ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2016 - Volume 6 - Número 3

Doença renal policística: relato de caso e revisão de literatura

Polycystic kidney disease: case report and literature review
Enfermedad renal poliquística: relato de caso y revisión de literatura


INTRODUÇÃO

As doenças renais policísticas (DRP) constituem um grupo de patologias graves que podem levar o indivíduo à falência renal1.

Na doença policística renal, os cistos são porções funcionais dos néfrons que se tornam progressivamente dilatados, podendo determinar obstrução dos túbulos adjacentes. Nesta forma de doença reconhecem-se duas entidades distintas conforme herança genética, morfologia dos cistos, aspectos clínicos, radiológicos e laboratoriais: doença policística renal autossômica recessiva (DPRAR) e a doença policística renal autossômica dominante (DPRAD)2.

A análise das mutações é fundamental para a compreensão dos mecanismos de atuação envolvidos na doença3.


CASO CLÍNICO

Gestante L.A.G.S., 22 anos, G3 P2 A0, indígena, proveniente da comunidade do Triunfo, município de Uiramutã, RR, deu entrada na emergência do Hospital Materno-Infantil Nossa Senhora de Nazaré sem pré-natal, em período expulsivo do trabalho de parto que se iniciou em sua aldeia, com BCF não audível.

Na sala de parto apresentou dificuldade de extração do feto, sendo expulsos apenas cabeça e membros superiores, ficando retidos tronco e abdome no canal vaginal. Foi levada com urgência ao centro cirúrgico, anestesiada e o feto foi retirado via vaginal com visível malformação, com aumento significativo do abdome, agenesia gonadal e pé torto congênito, pesando 3.025 g, sexo masculino.

O líquido amniótico era fétido e a puérpera apresentava hipertermia. A ecografia evidenciou múltiplas imagens anecoicas, arredondadas de conteúdo cístico bilateralmente, com superfície regular e de diversos tamanhos, fazendo com que o rim estivesse deformado e aumentado de volume, sugestivo de rins policísticos gigantes bilaterais.

Desenvolvimento

Geneticamente, a DPRAR é de herança autossômica recessiva. Os pais não são afetados e há um risco de 25% em cada gravidez de apresentar a doença. A ultrassonografia fetal feita a partir da 30ª semana de gestação poderá evidenciar rins com ecogenicidade aumentada, associados nos casos mais graves à bexiga pequena ou não vizualizada, e oligo-hidrâmnio.

Essas características não são patognomônicas da DPRAR, podendo ocorrer na DPRAD e na síndrome de Meckel. O aumento da concentração da alfa-fetoproteína e ou da trealase no líquido amniótico podem ser usados como marcadores adjuntos, mas não específicos da DPRAR2.

A DPRAR caracteriza-se pela ocorrência bilateral de cistos renais em recém-nascidos, lactentes, crianças e, ocasionalmente, em adultos. A presença de rins palpáveis ao nascimento é frequente, podendo ocorrer mais tardiamente, durante a evolução do quadro clínico2.

A DPRAR associa-se à fibrose hepática congênita e hipertensão portal, proliferação dos ductos biliares e, ocasionalmente, fibrose pancreática, podendo cursar com hipertensão arterial sistêmica (HAS) e evoluir para insuficiência renal progressiva.

Os rins apresentam características radiológicas e histológicas típicas: são aumentados de tamanho às custas de dilatações dos túbulos coletores, com elevação da ecogenicidade ao exame ultrassonográfico. Os cistos tendem a atingir tamanhos menores do que dois centímetros de diâmetro2.

A DPRAD é a doença renal congênita mais frequente, afetando um em cada 400 a 1000 nascimentos1. É uma importante causa de insuficiência renal crônica (IRC) em adultos, e se manifesta em geral a partir dos 30 a 40 anos de idade, podendo mais raramente afetar crianças e eventualmente recém-natos2.

A DPRAD é de herança autossômica dominante. A prole tem 50% de chance de herdar o gene; destes, quase 100% dos casos desenvolvem a doença2.

É geralmente causada por mutação genética no locus PKD1 localizada no braço curto do cromossomo 16, mas em aproximadamente 4% das famílias afetadas a doença está relacionada a mutações ainda desconhecidas, provavelmente localizadas em outro lugar do genoma2. Existem evidências da interação comum das proteínas policistinas 1 e 2 em rotas de eventos de adesão extracelular e transporte iônico, possibilitando a regulação do fluxo de Ca++ transmembrana3.

A DRPAD é caracterizada por dilatações císticas dos ductos coletores renais associadas invariavelmente a anormalidades hepáticas, tais quais disgenesia de ductos biliares e fibrose periportal. Pode ser diagnosticada durante a fase intraútero, utilizando-se a ultrassonografia. Cursa com oligodrâmnio e hipoplasia pulmonar, secundários à diminuição da produção urinária, sendo a insuficiência respiratória a maior causa de morbidade e mortalidade perinatal. Cerca de 30% dos neonatos afetados pela doença morrem logo após o nascimento, enquanto aproximadamente 50% dos pacientes que sobrevivem ao período neonatal progridem para insuficiência renal crônica terminal na primeira década de vida4.

As manifestações clínicas da DRPAD incluem: hipertensão, com necessidade de tratamento em mais de 70% dos casos, nefrolitíase, insuficiência renal, hipertensão portal, sangramento gastrointestinal, ruptura de varizes esofágicas, trombocitopenia, esplenomegalia, colangite e icterícia4.

Neste grupo, é importante a realização do aconselhamento genético e investigação clínica dos familiares. Manifesta-se, principalmente, por hematúria, dor lombar e HAS. Os rins são aumentados e contêm numerosos cistos de diferentes tamanhos, geralmente grandes, configurando um aspecto lobulado1.

Várias são as comorbidades que podem estar relacionadas à DRPAD, como envolvimento direto de outros órgãos, anormalidades do tecido conjuntivo, doença cardíaca, aneurisma intracraniano, doença diverticular e até mesmo trombose de veia cava inferior, devido à compressão extrínseca pelos cistos renais. Também já foi relatado caso de trombose de VCI devido a cistos intra-hepáticos na DRPAD1.

Os aneurismas intracranianos são a manifestação extrarrenal mais grave da DRPAD, apesar de estarem presentes em apenas 5% dos pacientes com DRPAD. A ruptura dos aneurismas geralmente ocorre quando eles atingem mais de 10 mm1.

A principal causa de morte em pacientes com doença renal policística é a doença cardiovascular, sendo que a hipertensão arterial é a principal determinante1.

Atualmente, o tratamento para DRPAD consiste no manejo sintomático das sequelas da doença, incluindo o controle da hipertensão arterial sistêmica. As taxas de sobrevida aumentaram significativamente devido ao aprimoramento dos cuidados neonatais e da terapia antihipertensiva.

Inibidor de enzima conversora de angiotensina, bloqueadores dos receptores de angiotensina II, diuréticos, bloqueadores dos canais de cálcio e agentes redutores de colesterol são usados para diminuir a progressão para insuficiência renal crônica. Falência renal é tratada com diálise ou transplante renal4.

Deve-se atentar também para as comorbidades provocadas pela DRPAD, como hipertensão, proteinúria, hipertrofia ventricular esquerda e outras complicações extrarrenais, como cistos em outros órgãos, provocando efeito de massa (compressão de veia cava inferior, icterícia obstrutiva). Nesses casos deve-se fazer uma punção a fim de reduzir o volume dos cistos1.

Entretanto, já existem muitas drogas sendo testadas em ensaios pré-clínicos e clínicos. O alvo dessas drogas são as cascatas de sinalização celular anormais, que levam a uma proliferação desregulada, desdiferenciação celular, apoptose e secreção de líquido. Algumas drogas promissoras são os antagonistas dos receptores V2 de vasopressina, como o tolvaptan, que reduzem o volume cístico, impedindo a progressão da doença; octreotide, que atua inibindo a produção do AMPc e a formação cística, atuando também nos cistos hepáticos; rapamicina e sirolimus, que são drogas imunosupressoras que atuam inibindo o mTOR e freando o crescimento celular e cístico; roscovitina, um inibidor das quinases dependentes de ciclina (cdks), que se mostrou eficaz em inibir o crescimento cístico pelo bloqueio da progressão do ciclo celular. Sua administração intermitente produz efeitos anticísticos mais duradouros ainda; etanercept, um inibidor do TNF-α; pioglitazona, que parece atuar no sistema Wnt/β-catenina1.

Estudos recentes apontam novas classes de agentes terapêuticos para a DRPAD, como antagonistas dos receptores do ácido lisofosfatídico (LPA) e agonistas PPAR-γ, que bloqueiam a síntese da proteína CFTR (regulador de condutância transmembrana da fibrose cística), impedindo, dessa maneira, a secreção de íons Clno interior do fluido cístico renal e biliar, assim como o crescimento dos cistos1.

O prognóstico varia de acordo com a gravidade da doença renal. Crianças com mais de 90% dos ductos envolvidos talvez não sobrevivam ao período neonatal devido à associação com hipoplasia pulmonar, em 30% dos neonatos afetados4.


CONCLUSÃO

A DRPAD é uma doença bastante complexa, que surge de alterações diversas nas vias de sinalização celular. A evolução natural da doença compreende crescimento cístico, formação de novos cistos e deterioração da função renal1.

É de fundamental importância o diagnóstico precoce por meio de exames como a ultrassonografia. Deve-se atentar a sintomas como dor, hematúria e infecção cística, que ocasionalmente podem aparecer nos portadores da doença.

O controle de comorbidades como hipertensão, proteinúria, aneurismas e hipertrofia ventricular esquerda é parte fundamental do tratamento da doença. O objetivo principal da terapêutica é a redução da morbimortalidade e controle das comorbidades. Na terapêutica utilizam-se drogas eficazes em reduzir o crescimento cístico e preservar a função renal1.

O prognóstico varia de acordo com a gravidade da doença renal. Crianças que sobrevivem ao período neonatal evoluem na maioria para insuficiência renal terminal4. O diagnóstico precoce da doença e o adequado acompanhamento clínico poderão minimizar e/ou retardar o surgimento das complicações, destacando-se a HAS, cujo manejo clínico adequado poderá retardar a perda funcional renal2.


REFERÊNCIAS

1. Malheiros GOM. Doença Renal Policística: uma revisão da literatura [monografia]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Medicina; 2012.

2. Furusawa EA, Koch VH, Fujimura M, Saldanha LB, Okay Y. Doença policística renal na infância: estudo de 22 casos. J Bras Nefrol. 1995;17(1):35-9

3. Milani V, Mattos C, Porsch D, Rossato L, Barros E, Nunes A. Doença Renal Policística do Adulto: uma atualização. Rev HCPA 2007;27(1):26-9.

4. Peres LAB, Ferreira JRL, Bresolin AC, Araújo Junior ER. Doença Renal Policística Autossômica Recessiva. Relato de Caso e Revisão de Literatura. J Bras Nefrol. 2008;30(2):165-9.










1. Médica residente de Pediatria, Boa Vista, RR, Brasil
2. Médica obstetra. Professora colaboradora da Universidade Federal de Roraima. Professora da Residencia médica em Ginecología e Obstetricia. Boa Vista, RR, Brasil

Endereço para correspondência:
Leidiane Martins Saraiva
Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth - HMINSN
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