurando identificar se o mesmo já adquiriu habilidade para entender as informações, a capacidade de realizar escolhas e o discernimento para avaliar o risco - benefício e os danos consequentes a uma decisão tomada.

A tomada de decisão envolvendo crianças tem a responsabilidade compartilhada entre o médico/equipe e os pais/responsável legal. Se houver conflito entre as partes na definição do que seja melhor para a criança, torna-se obrigatória a busca da conciliação por meio de um dialogo esclarecedor, com informações accessíveis ao nível da compreensão dos responsáveis, esclarecendo os riscos e benefícios do tratamento proposto pela equipe.

Em relação ao adolescente, é necessário reconhecer que existe um estado de maturidade cognitiva gradativa que não depende só da idade cronológica.

A teoria do menor amadurecido postula que os menores que são capazes de entender o risco-benefício de um tratamento oferecido e são capazes de se responsabilizar pela assistência recebida devem ser considerados maduros para consentir ou recusar o procedimento. A tomada de decisão poderia, então, ser assumida por ele, sem a interferência dos pais/representante legal, ou até mesmo em conjunto com eles.

Por isso, o incentivo à participação da criança e do adolescente na obtenção do consentimento esclarecido em conjunto com a família e respeitando a adequação do processo ao estágio de desenvolvimento bio-psico-social dos mesmos revestese de uma importância fundamental. E essa participação, nesses moldes, vai dar a validade moral para tal ação.

Desse modo, a sociedade estará mostrando um grau de amadurecimento na resolução de dilemas ou conflitos, ao procurar estabelecer um canal de comunicação para que as decisões sejam tomadas após caracterizar e entender a fase de desenvolvimento da pessoa em questão.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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Pediatra. Membro do Conselho Editorial da Revista Bioética do CFM. Sócio Diretor da firma " Pineschi Consultoria e Gestão". Colunista de Bioética da Revista da Somerj

Endereço para correspondência:
Arnaldo Pineschi de Azeredo Coutinho
E-mail: pineschi@cremerj.org.br