Editorial - Ano 2017 - Volume 7 - Supl.1
Tuberculose infantil em 2017: Para onde caminhamos?
Childhood tuberculosis in 2017: Where do we go from here?
Tuberculosis Infantil en 2017: ¿A Dónde Caminamos?
Eu exerço a Medicina em um ambiente de baixa incidência de tuberculose. Alguns aspectos da tuberculose infantil podem ser estudados e compreendidos mais facilmente em ambientes de baixa incidência, devido à ausência de um “ruído de fundo” da tuberculose na comunidade, que dificulta a análise de casos individuais. No meu ambiente, todo caso de tuberculose infantil é considerado um evento sentinela e, para cada um deles, perguntamos: “Como este caso poderia ter sido evitado?” Em ambientes de baixa incidência, a tuberculose pode ser considerada uma série de focos ou um conjunto de pequenos surtos. Pode-se estabelecer o valor do rastreamento de contatos para identificar crianças que estão infectadas e têm um alto risco de desenvolver a doença. Podem-se determinar ambientes com alto risco de transmissão para calcular as taxas de infecção em crianças; isto permite identificar modos e locais de transmissão menos comuns. Neste tipo de ambiente, está bem estabelecida a eficácia do tratamento de crianças pequenas que foram infectadas ou expostas. Também pudemos estabelecer, por meio de exames em escolas e hospitais pediátricos, que a vasta maioria das crianças com tuberculose pulmonar não é fonte de contágio1. Estas são algumas das lições que se aprendem num ambiente de baixa incidência:
1. A prevenção da tuberculose infantil requer um sistema com coordenação central e atividades comunitárias.
2. Associar uma criança a um caso fonte aumenta a precisão do diagnóstico e a eficácia do tratamento.
3. A análise da tuberculose infantil é uma janela para a eficácia dos programas de controle da tuberculose.
4. A maior parte dos casos de tuberculose infantil pode ser evitada a um custo muito baixo, mas isso requer organização e prioridade.
5. Crianças migrantes têm um alto risco de tuberculose e têm dificuldades para acessar serviços centrais e comunitários, especialmente se não tiverem seguro de saúde.
Infelizmente, nem todas as notícias foram boas em 2017. Antes de 2012, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não publicava estimativas do número de casos de tuberculose em crianças, porque a organização não tinha um modelo adequado e validado para isso. A primeira estimativa de casos anuais em crianças com menos de 15 anos, feita em 2012, foi de 490 mil casos, usando a mesma metodologia usada nas estimativas de casos em adultos, mas a OMS e os especialistas em tuberculose infantil sabiam que essa metodologia era falha. Nos últimos cinco anos, foram publicados estudos sofisticados de modelagem que mostraram que o número de casos é muito maior2,3. A OMS agora estima que haja cerca de 1 milhão de casos anuais de enfermidade tuberculosa em crianças, com 210 mil mortes4. Entretanto, na verdade apenas cerca de 30% dos casos são notificados e registrados. Os estudos de modelagem também sugerem que há aproximadamente 54 milhões de crianças com infecção tuberculosa não tratada apenas nos 22 países com as maiores incidências; é deste reservatório que surgirão muitos futuros casos de enfermidade tuberculosa3.
Um artigo recente de Jenkins et al.5 no Lancet Infectious Diseases analisou os resultados de artigos publicados e de outras bases de dados, comparando a mortalidade da tuberculose infantil entre a era anterior à disponibilidade de tratamento, a era anterior à vacina BCG e a era moderna. Os autores mostraram que, na era anterior ao tratamento, a taxa de mortalidade agregada era de 21,9%, sendo consideravelmente maior em crianças de 0‑4 anos do que naquelas com 5‑14 anos (43,6% [IC 95% 36,8-50,6] contra 14,9% [11,5-19,1]). Em contraste, nos estudos publicados a partir de 1980, a taxa de mortalidade agregada era de 0,9%, e de apenas 2,0% em crianças de 0‑4 anos. Porém, de acordo com as estimativas da OMS, a taxa atual de mortalidade em casos de tuberculose em crianças de 0‑14 é de 21%, quase idêntica à determinada por Jenkins et al. na era pré-quimioterapia! O continente americano tem uma taxa de mortalidade de 8%. A taxa varia de 2% na Europa até 34% na África4. Claramente, estamos fracassando em proteger as crianças da devastação da tuberculose6. Estudos clínicos e de autópsias demonstram que, em regiões de alta incidência de tuberculose, muitos casos de tuberculose infantil são diagnosticados erroneamente como pneumonia bacteriana ou viral7.
O maior problema é que uma grande proporção de casos de tuberculose infantil não está sendo detectada; assim, muitas crianças estão morrendo sem diagnóstico ou tratamento. Há muitas razões pelas quais a tuberculose infantil não tem recebido uma atenção adequada por parte dos programas de saúde infantil e contra a tuberculose em geral. Uma delas é a dificuldade de confirmação microbiológica da tuberculose em crianças. O diagnóstico e a notificação tradicionais da tuberculose em adultos têm se baseado quase exclusivamente nos exames microbiológicos. Embora a grande maioria dos casos de tuberculose em adultos possa ser confirmada por meios microbiológicos, seja através da pesquisa de BAAR em esfregaços, do Xpert MTB/RIF ou de culturas, pode-se obter uma confirmação microbiológica de enfermidade tuberculosa em no máximo 30% a 40% dos casos em crianças. Já vi muitas crianças que imigraram para os Estados Unidos com tuberculose pulmonar óbvia, mas foi dito às suas famílias durante os procedimentos de imigração que a criança não tinha tuberculose porque ela não tinha um esfregaço positivo para BAAR.
A radiografia de tórax é essencial em um programa contra a tuberculose infantil, mas continua indisponível em muitos ambientes de alta e média incidência. Muitos anos atrás, compareci a um encontro de vários gerentes de programas de combate à tuberculose em países africanos. Esse encontro tinha a finalidade de ensiná-los a respeito da tuberculose infantil. Quando o curso prosseguiu e eles perceberam a importância da radiografia de tórax, muitos disseram que poderiam tê-la disponibilizado, mas não o fizeram porque a radiografia não era considerada essencial no diagnóstico da tuberculose pulmonar em adultos, que se baseava em exames de escarro. Como a tuberculose infantil é difícil de confirmar e as crianças raramente são contagiosas a outras pessoas, muitos programas locais e nacionais contra a tuberculose têm dado pouca atenção às crianças, e as notificações de casos subsequentes têm sido horrivelmente inadequadas.
Há várias situações em que se esperaria encontrar um grande número de casos de tuberculose infantil. O diagnóstico e o manejo da tuberculose são deficientes em muitos programas contra o HIV em crianças. Um levantamento de programas de tratamento com antirretrovirais na África, Ásia, Caribe e Américas Central e do Sul documentou uma baixa utilização de serviços de diagnóstico e triagem da tuberculose nesses programas8. Embora a microscopia do escarro e a radiografia de tórax estivessem disponíveis em todos esses programas, dentre as 146 crianças diagnosticadas com tuberculose foi usada a radiografia de tórax em 86%, a microscopia do escarro em 52%, culturas em 17% e o Xpert MTB/RIF em 8% das crianças. Apenas 86% das instalações ofereciam tratamento para a tuberculose e 30% nunca forneceram tratamento para infecção tuberculosa em crianças infectadas com o HIV. Embora as orientações da OMS recomendem a integração de atividades contra a tuberculose e o HIV em programas de prevenção da transmissão materno-infantil (PTMI), essa integração é inadequada ou totalmente ausente na maioria dos países e regiões com alta incidência de tuberculose.
Programas contra a desnutrição são uma situação de alto risco. Em regiões com alta incidência de tuberculose, a desnutrição é um preditor de enfermidade tuberculosa e de mau prognóstico. Um estudo prospectivo de pneumonia em crianças desnutridas em Bangladesh mostrou que de 1.482 crianças desnutridas, 405 tinham sintomas respiratórios e radiografias torácicas anormais; a tuberculose foi confirmada por métodos microbiológicos em 7% delas e clinicamente em 16%9. A tuberculose pulmonar em crianças pequenas apresenta-se frequentemente como uma pneumonia aguda ou crônica, mas o diagnóstico costuma não ser nem mesmo considerado até que a doença já esteja bem avançada. Infelizmente, muitas vezes a triagem de tuberculose em centros de reabilitação nutricional de crianças é deficiente, mesmo em países com alta incidência. Um estudo na Índia mostrou que um algoritmo padronizado para o diagnóstico da tuberculose era seguido apenas para 37% das crianças. As dificuldades operacionais incluíam a indisponibilidade de pediatras, equipamentos radiológicos não funcionando, o uso de uma solução de tuberculina de qualidade inferior para testes e treinamento deficiente do pessoal a respeito da tuberculose10.
Há também razões institucionais pelas quais a tuberculose infantil tem sido negligenciada. O movimento pela sobrevivência das crianças não abraçou a tuberculose como um problema importante devido à ausência histórica de estimativas precisas que demonstrassem o verdadeiro e enorme impacto da doença e da mortalidade. Havia um círculo vicioso: sem evidências de subnotificação, não havia justificativa para fornecer recursos adicionais para o diagnóstico, tratamento e prevenção da tuberculose infantil; porém, os recursos para se determinar adequadamente o impacto real da tuberculose infantil - as evidências - não eram disponibilizados.
Na maioria dos países de baixa e média renda, os serviços de tuberculose, incluindo o acesso a medicamentos e exames diagnósticos, estão limitados a programas nacionais; assim, é compreensível que poucas atividades tenham sido efetuadas pelos programas de saúde infantil para diagnosticar, tratar e prevenir a tuberculose. Como resultado, têm havido poucas reivindicações de serviços de tuberculose infantil por parte dos pediatras e especialistas em saúde infantil.
Infelizmente, a maioria dos programas nacionais contra a tuberculose em países de alta incidência também tem negligenciado a tuberculose infantil. Muitos programas nacionais contra a tuberculose não têm um plano abrangente nesse sentido. O resultado é que medidas preventivas eficazes e de baixo custo, que são padrões em países de baixa incidência, não foram aplicadas em países de alta incidência.
Durante muitas décadas, em condições de poucos recursos, a OMS tem recomendado avaliar as crianças que vivem em residências que têm uma pessoa com tuberculose potencialmente contagiosa; crianças com sintomas devem ser avaliadas quanto à presença da doença e aquelas com menos de 5 anos de idade, mesmo sem sintomas, devem receber 6 meses de tratamento com isoniazida. Porém, esta intervenção simples e segura raramente é utilizada, e as regiões com os maiores índices de mortalidade pela tuberculose infantil têm as menores proporções de crianças expostas sendo tratadas.
Então, para onde estamos caminhando? Em 2013, reconhecendo a gravidade do problema da tuberculose infantil e as muitas oportunidades perdidas para o seu diagnóstico e prevenção, a OMS, o UNICEF e várias outras organizações escreveram e publicaram o Guia para a Tuberculose Infantil: Em Direção a Zero Mortes (Mortalidade Zero)11. Este documento estabeleceu a meta de zero mortes por tuberculose infantil, reconhecendo que atingir essa meta exigirá a “defesa constante da causa, mais compromisso, mobilização de mais recursos e um esforço conjunto por parte de todos os interessados para oferecer cuidados de saúde para crianças e para o controle da tuberculose”. O documento estabeleceu 10 passos básicos que serão necessários:
1. Incluir as necessidades de crianças e adolescentes na pesquisa, no desenvolvimento de políticas e na prática clínica;
2. Coletar e publicar dados pediátricos melhores, incluindo dados a respeito da prevenção da tuberculose;
3. Desenvolver materiais pediátricos específicos para treinamento e referência de profissionais de saúde;
4. Fomentar o conhecimento e a liderança locais quanto à tuberculose infantil, especialmente entre os pediatras;
5. Não perder oportunidades críticas de intervenção de indivíduos e organizações;
6. Envolver todos os principais interessados em todos os níveis;
7. Desenvolver estratégias integradas para crianças, centradas na família e na comunidade
8. Abordar lacunas na pesquisa sobre tuberculose infantil: diagnóstico, tratamento e prevenção;
9. Atingir a meta de financiamento para o combate à tuberculose infantil;
10. Formar alianças e parcerias para melhorar o diagnóstico e o manejo da tuberculose infantil.
Mais recentemente, a OMS publicou sua Estratégia pelo Fim da Tuberculose. Esse documento estabeleceu metas ambiciosas para a redução e eventual eliminação da mortalidade e morbidade relacionadas à tuberculose e do impacto financeiro enfrentado pelas famílias e pelos pacientes. Uma das pedras angulares dessa estratégia é o cuidado centrado no paciente, enfatizando as necessidades dos pacientes e não aquelas dos programas.
Entretanto, para crianças, essa estratégia não é ampla o suficiente. Para crianças, o cuidado centrado na família é essencial, pois a residência da família e os locais mais diretamente relacionados a ela são onde se transmite a maior parte das infecções por Mycobacterium tuberculosis. A atividade-chave no processo de encontrar crianças expostas e infectadas, assim como aquelas nos estágios iniciais da enfermidade tuberculosa, é o rastreamento de contatos. Saber que uma criança foi exposta recentemente a alguém com tuberculose aumenta significativamente o valor preditivo positivo dos testes cutâneos e dos IGRAs, das radiografias de tórax e dos sinais e sintomas clínicos consistentes.
Identificando-se crianças recentemente expostas e infectadas, pode-se evitar o estabelecimento da infeção, impedir que esta progrida à enfermidade, detectar a doença precoce, que é mais fácil de tratar e curar, e evitar que a infecção se dissemine mais. Muitos estudos de rastreamento de contatos, tanto em países com baixa quanto com alta incidência de tuberculose, estabeleceram a importância e o alto rendimento dessa atividade para o tratamento precoce e a prevenção da tuberculose infantil. Além disto, o rastreamento de contatos pode ser a única maneira de estabelecer a presença de resistência aos medicamentos em crianças com infecção ou naquelas com a doença cujos microrganismos não podem ser cultivados. Dentre os muitos benefícios do rastreamento de contatos, estão:
1. Benefício para o indivíduo: diagnóstico preciso e tratamento apropriado;
2. Benefício para a família: acesso à terapia de observação direta e a outros serviços de apoio, o efeito psicológico de se evitar a tuberculose nas pessoas amadas, e maior poder sobre a doença;
3. Benefício para a sociedade: evitar doenças e mortes futuras;
4. Benefício para o Programa contra a tuberculose: detecção precisa e mais completa de casos, prevenção, redução de custos.
Uma abordagem do controle da tuberculose centrada na família é essencial para crianças. Em seu editorial de 2013, Graham e Triasih declararam: “Temos as políticas, as evidências e as ferramentas de que necessitamos para implantar [o rastreamento de contatos]; até a vontade política já está começando a surgir, mas [estudos recentes] enfatizam as consequências e as oportunidades perdidas da negligência continuada”.
As soluções finais para a prevenção da tuberculose infantil serão locais, de modo que os programas nacionais e regionais de combate à tuberculose, juntamente com programas e organizações governamentais e comunitários, precisarão elaborar planos e fornecer recursos para esse esforço. Porém, um elemento essencial será a comunidade dos pediatras, outros profissionais de saúde que cuidam de crianças e organizações de apoio à infância desenvolvendo a vontade política de finalmente enfrentar o flagelo da tuberculose infantil.
REFERÊNCIAS
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Department of Pediatric Medicine, Infectious Disease, Baylor College of Medicine, Texas Children´s Hospital
Endereço para correspondência:
Jeffrey R. Starke
Department of Pediatric Medicine, Infectious Disease, Baylor College of Medicine, Texas Children´s Hospital
Baylor Plaza, Houston, TX 77030, EUA
E-mail: jstarke@bcm.edu
Data de Submissão: 04/04/2017
Data de Aprovação: 07/04/2017