ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Editorial - Ano 2017 - Volume 7 - Supl.1

Tuberculose infantil em 2017: Para onde caminhamos?

Childhood tuberculosis in 2017: Where do we go from here?
Tuberculosis Infantil en 2017: ¿A Dónde Caminamos?


A última década trouxe notáveis avanços científicos na tuberculose infantil. Depois de várias décadas de escassos estudos, novos conhecimentos surgiram em um ritmo mais acelerado ao longo dos últimos dez anos. Dentre esses avanços, dos quais muitos são delineados neste artigo, estão: a modelagem aperfeiçoada da epidemiologia da tuberculose infantil; a padronização de regimes de tratamento em crianças, tanto para a tuberculose sensível aos medicamentos quanto para a resistente; o desenvolvimento, estudo e implantação do Xpert MTB/RIF, que apresenta melhores resultados para o diagnóstico rápido da tuberculose em crianças comparado à pesquisa de BAAR em esfregaço de escarro; o desenvolvimento dos ensaios para os receptores de interferon gama (IGRAs), um tipo de exame sanguíneo que provavelmente logo substituirá o teste cutâneo de tuberculina nos países de alta renda, graças à sua especificidade muito mais alta e ao seu valor preditivo positivo, especialmente em crianças que receberam a vacina com o bacilo Calmette-Guérin (BCG); e a disponibilidade de vários regimes diferentes de tratamento da infecção tuberculosa, que reduziram o número de doses necessárias para um efeito satisfatório de 180-270 doses (para a isoniazida), para 120 (para a rifampicina) e mais tarde para 12 (com a combinação de isoniazida e rifapentina). Atualmente, muitos desses avanços estão indisponíveis nos países e regiões com as mais altas incidências de tuberculose, mas existe a esperança de que o custo possa vir a ser reduzido e a tecnologia necessária simplificada o bastante para tornar tais avanços mais acessíveis onde são mais necessários. Ainda estamos buscando o “Santo Graal” de um teste preciso e sensível para o diagnóstico de tuberculose ativa em crianças que possa ser aplicado no local de atendimento.

Eu exerço a Medicina em um ambiente de baixa incidência de tuberculose. Alguns aspectos da tuberculose infantil podem ser estudados e compreendidos mais facilmente em ambientes de baixa incidência, devido à ausência de um “ruído de fundo” da tuberculose na comunidade, que dificulta a análise de casos individuais. No meu ambiente, todo caso de tuberculose infantil é considerado um evento sentinela e, para cada um deles, perguntamos: “Como este caso poderia ter sido evitado?” Em ambientes de baixa incidência, a tuberculose pode ser considerada uma série de focos ou um conjunto de pequenos surtos. Pode-se estabelecer o valor do rastreamento de contatos para identificar crianças que estão infectadas e têm um alto risco de desenvolver a doença. Podem-se determinar ambientes com alto risco de transmissão para calcular as taxas de infecção em crianças; isto permite identificar modos e locais de transmissão menos comuns. Neste tipo de ambiente, está bem estabelecida a eficácia do tratamento de crianças pequenas que foram infectadas ou expostas. Também pudemos estabelecer, por meio de exames em escolas e hospitais pediátricos, que a vasta maioria das crianças com tuberculose pulmonar não é fonte de contágio1. Estas são algumas das lições que se aprendem num ambiente de baixa incidência:

1. A prevenção da tuberculose infantil requer um sistema com coordenação central e atividades comunitárias.

2. Associar uma criança a um caso fonte aumenta a precisão do diagnóstico e a eficácia do tratamento.

3. A análise da tuberculose infantil é uma janela para a eficácia dos programas de controle da tuberculose.

4. A maior parte dos casos de tuberculose infantil pode ser evitada a um custo muito baixo, mas isso requer organização e prioridade.

5. Crianças migrantes têm um alto risco de tuberculose e têm dificuldades para acessar serviços centrais e comunitários, especialmente se não tiverem seguro de saúde.


Infelizmente, nem todas as notícias foram boas em 2017. Antes de 2012, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não publicava estimativas do número de casos de tuberculose em crianças, porque a organização não tinha um modelo adequado e validado para isso. A primeira estimativa de casos anuais em crianças com menos de 15 anos, feita em 2012, foi de 490 mil casos, usando a mesma metodologia usada nas estimativas de casos em adultos, mas a OMS e os especialistas em tuberculose infantil sabiam que essa metodologia era falha. Nos últimos cinco anos, foram publicados estudos sofisticados de modelagem que mostraram que o número de casos é muito maior2,3. A OMS agora estima que haja cerca de 1 milhão de casos anuais de enfermidade tuberculosa em crianças, com 210 mil mortes4. Entretanto, na verdade apenas cerca de 30% dos casos são notificados e registrados. Os estudos de modelagem também sugerem que há aproximadamente 54 milhões de crianças com infecção tuberculosa não tratada apenas nos 22 países com as maiores incidências; é deste reservatório que surgirão muitos futuros casos de enfermidade tuberculosa3.

Um artigo recente de Jenkins et al.5 no Lancet Infectious Diseases analisou os resultados de artigos publicados e de outras bases de dados, comparando a mortalidade da tuberculose infantil entre a era anterior à disponibilidade de tratamento, a era anterior à vacina BCG e a era moderna. Os autores mostraram que, na era anterior ao tratamento, a taxa de mortalidade agregada era de 21,9%, sendo consideravelmente maior em crianças de 0‑4 anos do que naquelas com 5‑14 anos (43,6% [IC 95% 36,8-50,6] contra 14,9% [11,5-19,1]). Em contraste, nos estudos publicados a partir de 1980, a taxa de mortalidade agregada era de 0,9%, e de apenas 2,0% em crianças de 0‑4 anos. Porém, de acordo com as estimativas da OMS, a taxa atual de mortalidade em casos de tuberculose em crianças de 0‑14 é de 21%, quase idêntica à determinada por Jenkins et al. na era pré-quimioterapia! O continente americano tem uma taxa de mortalidade de 8%. A taxa varia de 2% na Europa até 34% na África4. Claramente, estamos fracassando em proteger as crianças da devastação da tuberculose6. Estudos clínicos e de autópsias demonstram que, em regiões de alta incidência de tuberculose, muitos casos de tuberculose infantil são diagnosticados erroneamente como pneumonia bacteriana ou viral7.

O maior problema é que uma grande proporção de casos de tuberculose infantil não está sendo detectada; assim, muitas crianças estão morrendo sem diagnóstico ou tratamento. Há muitas razões pelas quais a tuberculose infantil não tem recebido uma atenção adequada por parte dos programas de saúde infantil e contra a tuberculose em geral. Uma delas é a dificuldade de confirmação microbiológica da tuberculose em crianças. O diagnóstico e a notificação tradicionais da tuberculose em adultos têm se baseado quase exclusivamente nos exames microbiológicos. Embora a grande maioria dos casos de tuberculose em adultos possa ser confirmada por meios microbiológicos, seja através da pesquisa de BAAR em esfregaços, do Xpert MTB/RIF ou de culturas, pode-se obter uma confirmação microbiológica de enfermidade tuberculosa em no máximo 30% a 40% dos casos em crianças. Já vi muitas crianças que imigraram para os Estados Unidos com tuberculose pulmonar óbvia, mas foi dito às suas famílias durante os procedimentos de imigração que a criança não tinha tuberculose porque ela não tinha um esfregaço positivo para BAAR.

A radiografia de tórax é essencial em um programa contra a tuberculose infantil, mas continua indisponível em muitos ambientes de alta e média incidência. Muitos anos atrás, compareci a um encontro de vários gerentes de programas de combate à tuberculose em países africanos. Esse encontro tinha a finalidade de ensiná-los a respeito da tuberculose infantil. Quando o curso prosseguiu e eles perceberam a importância da radiografia de tórax, muitos disseram que poderiam tê-la disponibilizado, mas não o fizeram porque a radiografia não era considerada essencial no diagnóstico da tuberculose pulmonar em adultos, que se baseava em exames de escarro. Como a tuberculose infantil é difícil de confirmar e as crianças raramente são contagiosas a outras pessoas, muitos programas locais e nacionais contra a tuberculose têm dado pouca atenção às crianças, e as notificações de casos subsequentes têm sido horrivelmente inadequadas.

Há várias situações em que se esperaria encontrar um grande número de casos de tuberculose infantil. O diagnóstico e o manejo da tuberculose são deficientes em muitos programas contra o HIV em crianças. Um levantamento de programas de tratamento com antirretrovirais na África, Ásia, Caribe e Américas Central e do Sul documentou uma baixa utilização de serviços de diagnóstico e triagem da tuberculose nesses programas8. Embora a microscopia do escarro e a radiografia de tórax estivessem disponíveis em todos esses programas, dentre as 146 crianças diagnosticadas com tuberculose foi usada a radiografia de tórax em 86%, a microscopia do escarro em 52%, culturas em 17% e o Xpert MTB/RIF em 8% das crianças. Apenas 86% das instalações ofereciam tratamento para a tuberculose e 30% nunca forneceram tratamento para infecção tuberculosa em crianças infectadas com o HIV. Embora as orientações da OMS recomendem a integração de atividades contra a tuberculose e o HIV em programas de prevenção da transmissão materno-infantil (PTMI), essa integração é inadequada ou totalmente ausente na maioria dos países e regiões com alta incidência de tuberculose.

Programas contra a desnutrição são uma situação de alto risco. Em regiões com alta incidência de tuberculose, a desnutrição é um preditor de enfermidade tuberculosa e de mau prognóstico. Um estudo prospectivo de pneumonia em crianças desnutridas em Bangladesh mostrou que de 1.482 crianças desnutridas, 405 tinham sintomas respiratórios e radiografias torácicas anormais; a tuberculose foi confirmada por métodos microbiológicos em 7% delas e clinicamente em 16%9. A tuberculose pulmonar em crianças pequenas apresenta-se frequentemente como uma pneumonia aguda ou crônica, mas o diagnóstico costuma não ser nem mesmo considerado até que a doença já esteja bem avançada. Infelizmente, muitas vezes a triagem de tuberculose em centros de reabilitação nutricional de crianças é deficiente, mesmo em países com alta incidência. Um estudo na Índia mostrou que um algoritmo padronizado para o diagnóstico da tuberculose era seguido apenas para 37% das crianças. As dificuldades operacionais incluíam a indisponibilidade de pediatras, equipamentos radiológicos não funcionando, o uso de uma solução de tuberculina de qualidade inferior para testes e treinamento deficiente do pessoal a respeito da tuberculose10.

Há também razões institucionais pelas quais a tuberculose infantil tem sido negligenciada. O movimento pela sobrevivência das crianças não abraçou a tuberculose como um problema importante devido à ausência histórica de estimativas precisas que demonstrassem o verdadeiro e enorme impacto da doença e da mortalidade. Havia um círculo vicioso: sem evidências de subnotificação, não havia justificativa para fornecer recursos adicionais para o diagnóstico, tratamento e prevenção da tuberculose infantil; porém, os recursos para se determinar adequadamente o impacto real da tuberculose infantil - as evidências - não eram disponibilizados.

Na maioria dos países de baixa e média renda, os serviços de tuberculose, incluindo o acesso a medicamentos e exames diagnósticos, estão limitados a programas nacionais; assim, é compreensível que poucas atividades tenham sido efetuadas pelos programas de saúde infantil para diagnosticar, tratar e prevenir a tuberculose. Como resultado, têm havido poucas reivindicações de serviços de tuberculose infantil por parte dos pediatras e especialistas em saúde infantil.

Infelizmente, a maioria dos programas nacionais contra a tuberculose em países de alta incidência também tem negligenciado a tuberculose infantil. Muitos programas nacionais contra a tuberculose não têm um plano abrangente nesse sentido. O resultado é que medidas preventivas eficazes e de baixo custo, que são padrões em países de baixa incidência, não foram aplicadas em países de alta incidência.

Durante muitas décadas, em condições de poucos recursos, a OMS tem recomendado avaliar as crianças que vivem em residências que têm uma pessoa com tuberculose potencialmente contagiosa; crianças com sintomas devem ser avaliadas quanto à presença da doença e aquelas com menos de 5 anos de idade, mesmo sem sintomas, devem receber 6 meses de tratamento com isoniazida. Porém, esta intervenção simples e segura raramente é utilizada, e as regiões com os maiores índices de mortalidade pela tuberculose infantil têm as menores proporções de crianças expostas sendo tratadas.

Então, para onde estamos caminhando? Em 2013, reconhecendo a gravidade do problema da tuberculose infantil e as muitas oportunidades perdidas para o seu diagnóstico e prevenção, a OMS, o UNICEF e várias outras organizações escreveram e publicaram o Guia para a Tuberculose Infantil: Em Direção a Zero Mortes (Mortalidade Zero)11. Este documento estabeleceu a meta de zero mortes por tuberculose infantil, reconhecendo que atingir essa meta exigirá a “defesa constante da causa, mais compromisso, mobilização de mais recursos e um esforço conjunto por parte de todos os interessados para oferecer cuidados de saúde para crianças e para o controle da tuberculose”. O documento estabeleceu 10 passos básicos que serão necessários:

1. Incluir as necessidades de crianças e adolescentes na pesquisa, no desenvolvimento de políticas e na prática clínica;

2. Coletar e publicar dados pediátricos melhores, incluindo dados a respeito da prevenção da tuberculose;

3. Desenvolver materiais pediátricos específicos para treinamento e referência de profissionais de saúde;

4. Fomentar o conhecimento e a liderança locais quanto à tuberculose infantil, especialmente entre os pediatras;

5. Não perder oportunidades críticas de intervenção de indivíduos e organizações;

6. Envolver todos os principais interessados em todos os níveis;

7. Desenvolver estratégias integradas para crianças, centradas na família e na comunidade

8. Abordar lacunas na pesquisa sobre tuberculose infantil: diagnóstico, tratamento e prevenção;

9. Atingir a meta de financiamento para o combate à tuberculose infantil;

10. Formar alianças e parcerias para melhorar o diagnóstico e o manejo da tuberculose infantil.


Mais recentemente, a OMS publicou sua Estratégia pelo Fim da Tuberculose. Esse documento estabeleceu metas ambiciosas para a redução e eventual eliminação da mortalidade e morbidade relacionadas à tuberculose e do impacto financeiro enfrentado pelas famílias e pelos pacientes. Uma das pedras angulares dessa estratégia é o cuidado centrado no paciente, enfatizando as necessidades dos pacientes e não aquelas dos programas.

Entretanto, para crianças, essa estratégia não é ampla o suficiente. Para crianças, o cuidado centrado na família é essencial, pois a residência da família e os locais mais diretamente relacionados a ela são onde se transmite a maior parte das infecções por Mycobacterium tuberculosis. A atividade-chave no processo de encontrar crianças expostas e infectadas, assim como aquelas nos estágios iniciais da enfermidade tuberculosa, é o rastreamento de contatos. Saber que uma criança foi exposta recentemente a alguém com tuberculose aumenta significativamente o valor preditivo positivo dos testes cutâneos e dos IGRAs, das radiografias de tórax e dos sinais e sintomas clínicos consistentes.

Identificando-se crianças recentemente expostas e infectadas, pode-se evitar o estabelecimento da infeção, impedir que esta progrida à enfermidade, detectar a doença precoce, que é mais fácil de tratar e curar, e evitar que a infecção se dissemine mais. Muitos estudos de rastreamento de contatos, tanto em países com baixa quanto com alta incidência de tuberculose, estabeleceram a importância e o alto rendimento dessa atividade para o tratamento precoce e a prevenção da tuberculose infantil. Além disto, o rastreamento de contatos pode ser a única maneira de estabelecer a presença de resistência aos medicamentos em crianças com infecção ou naquelas com a doença cujos microrganismos não podem ser cultivados. Dentre os muitos benefícios do rastreamento de contatos, estão:

1. Benefício para o indivíduo: diagnóstico preciso e tratamento apropriado;

2. Benefício para a família: acesso à terapia de observação direta e a outros serviços de apoio, o efeito psicológico de se evitar a tuberculose nas pessoas amadas, e maior poder sobre a doença;

3. Benefício para a sociedade: evitar doenças e mortes futuras;

4. Benefício para o Programa contra a tuberculose: detecção precisa e mais completa de casos, prevenção, redução de custos.


Uma abordagem do controle da tuberculose centrada na família é essencial para crianças. Em seu editorial de 2013, Graham e Triasih declararam: “Temos as políticas, as evidências e as ferramentas de que necessitamos para implantar [o rastreamento de contatos]; até a vontade política já está começando a surgir, mas [estudos recentes] enfatizam as consequências e as oportunidades perdidas da negligência continuada”.

As soluções finais para a prevenção da tuberculose infantil serão locais, de modo que os programas nacionais e regionais de combate à tuberculose, juntamente com programas e organizações governamentais e comunitários, precisarão elaborar planos e fornecer recursos para esse esforço. Porém, um elemento essencial será a comunidade dos pediatras, outros profissionais de saúde que cuidam de crianças e organizações de apoio à infância desenvolvendo a vontade política de finalmente enfrentar o flagelo da tuberculose infantil.


REFERÊNCIAS

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Department of Pediatric Medicine, Infectious Disease, Baylor College of Medicine, Texas Children´s Hospital

Endereço para correspondência:
Jeffrey R. Starke
Department of Pediatric Medicine, Infectious Disease, Baylor College of Medicine, Texas Children´s Hospital
Baylor Plaza, Houston, TX 77030, EUA
E-mail: jstarke@bcm.edu

Data de Submissão: 04/04/2017
Data de Aprovação: 07/04/2017