ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo de Revisao - Ano 2016 - Volume 6 - Supl.1

Morte encefálica e doação de órgãos e tecidos

Brain death and organ and tissue donation

RESUMO

A morte encefálica é um produto dos avanços tecnológicos, em que é possível manter artificialmente a frequência cardíaca, a ventilação pulmonar, a pressão arterial, a temperatura e a homeostase bioquímica, mesmo após a parada das funções encefálicas.

Palavras-chave: morte encefálica, doação de órgãos tecidos.

ABSTRACT

Brain death is a product of technological advances. It is possible to artificially keep the heart rate, pulmonary ventilation, blood pressure, temperature and biochemical homeostasis, even after stopping the brain functions.

Keywords: Brain Death. Tissue and Organ Procurement.


INTRODUÇÃO

Definir a morte tem consequências médicas e legais importantes, como: ausência de requisição legal de reanimação ou tecnologias de suporte vital; perda de identidade pessoal e de direitos pessoais; potencial para doação de órgãos e autópsia; execução de testamento legal e bens; seguro de vida e despojamento do corpo através do sepultamento ou cremação.

Existem três mecanismos fisiológicos da morte:
a) parada cardíaca primária resultando em parada circulatória;

b) parada respiratória primária, que causa parada cardíaca secundária por hipoxemia;

c) parada encefálica primária que, por interrupção do controle das vias aéreas e impulso respiratório, causa parada respiratória secundária e, então, parada cardíaca.
A interrupção dessa sequência através de suporte vital é a essência da assistência em UTIs, com o uso de vias aéreas artificiais, ventilação pulmonar mecânica, suporte hemodinâmico, terapias de reposição renal, oxigenação por membrana extracorpórea e corações artificiais. O que se pretende com o uso desses procedimentos é manter as funções vitais para "ganhar tempo" e permitir a reversão do agravo que pode levar à morte.

O encéfalo é um órgão que não pode ser mantido por qualquer tecnologia conhecida atualmente, pois nenhuma função do cérebro pode ser substituída. A ventilação pulmonar mecânica só interrompe a forma como a falência do cérebro leva à morte e os procedimentos neuroprotetores só limitam danos cerebrais secundários.

O encéfalo humano é composto pelo telencéfalo, diencéfalo (tálamo, hipotálamo, epitálamo e subtálamo), tronco encefálico (mesencéfalo, ponte e bulbo) e cerebelo (Figura 1).


Figura 1. Encéfalo humano.



Morte encefálica (ME) é definida como a perda completa e irreversível das funções do córtex e do tronco cerebral, de causa conhecida e constatada de modo indiscutível, caracterizada por coma aperceptivo, com ausência de resposta motora supraespinhal e apneia. Embora a ME segundo esta definição seja aceita como morte de uma pessoa como cidadã na maioria dos países, tal conceito ainda não é universal, mesmo em países considerados desenvolvidos, pela observância a princípios morais ou religiosos, próprios da cultura de cada país.

ME não pode ser confundida com dano cerebral grave, como estado vegetativo persistente, morte cortical ou anencefalia. Nessas condições o dano cerebral pode ser desastroso e irreversível, mas não é completo, uma vez que a função residual do tronco cerebral persiste.

A ME é um produto dos avanços tecnológicos, em que é possível manter artificialmente a frequência cardíaca, a ventilação pulmonar, a pressão arterial, a temperatura e a homeostase bioquímica, mesmo após a parada das funções encefálicas.

O reconhecimento precoce da ME é de grande importância. A manutenção do tratamento em tais pacientes (já mortos) submete a família ao estresse da incerteza por manter falsas esperanças, mantém recursos materiais e humanos alocados para um paciente que deles não mais se beneficiará e, para muitos, constitui ato de falta de dignidade para com o corpo.

Outro fato importante é que somente após a constatação ME e declaração da morte do indivíduo os órgãos e tecidos podem ser considerados potencialmente aptos para doação para fins de transplante, permitindo salvar outras vidas. A experiência acumulada e os avanços nas técnicas cirúrgicas e de imunossupressão têm levado os programas de transplante de órgãos e tecidos a níveis expressivos de sucesso. Um dos principais fatores limitadores desses programas tem sido a dificuldade de identificar os potenciais doadores. No Brasil, apesar da notificação de ME ser compulsória, de cada oito potenciais doadores de órgãos, apenas um é notificado. Para melhorar esta situação, é importante não retardar o diagnóstico de ME, declarando-a assim que ela ocorra, para então abordar a família no sentido de obter permissão da retirada de órgãos e tecidos para transplante em tempo hábil.

Uma vez cessada as funções do encéfalo, a ventilação pulmonar mecânica é necessária para manter a circulação e outras funções vitais, porém o colapso cardiovascular irreversível ocorrerá horas ou poucos dias após, independentemente da intensidade do suporte terapêutico empregado, pois, apesar de certos órgãos possuírem marca-passos próprios que permitem manter certas funções após o diagnóstico da ME, o sistema nervoso é o responsável pela unidade do organismo humano e sem ele a morte ocorre em pouco tempo, mesmo com todo suporte artificial possível. Na experiência do Departamento de Pediatria da Universidade Federal do Paraná, o intervalo entre o diagnóstico da ME e a parada cardíaca irreversível em crianças mantidas em ventilação pulmonar mecânica foi, na média, de 22 horas.


DIAGNÓSTICO

Lago et al., em 2007, publicaram artigo no qual avaliaram retrospectivamente dados de sete Unidades de Terapia Intensiva Pediátricas (UTIPs) brasileiras (quatro UTIPs públicas e três UTIs privadas, sendo duas em Porto Alegre, duas em São Paulo e três em Salvador) nas quais ocorreram 525 óbitos entre janeiro de 2003 e dezembro de 2004, sendo 61 (11,6%) com diagnóstico de ME, dos quais seis (9,8%) potenciais doadores de órgãos.

Constataram grande variação geográfica nas condutas, sugerindo diferenças na aplicação de protocolos, sem diferenças no perfil de pacientes atendidos.

O tempo de retirada do suporte de vida após diagnóstico de morte encefálica (medido em horas) é apresentado da Figura 2 e as condutas médicas após diagnóstico de morte encefálica (%), na Figura 3.


Figura 2. Tempo de retirada do suporte de vida após diagnóstico de morte encefálica (medido em horas).


Figura 3. Condutas médicas após diagnóstico de morte encefálica (%).



Os autores concluíram que, apesar da lei que define critérios para morte encefálica existir no Brasil desde 1997, ela não era observada uniformemente e, por consequência, suporte vital desnecessário era oferecido a pessoas já mortas, existindo modesto envolvimento das UTIs Pediátricas com doação de órgãos.

A suspeita de ME deve surgir quando um paciente que requer ventilação pulmonar mecânica por apneia se apresenta em coma arreativo e arresponsivo, sem reflexos do tronco encefálico (supraespinhais) na ausência de causas reversíveis, como uso de drogas sedativas, depressoras do Sistema Nervoso Central (SNC) ou bloqueadoras neuromusculares; distúrbios endócrino-metabólicos graves; hipotensão arterial ou hipotermia (temperatura retal igual ou inferior a 35°C).

Como pré-requisito, a etiologia do coma deve ser conhecida e o dano encefálico catastrófico deve ser considerado irreversível. O conhecimento da história clínica é fundamental para determinar a presença de condições que possam falsear o exame neurológico.

As causas mais frequentes de ME em crianças são os traumatismos cranianos, a encefalopatia anóxica-isquêmica por afogamento e a descompensação súbita da hipertensão intracraniana por tumores do SNC.

O exame clínico é o componente mais importante dos critérios para determinação da ME. A temperatura corpórea mínima para aceitar a avaliação neurológica como válida é de 35ºC. A ausência de função do córtex é detectada pela ausência de resposta somática ou autonômica a qualquer estímulo externo. A ausência de função do tronco é reconhecida quando estão ausentes os reflexos do tronco cerebral:
- Foto-motor;

- Corneano;

- Óculo-motor;

- Óculo-vestibular;

- Orofaringe;

- Respiratório (apneia).
Interessa, para o diagnóstico de ME, exclusivamente a arreatividade supraespinhal. Consequentemente, não afasta esse diagnóstico a presença de sinais de reatividade infraespinhal (atividade reflexa medular) tais como: reflexos osteotendinosos (reflexos profundos), cutâneo-abdominais, cutâneo-plantar em flexão ou extensão, cremastérico superficial ou profundo, ereção peniana reflexa, arrepio, reflexos flexores de retirada dos membros inferiores ou superiores, reflexo tônico cervical e o reflexo ou sinal de Lázaro.

Um dos movimentos mais assustadores para os membros da família e profissionais de saúde que não exclui o diagnóstico de ME é o sinal de Lázaro. É uma sequência de movimentos que dura poucos segundos e que pode ocorrer espontaneamente, durante o teste da apneia, pela movimentação passiva da cabeça ou logo após a desconexão do aparelho de ventilação pulmonar mecânica. Inicia-se pela extensão dos braços, seguido pelo cruzamento ou toque dos mesmos no peito, finalmente repousando junto ao tronco, podendo ocorrer também flexão do tronco.

Particularmente em crianças, a atividade nervosa periférica, como reflexos medulares, pode estar presente após a ME. Em virtude das implicações práticas e legais, esses movimentos devem ser identificados e corretamente interpretados. Convulsões e atitudes de decorticação ou de descerebração excluem o diagnóstico de ME, por manifestarem atividade do tronco encefálico ou acima dele.

O reflexo óculo-motor é avaliado pela movimentação passiva da cabeça nos planos horizontal e vertical. Quando o tronco está íntegro, ocorre desvio do olhar para o lado oposto ao da movimentação da cabeça. Na presença de ME não há movimentação dos olhos (olhos de boneca).

Quando há fortes indícios de ME, excluídos os possíveis diagnósticos diferenciais, é essencial a realização das provas para pesquisa dos reflexos óculo-vestibular e da respiração.

O reflexo óculo-vestibular é pesquisado pela prova calórica, que consiste na observação de movimentos oculares após a instilação de líquido gelado (ou aquecido) no ouvido. Para realizar a prova, deve-se assegurar que não há obstrução do canal auditivo (por cerume, por exemplo), que as membranas timpânicas estejam íntegras e que não há lesão otológica central ou periférica prévia (como as devidas a infecções ou utilização de drogas ototóxicas). O paciente deve ser colocado em decúbito semissentado (de 30º a 45º). Injeta-se 50 mL de soro fisiológico gelado (próximo de 0ºC) em um dos condutos auditivos externos e observa-se de 20 a 30 minutos para verificar se há resposta. Em seguida, repete-se a prova no outro ouvido. Quando o tronco está íntegro, há desvio dos olhos para o lado do estímulo ao se usar água gelada (ocorre o inverso quando se usa água quente). Na presença de ME não há movimentos oculares. A resposta unilateral indica lesão localizada.

O reflexo da respiração é avaliado pelo teste da apneia. Para realizá-lo, deve-se assegurar uma boa oxigenação tecidual. O teste requer que a PaCO2 atinja níveis que estimulem fortemente o centro respiratório (maior que 55 mmHg), o que pode demorar vários minutos entre a desconexão do aparelho de ventilação pulmonar mecânica e o aparecimento dos movimentos respiratórios no caso da região ponto-bulbar ainda esteja íntegra. Ele não tem validade nos pacientes com doença pulmonar crônica, que podem ter resposta diminuída à hipercarbia.

Deve-se aplicar o seguinte protocolo para realizar o teste da apneia:
1°. Oxigenar o paciente sob ventilação pulmonar mecânica com FiO2 a 100% por 10 minutos, ajustando o aparelho para obter uma PaCO2 ao redor de 40 mmHg, confirmada por gasometria arterial.

2°. Desconectar o aparelho de ventilação pulmonar mecânica, mantendo um fornecimento de oxigênio contínuo, 6 a 8 L/min, por intermediário em T ou cateter na cânula de intubação traqueal.

3°. Observar continuamente o paciente para verificar se aparecem movimentos respiratórios, se há variações da frequência cardíaca, da saturação de O2 e da pressão arterial ou se ocorre cianose.

4°. Se o paciente apresentar qualquer movimento respiratório ou aparecerem cianose ou instabilidade hemodinâmica, reconectar imediatamente o aparelho de ventilação pulmonar mecânica.

5°. Se, após 10 minutos de observação, o paciente não apresentar movimentos respiratórios, colher nova amostra arterial para gasometria e reconectar o aparelho de ventilação pulmonar mecânica.
Para a maioria dos autores, o teste é considerado conclusivo para apneia (ausência do reflexo de respiração, consistente com ME) se, durante os 10 minutos de desconexão do aparelho de ventilação pulmonar mecânica, o paciente não apresentar movimentos respiratórios e se a PaCO2 atingiu valores superiores a 60 mmHg. É esperado um aumento da PaCO2 de 4,2 a 4,4 mmHg durante os primeiros 5 minutos de teste e de 3,4 mmHg nos 5 minutos subsequentes. Se, ao final do teste, a PaCO2 for inferior a 60 mmHg, o teste não terá validade, podendo ser repetido 15 a 30 minutos após.

O teste da apneia deve propiciar estímulo suficiente para eliminar possibilidade de função residual no cérebro. Geralmente, o limiar de PaCO2 acima de 60 mmHg é usado, mas vários protocolos estabelecem limiares maiores, até acima de 90 mmHg ou acima de100 mmHg, em agravos de fossa posterior.

Movimentos causados por estímulo relacionados à isquemia aguda dos neurônios motores espinhais periféricos (sinal de Lázaro, por exemplo) podem ocorrer dramaticamente durante a realização da prova de apneia ou por ocasião da retirada do suporte ventilatório. Os espectadores desses procedimentos, particularmente familiares, devem ser alertados quanto a esta possibilidade para não colocarem o diagnóstico de ME em dúvida.

É bom lembrar que ME é a morte do indivíduo (veja aspectos legais mais adiante). Nesse caso, a ventilação mecânica não pode ser considerada uma modalidade de suporte de vida em paciente que já morreu e deve ser retirada, porém só após o devido esclarecimento e consentimento da família.

Outros dados clínicos que podem alertar quanto à existência de ME, embora não apareçam em todos os casos, são: poliúria importante por diabete insípido (38 a 88% dos casos); vasodilatação periférica (especialmente nas mãos e pés) e hipotermia refratária às mudanças do calor ambiental.

Exames Subsidiários

De acordo com as diretrizes mais recentes para a determinação de morte cerebral, atualizando as recomendações da Força-Tarefa 1987, exames complementares não são obrigatórios para estabelecer a ME, mas podem ser úteis para auxiliar no seu diagnóstico quando:
- O exame clínico (como o teste de apneia) não puder ser concluído com segurança devido a uma condição médica subjacente;

- Há incertezas quanto aos resultados do exame clínico;

- Há dúvidas quanto à existência do efeito de drogas sedativas, depressoras do SNC ou de bloqueio neuromuscular;

- Há indicação de reduzir o período de observação entre os exames clínicos.
Eles não substituem o exame físico, mas servem para demonstrar inequivocamente a ausência de circulação sanguínea intracraniana, ou atividade elétrica cerebral, ou atividade metabólica cerebral.

De acordo com a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.480/97, pacientes com 2 anos de idade ou mais requerem um dos exames complementares entre os abaixo mencionados:
1. Atividade elétrica: eletroencefalograma (EEG), potencial evocado de tronco cerebral.

2. Atividade circulatória cerebral: angiografia cerebral, Doppler transcraniano, mapeamento cerebral com radioisótopos, monitorização da pressão intracraniana, tomografia computadorizada com xenônio, SPECT (Single Photon Emission Computed Tomography = tomografia por emissão de fóton único).

3. Atividade metabólica: PET (Positron Emission Tomography = tomografia por emissão de pósitron), extração cerebral de oxigênio.
Para pacientes com menos de 2 anos de idade, o exame preconizado é o EEG, havendo necessidade de dois registros, cujo intervalo varia conforme a faixa etária (ver adiante).
• EEG
Avalia apenas as funções do córtex cerebral e, nos casos de ME, deve ser utilizado máximo de amplificação do sinal do aparelho, por um período mínimo de 30 minutos e interpretado por pessoal experiente.

O traçado isoelétrico (sem evidência de atividade elétrica cerebral > 2µV entre eletrodos colocados a uma distância ≥ 10 cm) pode ocorrer também devido a altas doses de drogas depressoras do SNC, como os barbitúricos, hipotermia (temperatura corpórea < 32°C) e hipotensão arterial.

Observa-se, com relativa frequência, o encontro de alguma atividade elétrica, do tipo surtossupressão, no primeiro EEG realizado em pacientes com suspeita de ME que, 12 a 24 horas após, apresentam traçado isoelétrico. Por outro lado, existem relatos de casos que apresentam atividade eletroencefalográfica momentos antes da morte que, à necropsia, apresentavam liquefação cerebral, particularmente após tentativas de reanimação cardiorrespiratória e cerebral (período de reperfusão).

As pequenas distâncias entre os eletrodos em criança e a interferência de outros aparelhos eletroeletrônicos usados em UTIs dificultam, às vezes, a interpretação adequada desse exame.
• Potencial evocado de tronco cerebral
Avalia as funções do tronco encefálico, por detectar a integridade das vias aferentes nervosas, sem avaliar as funções corticais. É o complemento ideal ao EEG. Pode ser aplicado à beira do leito, não sofrendo interferências de outros equipamentos eletroeletrônicos ligados ao paciente ou do uso de drogas depressoras do SNC.

Para o diagnóstico de ME, tem sido utilizada a ausência do potencial evocado auditivo, desde que haja condução periférica viável (onda 1 ou coclear obtida após a estimulação sonora adequada), por serem os núcleos auditivos próximos aos centros vitais do tronco encefálico.

Se a condução acústica não é demonstrada, o potencial evocado auditivo é substituído ou complementado pelo somatossensitivo.
• Angiografia cerebral
Para o diagnóstico de ME, deve mostrar: ausência da fase arterial bilateralmente tanto nas artérias carótidas e como nas vertebrais (quatro vasos), parada da circulação carotídea na base do crânio, não visualização do seio sagital na fase venosa e somente presença de perfusão arterial dos tecidos extracranianos, por um período superior a 10 minutos (Figura 4).


Figura 4. Angiografia cerebral.



As dificuldades técnicas para realizá-la em crianças pequenas e os riscos inerentes ao transporte para unidades radiológicas dificulta a realização desse exame com contrastes iodados.
Doppler transcraniano
É uma boa alternativa à angiografia cerebral, por ser menos invasivo e evitar as manifestações de hipersensibilidade a contrastes iodados. O encontro do tipo "to and to" caracteriza a ME (Figura 5).


Figura 5. Doppler transcraniano.



Usando a abordagem transorbital, a percentagem de resultados positivos com diagnóstico definitivo de ME aumentou de 79% para 88%, sendo uma adição útil para seu diagnóstico.
• Mapeamento cerebral com radioisótopos
É outra boa alternativa à angiografia cerebral. Também é pouco invasivo e evita manifestações de hipersensibilidade a contrastes iodados. É realizado pela injeção IV de tecnécio99, medindo-se a intensidade de radiação através de gama-câmara, que pode ser portátil. Sua interpretação é difícil em crianças com menos de 2 meses de idade. Não tem sido realizado em nosso meio e recomenda-se que os recém-nascidos façam uma segunda imagem para confirmar o diagnóstico (Figura 6).


Figura 6. Mapeamento cerebral com Tc99m (HMPAO SPECT)



CONDIÇÕES QUE SIMULAM MORTE ENCEFÁLICA

Existiriam situações em que o diagnóstico de ME é feito porque o cérebro está inativo e com atividade elétrica suspensa devido à diminuição do fluxo sanguíneo cerebral nos limites que se denomina penumbra isquêmica, situação que poderia ser revertida.

Drogas depressoras do SNC (particularmente barbitúricos, benzodiazepínicos, opioides e bloqueadores neuromusculares) são utilizadas com frequência em UTIPs e podem mimetizar o quadro de ME. Investigação toxicológica deve ser realizada em todos os casos suspeitos, considerando as características farmacológicas de cada droga (absorção, distribuição, vida média, vias de metabolização, vias de eliminação e efeito dos subprodutos). Para a maioria dessas drogas, devem-se aguardar quatro meia-vidas antes de iniciar o protocolo de investigação de ME. Idealmente, devem ser obtidos níveis séricos.

As drogas mais usadas em UTI estão listadas na Tabela 1, relacionando-as com o tempo de sua interrupção para iniciar investigação de ME.




Hipotermia, particularmente com temperatura corpórea abaixo de 34°C (Tabela 2), e hipotensão arterial podem causar supressão reversível da atividade neurológica, requerendo medidas terapêuticas que as revertam antes de iniciar a investigação de ME.




É obrigatória a investigação ativa de alterações metabólicas que possam mimetizar a ME, como os distúrbios hidroeletrolíticos, acidobásicos, da homeostase da glicose e endócrinos, particularmente das glândulas tireoide, das paratireoides e das suprarrenais.


IRREVERSIBILIDADE DA MORTE ENCEFÁLICA

A irreversibilidade da ME é confirmada quando a causa do coma é conhecida e é suficiente para explicar a gravidade do comprometimento encefálico, excluída a possibilidade de recuperação pela observação durante um período apropriado de tempo.

Há controvérsias a respeito do tempo de observação necessário para caracterizar a irreversibilidade da ME, particularmente em recém-nascidos, bem como da necessidade de confirmação por meio de exames complementares para o diagnóstico, que no Brasil são legalmente obrigatórios.

A Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.480, de agosto de 1997, determina que os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da ME serão definidos por faixa etária (Tabela 3).




O "Task Force for Determination of Brain Death in Children", formado pelas "Society of Critical Care Medicine"; "Section on Critical Care and Section on Neurology of the American Academy of Pediatrics"; e pela "Child Neurology Society", nas "Diretrizes para a determinação de morte cerebral em bebês e crianças: uma atualização das recomendações da Força-Tarefa 1987", divulgadas em setembro de 2011, recomenda dois exames, realizados por médicos diferentes, separados por um período de observação (Tabela 4).




ASPECTOS LEGAIS (VER FUNDAMENTAÇÃO LEGAL, ADIANTE)

O diagnóstico de ME é baseado em conhecimento médico, mas é matéria do Direito, pois a Lei tem interesses independentes na definição de ME que podem se perder quando a referência é apenas médica.

A ME foi inicialmente regulamentada no Brasil pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1346, em 8 de agosto de 1991, revogada e atualizada por meio da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº1480, em 8 de agosto de 1997, reproduzida mais adiante (ver Anexo 1).

A ME, como morte do indivíduo, só foi considerada legal através da Lei 8.489, publicada em 18 e 22 de novembro de 1992, que foi substituída pela Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, alterada pela Lei 10.211, de 23 de março de 2001.

A necessidade legal de documentação por meio de exames subsidiários que demonstrem ausência de atividade circulatória cerebral ou elétrica ou metabólica para confirmação do diagnóstico de ME é tecnicamente questionável para pessoas com mais de 1 ano de idade e tem dificultado tal diagnóstico em tempo oportuno para que os procedimentos próprios para transplantes de órgãos sejam executados em nosso meio.

A maioria dos centros onde a documentação da ME por meio de exames subsidiários é possível também é centro de transplante, sendo importante observar o que diz a Lei 9.434, que determina em seu Artigo 3º que "A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina." e no § 3º, que "Será admitida a presença de médico de confiança da família do falecido no ato da comprovação e atestação da morte encefálica."

Uma vez constatada a ME, cópia do termo de declaração de ME deve obrigatoriamente ser enviada ao órgão controlador estadual (Lei 9.434/97, Art. 13), indicando o exame complementar realizado que demonstre inequivocamente a ausência de circulação sanguínea intracraniana, ou atividade elétrica cerebral, ou atividade metabólica cerebral, anexando laudo com identificação do médico responsável (ver Anexo 2).

Uma vez confirmada a ME, o paciente é declarado legalmente morto, mesmo que suas condições cardiorrespiratórias estejam sendo mantidas artificialmente. No atestado de óbito, a hora da constatação da ME é a que deve constar como hora da morte (parecer 29.650/95 do CREMESP).

Paciente vítima de morte por causa violenta pode ser doador de órgãos. Se o for, o corpo deve ser encaminhado para o Instituto Médico Legal (IML) para autópsia após a retirada dos órgãos. Lembrar que, nesses casos, o médico legista (do IML) é quem fornece o atestado de óbito.

Atualmente, no Brasil, do ponto de vista legal, a ME em crianças menores de 7 dias não pode ser considerada como morte do indivíduo, apesar de haver critérios, em outros países, para tal faixa etária, desde que com idade gestacional maior de 32 semanas.


ROTEIRO DE ATENDIMENTO

Todos os achados clínicos e de exames complementares têm que ser minuciosamente documentados, registrando data, hora, descrição técnica do método utilizado e resultados. O protocolo utilizado tem que ser aprovado pela Comissão de Ética Médica da instituição onde o paciente estiver internado.

Embora não seja uma exigência legal, é preceito ético que mais de um médico responsabilize-se pelo diagnóstico, de preferência um intensivista clínico e um neurologista não pertencentes a equipes de transplantes.

O roteiro sugerido é:
1. Excluir causas reversíveis de coma (ver: condições que simulam morte encefálica, já citadas);

2. Verificar ausência dos reflexos de tronco encefálico (já citados);

3. Repetir os itens 1 e 2° após 6, 12, 24 e/ou 48 horas após, de acordo com a idade do paciente;

4. Realizar os exames complementares necessários à confirmação do diagnóstico, principalmente se o paciente for um potencial doador de órgãos, para encurtar o período observação e satisfazer aspectos legais.

DOAÇÃO DE ÓRGÃOS E TECIDOS

Os transplantes são hoje considerados procedimentos rotineiros (Tabela 5). A melhoria nos resultados estimula cada vez mais seu emprego, levando a uma crescente escassez da oferta de órgãos, o que representa uma séria ameaça à expansão desse benefício. Em médio e em longo prazo as alternativas para solucionar esses problemas passam pela medicina preventiva, pelo uso de animais como doadores e pela clonagem de órgãos, esta por sair do nível da ficção científica.




Contraindicações para doação de órgãos
• Insuficiências orgânicas que comprometem a função dos órgãos e tecidos que podem ser doados, como insuficiência cardíaca, hepática, medular, pancreática, pulmonar ou renal.

• Doenças neoplásicas malignas atuais ou passadas, exceto as primárias do sistema nervoso central, carcinoma basocelular e carcinoma de colo uterino in situ.

• Sepse bacteriana ou fúngica (infecção bacteriana localizada, como pneumonia ou infecção urinária, não exclui a possibilidade de doação, desde que seja realizado o tratamento antimicrobiano adequado o mais precoce possível).

• Infecção viral sistêmica ativa (como herpes disseminado) ou encefalite viral.

• Tuberculose ativa pulmonar ou extrapulmonar.

• Pacientes soropositivos para HIV (e pessoas pertencentes a grupos de risco para HIV), doença de Chagas, hepatites virais e outras doenças que contraindicam transfusão de hemoderivados. As sorologias para estas doenças devem ser feitas o mais breve possível.

• Infecções sistêmicas raras (como doença de Creutzfeldt-Jakob e raiva).

• Doenças degenerativas crônicas.

• Exclusão de órgão e tecidos que por alteração anatômica ou funcional ou por infecção parenquimatosa localizada (nesse caso, os outros órgãos podem ser doados) não possam ser utilizados.
Considerando a facilidade de obtenção de córneas, cuja retirada pode ser feita até 6 horas após a morte por parada cardiorrespiratória, que é simples e que sequer necessita de centro cirúrgico para sua retirada, é difícil justificar as filas de espera para transplante, principalmente nas grandes cidades (ver Anexo 3).

No Brasil, o consentimento informado é a forma de manifestação de doação de órgãos, na qual os familiares do potencial doador são os que podem autorizá-la, ou não. Em 1997, a Lei 9.434 criou o Sistema Nacional de Transplante e, para cada Estado da Federação, uma Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO). Essa lei define a forma de doação e regulamenta a atividade, inclusive com a criação dos Cadastros Técnicos para distribuição (lista única).

O processo é descentralizado, com a criação das Organizações de Procura de Órgãos (OPOs), responsáveis por áreas geográficas definidas.

Obtendo consentimento para doação pós-morte encefálica

O consentimento informado e esclarecido pode ser dado por cônjuge ou familiar até 2º grau e requer duas testemunhas. Se o potencial doador for juridicamente incapaz (Artigos 3 e 4 do Código Civil), ambos os pais, se vivos, ou os responsáveis legais podem dar o consentimento. Pessoas não identificadas não podem ser doadoras.

A doação de órgãos e tecidos é um ato humanitário nobre, mas que pode ser questionada por muitos, pelas mais variadas razões (geralmente de origem religiosa). Sua permissão é de exclusiva competência da família do paciente, particularmente tratando-se de crianças ou adolescentes, dos pais (ambos). Convém que tal assunto seja abordado com a família, em momento diferente da comunicação do óbito, por pessoa com capacitação para tal. As CNCDOs têm pessoas que foram especialmente treinadas para fazer tal abordagem de modo apropriado, disponíveis para se deslocarem até a instituição onde o doador em potencial está internado. Esse procedimento tem aumentado a chance da família optar pela alternativa da doação.

É importante que a pessoa que for comunicar o óbito:
1. Saiba tudo a respeito do paciente (nome completo, idade exata, sexo, nome da mãe e do pai, de onde veio o paciente ao ser internado, história clínica, dados de exame físico, evolução, tratamento, exames realizados, circunstâncias em que o óbito foi identificado).

2. Prepare-se para explicar o que é a ME, considerando que provavelmente deverá conversar com leigos. Evite expressões excessivamente técnicas (como "ele apresenta linhas isoelétricas no eletroencefalograma") ou dúbias (como "agora ele descansou").

3. Apresente-se de modo conveniente e sereno (e não com luvas e roupas ensanguentadas ou sujas e descabelado).

4. Identifique-se pelo nome e função.

5. Não faça uso de telefone celular e avise a todos para não ser interrompido.

6. Atenda a família em ambiente tranquilo, onde todas as pessoas possam ficar bem acomodadas, de preferência sentadas, no qual a privacidade possa ser respeitada, nunca na beira do leito, dentro da área de atendimento da UTI ou do PS.

7. Permita ser questionada a exatidão do diagnóstico de ME (principalmente se o sinal de Lázaro foi presenciado por algum familiar) e, se desejar, esclareça que a família tem o direito a outra opinião de médico de sua confiança ou de outra instituição.

8. Trate todos os presentes com atenção e cortesia (mesmo os mais hostis) e procure identificar o parente mais próximo para quem oferecer a opção da doação e aqueles que poderão apoiar a família.

9. Seja absolutamente honesto, manifestando sua solidariedade pela perda da família, mas evitando expressões do tipo "sei o que vocês estão sentindo" (pois, na realidade, não sabe).

10. Esteja disposto a ouvir, sem esperar atitudes lógicas e objetivas.

11. Esteja preparada para responder a questões como:
- Que órgãos ou tecidos podem ser doados?

- A família saberá quem serão os receptores?

- O corpo ficará deformado?

- Quanto tempo vai demorar até o enterro?
12. Esclareça que a equipe de captação de órgãos poderá dar mais esclarecimentos, caso esta seja a decisão deles.
Considerando que a meta é obter uma decisão da família baseada no seu desejo genuíno (e no do morto), em vez de uma recitação legalista de informação, é importante avaliar se a família estará em condições de entender o conteúdo das informações que serão transmitidas. Isto é particularmente importante porque a família neste momento de estresse provavelmente terá dificuldades para entendê-las. A postura de quem comunica a morte é fundamental para obter algum êxito na doação de órgãos e tecidos. É um momento crítico, quando não de desespero, para a família, que requer solidariedade, compreensão e suporte emocional.

Baseado na doutrina de consentimento informado, a família deve receber os seguintes esclarecimentos a respeito da doação de órgãos:
1. Que o diagnóstico da ME foi estabelecido por pelo menos dois médicos não pertencentes à equipe de captação de órgãos.

2. Da probabilidade de várias outras pessoas poderem ter suas vidas salvas, ou pelo menos melhoradas, por meio dos órgãos doados.

3. Que não há nenhuma garantia que os órgãos serão satisfatórios para doação.

4. Se conhecida, da doutrina da religião da família a respeito da doação de órgãos e tecidos (a grande maioria das religiões encoraja a doação de órgão) ou da possibilidade de procurar orientação de um conselheiro religioso ou sacerdote.

5. Da garantia de que a família pode recusar a doação sem constrangimentos ou preconceitos ou que ela pode estabelecer limites para a doação (doar algumas partes de corpo, mas outras não).

6. Podem ser necessárias de 24 a 36 horas para que todo processo ocorra até a liberação do corpo para o sepultamento.

7. Não há custos para a família relacionados à doação e, em alguns municípios, como no Município de São Paulo, haverá dispensa de pagamento ao Serviço Funerário de taxas emolumentos e tarifas devidas em razão da realização de funeral.

8. O corpo não fica deformado e não são necessários cuidados especiais para o sepultamento.
Avaliação do potencial doador

Todos pacientes em ME devem ser considerados doadores de órgãos em potencial e mesmo os pacientes que tiveram parada cardiorrespiratória irreversível podem ser doadores de tecidos.

Para o potencial doador de órgãos, é necessário planejar a sequência de ações e procedimentos para possibilitar seu bom êxito.

Deve-se avaliar cuidadosamente a história clínica, evolução e prescrições, assim como realizar novo exame físico minucioso procurando identificar contraindicações à doação. Além disso, são necessários exames subsidiários para identificar possíveis alterações compensáveis ou contraindicações à doação:



Manutenção do doador de órgãos e tecidos

Os doadores de órgãos são pacientes que requerem meios artificiais para manter parâmetros hemodinâmicos estáveis necessários para a preservação de seus órgãos e assim torná-los viáveis para transplante.

Devem ser acompanhados continuamente ou, pelo menos, em períodos curtos:
• Monitoramento cardíaco, da saturação de oxigênio, da pressão venosa central, da pressão arterial sistêmica e da temperatura corpórea;

• Cateter venoso central calibroso para administração de drogas vasoativas;

• Sondagem vesical para controle de diurese;

• Sondagem nasogástrica aberta.
Na manutenção do doador de órgãos deve se considerar:
1. Ventilação pulmonar mecânica e manutenção de boa oxigenação são sempre necessárias, mantendo a PaCO2 entre 30 e 45 mmHg e a saturação de O2 maior que 95%.

2. Hipotensão é uma das mais importantes alterações, decorrente da perda do tônus simpático venoso e arterial, da perda hídrica devido a diabetes insipido, do uso de diuréticos ou da restrição hídrica ou, ainda, da hiperglicemia. Seu tratamento consiste na reposição de volume intravascular, procurando um balanço hídrico positivo e manutenção de PAM normal para a idade, porém evitando PVC muito acima do normal, o que indica sobrecarga de volume. Se a reposição volêmica não é suficiente para manter as condições hemodinâmicas, usar dopamina. A noradrenalina pode, eventualmente, ser necessária. Se ocorrer diabetes insipido, usar desmopressina (DDAVP®).

3. Hipopotassemia, hipomagnesemia e hipocalcemia são frequentes. Podem evoluir com disritmias cardíacas e parada cardíaca se o paciente não receber reposição adequada desses eletrólitos.

4. Acidose metabólica é um evento frequente que pode requer bicarbonato de sódio para seu controle. É importante realizar gasometrias arteriais para avaliar também a ocorrência de distúrbios respiratórios que podem requerer adequação dos parâmetros do aparelho de ventilação pulmonar mecânica.

5. Hiperglicemia pode ser decorrente do uso de glicose, corticosteroides ou catecolaminas. Devemse realizar controles periódicos e frequentes da glicemia para adequar a velocidade de infusão de glicose e, se necessário, usar insulina de ação rápida. O paciente deve manter glicemias entre 80 e 120 mg/dL em uso de glicose para manter o suporte metabólico.

6. Anemia pode ocorrer em potenciais doadores, principalmente as vítimas de politraumatismos, que podem apresentar sangramentos nem sempre bem avaliados na admissão. Deve-se manter hemoglobina em torno de 12 g/dL, usando concentrado de hemácias, se necessário, mas só após a coleta das amostras de sangue do paciente para sorologias. Convém lembrar que há famílias que se opõem ao uso de hemoderivados por motivos religiosos e que também se oporão à doação de órgãos. Nesses casos não se aplica o princípio ético da beneficência em oposição ao da autonomia, próprio para os menores de idade.

7. A hipotermia também pode levar a disritmias e parada cardíaca. Seu tratamento requer o uso de líquidos aquecidos na reposição volêmica, aumento da temperatura do ar inspirado do aparelho de ventilação pulmonar mecânica até 38°C e o uso de mantas térmicas. Na ausência destas, a colocação de focos de luz próximos ao tórax e ao abdome do paciente (± 40 cm de distância) possibilita a manutenção temperatura acima dos 35°C. Para crianças pequenas, o uso de incubadoras deve ser considerado.

8. O uso profilático de antibióticos é recomendável. O mais comum é usar uma cefalosporina de terceira geração, mas, sempre que possível, deve-se usar o mais adequado à flora bacteriana local, de acordo com o Serviço de Controle de Infecções Hospitalares da Instituição. Infecções identificadas por radiografias, hemograma, urina tipo I, etc. (com ou sem culturas positivas) devem ser tratadas de acordo com os protocolos da instituição.

9. Devem-se manter as pálpebras fechadas com tiras adesivas apropriadas, recoberta com gaze umedecida, para evitar ulcerações nas córneas, inviabilizando seu uso para transplante.

10. Se ocorrer parada cardíaca, as manobras de reanimação devem ser realizadas, pois, se bem sucedidas, a doação ainda pode ser possível.
Doação de tecidos post-mortem constatada por parada cardiorrespiratória irreversível

Alguns tecidos são viáveis para transplante, desde que retirados em tempo hábil e podem ser armazenados em bancos de tecidos, como especificado na Tabela 6.




Frente a um potencial doador de tecidos, é recomendado seguir o roteiro sugerido na Figura 7.


Figura 7. Roteiro frente a um potencial doador de tecidos.



Doador vivo

Em 2001, a Lei 10.211 redefiniu os transplantes intervivos, em que parentes até quarto grau podem ser doadores; cônjuges podem doar órgãos entre si e não parentes podem ser doadores somente com autorização judicial. O doador vivo tem que ser um cidadão juridicamente capaz (Artigo 5º do Código Civil).

A lei brasileira (artigos 1594 e 1595 do Código Civil) só considera como parentes colaterais até o quarto grau, sendo cada grau contado a partir do número de intermediários entre o ancestral em comum (Tabela 7).




São órgãos e tecidos que podem ser obtidos de doador vivo:
• Medula óssea (por aspiração óssea ou por coleta de sangue periférico);

• Parte do fígado;

• Parte do pâncreas;

• Parte do pulmão;

• Um dos rins.
Só é permitida a doação de rins ou partes de fígado, pâncreas ou pulmão se a retirada não causar ao doador comprometimento de suas funções vitais e aptidões físicas ou mentais e nem lhe provocar deformação. A retirada só será permitida se corresponder a uma necessidade terapêutica, comprovadamente indispensável e inadiável do receptor.

O doador deverá ser prévia e obrigatoriamente informado sobre as consequências e riscos possíveis da retirada de tecidos ou órgãos para doação, em documento lido e assinado por ele e mais duas testemunhas. O doador deve especificar em documento escrito qual tecido ou órgão que está doando para transplante em pessoa sua conhecida. Todos devem ser identificados (doador, testemunhas e receptor) e devidamente qualificados (nome, RG, endereço, etc.). Esse documento deve ser expedido em duas vias, uma das quais será destinada ao órgão do Ministério Público que atua no lugar de domicílio do doador, com protocolo de recebimento na outra, como condição para concretizar a doação.

A doação poderá ser revogada pelo doador a qualquer momento, antes de iniciado o procedimento de retirada do tecido ou órgão por ele especificado.


FUNDAMENTAÇÃO LEGAL

No Brasil, a morte encefálica e o transplante e órgãos e tecidos é regulamentada pelas seguintes leis, decretos e resoluções:
LEI FEDERAL Nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.
Regulamento que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências.

DECRETO FEDERAL Nº 2.268, de 30 de junho de 1997.
Regulamenta a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, e dá outras providências.

LEI FEDERAL Nº 10.211, de 23 de março de 2001.
Altera dispositivos da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento.

LEI FEDERAL Nº 10.406 – CÓDIGO CIVIL, de 10 de janeiro de 2002.
Os artigos 3º, 4º, 5º, 1594 e 1595 são relevantes em relação a este capítulo.

RESOLUÇÃO CFM Nº 1480, de 8 de agosto de 1997.
(Publicada no DOU, de 21 de agosto de 1997, Seção 1, pg. 18.227-8)
Revoga a Resolução CFM nº 1.346/91 e caracteriza a morte encefálica através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias.

RESOLUÇÃO CFM Nº 1.826, de 6 de dezembro de 2007.
(Publicada no DOU, de 6 de dezembro de 2007, Seção I, pg. 133)
Dispõe sobre a legalidade e o caráter ético da suspensão dos procedimentos de suportes terapêuticos quando da determinação de morte encefálica de indivíduo não doador.

LEI MUNICIPAL Nº 11.479 (Município de São Paulo), de 13 de janeiro de 1994.
Regulamentações do auxílio funeral no município de São Paulo que dispõe sobre a dispensa de pagamento ao Serviço Funerário Municipal de taxas, emolumentos e tarifas devidas em razão de funeral.

DECRETO MUNICIPAL Nº 43.560 (Município de São Paulo), de 31 de julho de 2003.
Regulamenta a lei nº 11.479, de 13 de janeiro de 1994, com a redação que lhe foi conferida pela lei nº 13.568, de 29 de abril de 2003, que dispõe sobre a dispensa de pagamento ao serviço funerário do município de São Paulo de taxas, emolumentos e tarifas devidas em razão da realização de funeral.

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8. Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.211, de 23 de março de 2001. Altera dispositivos da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que "dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento" [citado 24 Ago 2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10211.htm

9. Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil [citado 24 Ago 2016]. Disponível: em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm

10. Brasil. Presidência da República. Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providên-cias [citado 24 Ago 2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm

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Médico Pediatra com certificado de habilitação em Terapia Intensiva Pediátrica e Endocrinologia Pediátrica; Presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo (triênio 2013-2015); Presidente do Departamento de Segurança da Sociedade Brasileira de Pediatria (triênio 2016-2018); Membro do Departamento de Bioética da Sociedade de Pediatria de São Paulo; Membro da Câmera Técnica de Pediatria do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP); Delegado do CREMESP na Delegacia Regional Sul de São Paulo - SPl

Endereço para correspondência:
Mário Roberto Hirschheimer
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