ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo de Revisao - Ano 2011 - Volume 1 - Supl.1

A pediatria e a prioridade da primeira infância: fundamentos e perspectivas para o novo milênio

Pediatrics and the infancy and early childhood priority: fundamentals and perspectives for the new millennium

RESUMO

A evolução científica da pediatria tem contribuído para mostrar o valor que possui a primeira infância, período decisivo de formação do futuro cidadão. Os organismos internacionais já preceituaram os direitos da criança. A constituição federal do Brasil dá-lhes prioridade absoluta. A pediatria tem atuado de forma abrangente na defesa dessa faixa etária. O direito de crianças e adolescentes ao atendimento pediátrico é referência para a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

Palavras-chave: criança, neurônios, pediatria, puericultura, sinapses.

ABSTRACT

The scientific evolution of pediatrics has contributed to show the value that infancy and early childhood have crucial building period of the future citizens. International agencies have established the rights of the child, which receive top priority in Brazilian Federal Constitution. Pediatrics has acted comprehensively in supporting this age group. The right of children and adolescents to pediatric care is a reference to the Brazilian Society of Pediatrics.

Keywords: child, child care, neurons, pediatrics, sunapses.


INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira começa a despertar para a prioridade de investir na primeira infância. O tema passa a estar presente nas pautas de discussões de órgãos como o Congresso Nacional, espaço em que os direitos e interesses da criança quase nunca sensibilizavam os representantes do povo. Não se davam conta do dever de representar também as crianças, ativos integrantes da sociedade, como segmento em fase decisiva de formação da cidadania. Entidades não governamentais têm sido até mais responsáveis que os governos na defesa desta faixa populacional. Movidas por desdobramentos próprios de sua natureza institucional, tentam manter o assunto na pauta dos meios de comunicação, bem como em eventos diversos que realizam no intuito de difundir argumentos e evidências que sustentam a veracidade de seus compromissos.

A pediatria brasileira tem dado mostra de inesgotável convicção no empenho com que se envolve na luta por essa causa grandiosa, sem a qual o País não alcançará o nível de qualidade de vida igualitário, à altura do enorme potencial de sua população. De fato, é na primeira infância que têm início as desigualdades sociais tão acentuadas que desfiguram a nacionalidade. É no período de formação do cérebro que a criança enfrenta a situação de maior vulnerabilidade, expondo-se ao risco de carências diversas e agravos danosos que podem causar prejuízos irrecuperáveis ao órgão, de cuja plenitude funcional depende o desempenho das originalidades intelectuais, o equilíbrio comportamental, o processo de cognição, a formação da personalidade, entre tantos outros fenômenos que configuram as principais marcas evolutivas da espécie humana.

As pesquisas científicas identificam a travessia saudável da primeira infância como pré-requisito insubstituível para uma vida adulta compatível com as perspectivas existenciais do novo milênio. É cada vez mais evidente o fato de que grande parte das patologias envolvendo o adulto tem início na infância. Assim, os cuidados de qualidade a serem dispensados à criança ganham ênfase ainda maior, eis que se aplicam, na verdade, à construção sólida do alicerce biopsicossocial sobre o qual se apóia a edificação completa do ser humano. Construir sem alicerce é possível, mas temerário. A fragilidade é incontornável. Tudo pode ruir. Prova disso são os índices crescentes de violência que atinge a população jovem, além do seu baixo desempenho no aprendizado, conforme revelam testes de avaliação procedidos anualmente pela OCDE (Organisation de coopération et de développement économiques) em vários países.

Dedicar atenção qualificada à primeira infância é meta inadiável. Não há nenhuma alternativa capaz de reverter a tendência desagregadora da cidadania, realidade que desmerece os avanços econômicos alcançados pelo Brasil. Se o país não o fizer, botará tudo a perder. O abandono da puericultura é erro estratégico que cumpre corrigir.


FUNDAMENTAÇÃO CIENTÍFICA

Em 1722, na cidade suíça de Lausanne, o professor de medicina Théodore Zwinger observou que os sinais e sintomas de doenças infecciosas que afetavam crianças eram diferentes quando ocorriam no organismo adulto. Reuniu os achados em livro que publicou com o título que cunhou em latim PaedoIatreia, cujo significado é “doenças da criança”. Foi a primeira vez que se atentou para as particularidades reacionais inerentes ao organismo infantil. Surgiu, a partir daí, a Pediatria, ramo do conhecimento médico que não cessou mais de avançar.

Na rota dos marcos que delimitaram a importância dos cuidados com a infância, o médico de Genebra Jacques Ballexserd publicou, em 1762, o primeiro Tratado de Puericultura, ressaltando o caráter essencial com que devem ser providas as condições indispensáveis ao crescimento e desenvolvimento normais da criança. A percepção aguçada desses dois professores de medicina abriu caminho para o progresso continuado da pesquisa voltada para a criança, produzindo-se conhecimentos seguros que contribuíram para derrubar os preconceitos e a ignorância com que se tratava o ser humano nos primeiros anos de vida.

Graças à sucessão de descobertas no domínio científico abrangente da pediatria, acumuladas ao longo do tempo, várias repercussões favoráveis verificaram-se em múltiplas instâncias, incumbidas de aprimorar os instrumentos que regem a dinâmica da sociedade no âmbito das conotações morais e éticas, fundadas para assegurar coerência à convivialidade cidadã. Daí, o estabelecimento dos direitos da criança formulados pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 20 de novembro de 1959. O texto aprovado sintetiza: “A criança, por motivo da sua falta de maturidade física e intelectual, tem necessidade de proteção e cuidados especiais, nomeadamente de proteção jurídica adequada, tanto antes como depois do nascimento”. O Estatuto da criança e do Adolescente (ECA) –, criado há 21 anos, incorpora tais avanços, reproduzindo, entre nós, um território de respeitabilidade que carecia de delimitação legal, ao declarar a criança sujeito de direitos. A Constituição Federal, em seu artigo 227, proclama: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Assim, a fundamentação científica deu suporte aos dispositivos jurídicos, que incorporaram em seu conteúdo os direitos essenciais do ser humano no período de crescimento e desenvolvimento. Conta-se, agora, com essa referência oficial de que se carecia para garantir à criança todos os componentes estruturantes que não lhe podem mais ser negados, sob pena de se condenar a sociedade à total degradação.

A neurociência, em tempos mais recentes, aprofunda ainda mais a responsabilidade que cabe a todos os cidadãos no sentido de propiciar à infância o acesso pleno à saúde, proteção, estimulação, afeto, segurança e liberdade, a fim de que as originalidades e o espírito inovador que lhe são inatos tenham possibilidade de expansão ao longo das atividades educativas. De fato, a velocidade de crescimento do cérebro modifica-se nas distintas etapas que se sucedem, até que atinja dimensão e diferenciação da maturidade. A maior velocidade dá-se entre o sexto e o nono meses de gestação, quando há aumento médio diário de três gramas. Na vida extrauterina, o cérebro cresce mais nos seis primeiros meses de vida, numa média de dois gramas diários. A partir do sétimo mês de idade, essa velocidade diminui seis vezes, embora o cérebro continue crescendo, com velocidade decrescente, até o final do sexto ano.

Além do aumento de volume cerebral, ocorre intensa diferenciação estrutural e funcional, posto que o mecanismo de conexão entre os neurônios – as sinapses – assume ritmo vertiginoso nos primeiros anos de vida, mormente no primeiro ano (Figura 1). Com efeito, o cérebro do recém-nascido possui aproximadamente 100 bilhões de neurônios, quase todos desconectados. A formação de sinapses é requisito sine qua non para que o cérebro se estruture e possa realizar as nobres funções que lhe competem. O ritmo das conexões é de grandeza inimaginável. Chega a 15 mil sinapses por neurônio nos primeiros meses de vida, atingindo um total de mil trilhões de conexões quando a criança completa três anos de vida. Para que o importante pressuposto das funções cerebrais se cumpra de acordo com as cifras referidas, o fator preponderante é a estimulação sensorial. Por isso, a necessidade de ensejar à criança, sobretudo na primeira infância, um ambiente de calor humano, afeto, ternura, contato físico, interação sensitiva e emocional, ademais da nutrição adequada às exigências de um metabolismo em constante modificação.


Figura 1. Como se desenvolve o cérebro.



Além das referências científicas produzidas pela neurociência, há outras de natureza psicológica que reforçam os conceitos em transformação. Estudos de Bowlby, importante psiquiatra e psicanalista inglês, demonstram que a privação materna na infância tem repercussões negativas na vida do adolescente, predispondo-o a comportamentos potencialmente agressivos ou violentos, associados à incapacidade de lidar com o afeto, tanto para dar quanto para receber.

No campo da economia, o prêmio Nobel americano James Heckman logrou comprovar, com inquestionável correção científica, que as crianças às quais se assegura acesso à saúde e educação na primeira infância são as que terão melhor performance nos estudos, no trabalho futuro e maior chance de alcançar nível de estudo universitário, ademais de apresentarem índice muito menor de atos criminosos e delinquenciais na idade adulta.

Em síntese, o padrão qualitativo da sociedade depende diretamente dos cuidados prestados à primeira infância.


DISCUSSÃO

Quanto mais forte é a evidência científica a mostrar o papel relevante da primeira infância na projeção da cidadania, maior a clareza concernente à missão exercida pela pediatria no contexto de uma sociedade em transição para a era pós-industrial. É a especialidade médica que reúne as complexas singularidades do perfil profissional identificado com as peculiaridades do organismo humano, no ciclo de vida definido pelos fenômenos do crescimento e do desenvolvimento.

As constatações arroladas trazem à tona a amplitude do trabalho pediátrico, o cerne da puericultura a ser recuperado, bem como a necessidade de se ampliar a duração da residência médica em pediatria para três anos, compromisso inegociável com a qualidade da formação do especialista em terreno tão valioso para a sociedade.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), com estreita participação de suas filiadas, encontra-se na vanguarda da luta em defesa da primeira infância. Já conseguiu aprovar, em parceria com a então senadora Patrícia Saboya, a lei que aumenta a licença-maternidade para seis meses. Por meio da mesma parceria aprovou, no Senado, o projeto de lei que cria o Programa Nacional de Educação Infantil (PRONEI), destinado a garantir educação infantil de qualidade, e em tempo integral, a todas as crianças do país. O projeto tramita agora na Câmara dos Deputados, de onde, se aprovado, seguirá para a sanção da presidente da República. Com igual justificativa, elaborou projeto de lei que torna obrigatório o atendimento de crianças e adolescentes pelo pediatra, em programa de puericultura a ser implantado tanto nos planos de saúde como no SUS. A proposta foi também aprovada pelo Senado e aguarda apreciação pela Câmara dos Deputados.

Paralelamente ao esforço junto ao Congresso Nacional, a SBP tem defendido veementemente o respeito ao pediatra, mormente na atual gestão, incentivando e apoiando mobilizações em todo o território nacional com vistas ao reconhecimento que tão importante profissão está a merecer. Os resultados têm sido favoráveis. A conscientização dos pediatras, no tocante à dignidade de seu trabalho profissional, é conquista irreversível.

A puericultura é indiscutivelmente o domínio de atuação pediátrica que mais crescerá nos novos tempos. A redução da taxa de fertilidade, característica marcante da modernidade, reduz acentuadamente o número de crianças por família, abrindo a perspectiva de melhores cuidados a crianças menos doentes e mais saudáveis. Emergem, assim, com muita densidade, os componentes preventivos e educativos da atividade pediátrica, vale dizer a puericultura. A própria sociedade já se deu conta de tal mudança. Pesquisa encomendada pela SBP ao Instituto Datafolha, em 2008, indica que as mães preferem levar os filhos ao pediatra quando estejam sadios (Figura 2). Querem, ademais, que as crianças sejam atendidas por pediatra, não por outro profissional (Figura 3).


Figura 2. Importância da puericultura.


Figura 3. importância do atendimento pediátrico



CONCLUSÕES

A pediatria é especialidade médica em processo de progressiva projeção no contexto da sociedade. Encontra-se em coerente sintonia com as transformações do modelo de sociedade, incorporando os indícios patentes dos novos rumos, máxime quando ajustados ao cabedal de conhecimentos científicos que devem nortear a natureza e a qualidade dos cuidados a serem prestados a crianças e adolescentes.

Os fundamentos científicos a validar o novo contexto da primazia pediátrica, diante da reconhecida prioridade da primeira infância, são abundantes e inequívocos. A ciência jurídica já os absorveu, a ponto de assimilá-los e promovê-los à categoria de direito, em grau de prioridade absoluta, nos diplomas legais competentes.

O horizonte descortina-se em favor da criança e do adolescente no novo milênio. Cabe aos cidadãos o dever de consolidar a luminosa conquista que se configura.










Pesquisador associado da UnB, secretário de Estado da Criança do DF, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Correspondência:
Dioclecio Campos Jr
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