Relato de Caso
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Ano 2018 -
Volume 8 -
Número
2
Paracoccioidomicose com evolução fatal em adolescente do Pantanal Sul-mato-grossense: Relato de caso
Paracoccidioidomycosis with fatal outcome in a patient from the Brazilian Pantanal: a case report
Paola Mari Nakashima Cano1; Jaqueline Letícia Pannebecker2; Priscilla de Almeida Souza Santos da Costa3; Tatiana dos Santos Russi4; Rômulo Kuroda Pedroso5; Silvia Kamiya Yonamine Reinheimer5
RESUMO
OBJETIVO: Relatar um caso grave de paracoccidioidomicose em adolescente de 12 anos tardiamente diagnosticado com evolução fatal e biópsia ganglionar positiva para o fungo, e realizar revisão da literatura sobre a doença.
COMENTÁRIOS: A partir do relato de caso e do levantamento biográfico destaca-se a importância de diagnósticos diferenciais, mesmo que raros, em determinadas faixas etárias, a necessidade de investigação clínica dos sintomas e ineficácia do tratamento, quando iniciado tardiamente.
Palavras-chave:
paracoccidioidomicose, ascite, hipercalcemia, infectologia.
ABSTRACT
OBJECTIVE: To report a severe, late diagnosed case of paracoccidioidomycosis in a 12 year-old boy with fatal evolution and positive lymph node biopsy for the fungus, and to conduct a literature review on the disease.
COMMENTS: we have highlighted the importance of differential diagnoses, even if this disease is rare in certain age groups, as well as the need of clinical investigation at the onset of symptoms and the inefficiency of late treatment.
Keywords:
Paracoccidioidomycosis, Ascites, Hypercalcemia, Infectious Disease Medicine.
INTRODUÇÃO
A paracoccidioidomicose é uma micose sistêmica descrita em 1908, autóctone da América Latina, com maior incidência na América do Sul. No Brasil, a maioria dos casos tem sido relatada nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. De caráter endêmico da zona rural, acometendo principalmente os indivíduos do sexo masculino, faixa etária entre 30-60 anos.
É infrequente abaixo dos 14 anos de idade, faixa na qual não existe predomínio de sexo. Por ser rara na faixa etária pediátrica e apresentar quadro clínico pouco específico, comum a outras afecções, apresenta diagnóstico tardio. O agente etiológico é o fungo termodimórfico Paracoccidioides brasiliensis1,2.
A doença na forma aguda/subaguda (juvenil ou da adolescência) é a forma clínica até 30-35 anos de idade. Equivale a 3-5% dos casos, ocorrendo linfonodomegalias superficiais e profundas, com supuração de massa ganglionar, hepatoesplenomegalia e sintomas digestivos, cutâneos e osteoarticulares, além de anemia, febre e emagrecimento. É raro comprometimento pulmonar1-4.
A doença na forma crônica unifocal/multifocal do adulto é mais frequente (90% dos casos), com predomínio nos homens. Evolução crônica, predominam sintomas de fraqueza, emagrecimento, febre, tosse e dispneia1-4.
O diagnóstico padrão ouro é o achado do fungo em amostras de líquidos ou biópsia tecidual. As provas sorológicas têm importância no auxílio diagnóstico, como também avaliam a resposta ao tratamento e as recaídas da doença. Os exames de imagem, como a radiografia e tomografia de tórax mostram achados sugestivos da presença do fungo e auxiliam o diagnóstico1-4.
O tratamento inclui medidas de suporte às complicações clínicas e terapêutica antifúngica específica. Os pacientes deverão ser acompanhados até apresentarem critérios de cura. O P. brasiliensis é sensível à maioria das drogas antifúngicas, inclusive aos sulfamídicos. Consequentemente, vários antifúngicos podem ser utilizados para o tratamento desses pacientes, tais como anfotericina B, sulfamídicos (sulfadiazina, associação sulfametoxazol/trimetoprim), azólicos (cetoconazol, fluconazol, itraconazol)4.
RELATO DE CASO
F.S.C., sexo masculino, 12 anos e 11 meses, pardo, procedente de Ladário, Mato Grosso do Sul. Admitido no CTI Pediátrico com história de dispneia, inicialmente aos grandes esforços, com piora progressiva, palidez e prostração com dois meses de evolução. Nega outros sintomas prévios à admissão hospitalar. Na semana prévia à admissão iniciou quadro de icterícia e ascite. Referia perda de 14kg no período e lesões de pele disseminadas (descritas como crostosas) no início do quadro.
Previamente hígido, morador de zona rural, região do Pantanal, auxiliava o pai com os serviços de agricultura. No exame físico inicial encontrava-se emagrecido, pálido, com linfonodomegalia generalizada, ausculta reduzida em hemitórax esquerdo, abdômen globoso, distendido, piparote positivo.
Radiografia de tórax evidenciava derrame pleural à esquerda, realizada toracocentese que não preenchia critérios de Light para exsudato. Em paracentese foram retirados 360ml de líquido ascítico, GASA < 1.1. Ecocardiograma evidenciando derrame pericárdico discreto.
Exames laboratoriais de entrada mostram anemia, leucocitose com desvio a esquerda, aumento de provas inflamatórias e colestase Tabelas 1 e 2.
A tomografia computadorizada evidenciava: hidropneumotórax à esquerda, derrame pleural à esquerda determinando atelectasia por hipoexpansão volumétrica, proeminência do hilo pulmonar direito com áreas ovalares hipodensas, linfonodos de dimensões aumentadas nas cadeias axilares e cervicotorácica, presença de algumas imagens arredondadas osteolíticas nos úmeros, esterno e asas Ilíacas, ascite volumosa, esplenomegalia acentuada com áreas focais ovalares hipodensas esparsas pelo parênquima, linfonodos de dimensões aumentadas nas cadeias paraórtica esquerda, inter-aortocaval e na raiz do mesentério e fígado de dimensões levemente aumentadas e densidade homogênea.
O paciente apresentava ainda desde a admissão hipercalcemia, LDH aumentado e creatinina crescente. Inicialmente, levantada a hipótese de neoplasia e enviados líquidos corporais para análise histopatológica. Realizada tomografia de tórax, abdômen e pelve. Iniciado esquema antimicrobiano com cefepime, posteriormente acrescentados teicoplanina, micafungina, meropenem e sulfametoxazol e trimetropim.
Evoluiu 48 horas após a admissão com rebaixamento do nível de consciência, sendo necessária intubação orotraqueal. Durante o procedimento de intubação e durante passagem de sonda nasoenteral, houve saída de grande quantidade de sangue vivo de esôfago e traqueia. Percebeu-se ainda a presença de candidíase esofágica. Realizada biópsia de linfonodos e mielograma 72 horas após a admissão. Neste mesmo dia o paciente foi a óbito.
Obteve-se o resultado da biópsia 5 dias após o óbito. Confirma-se então a hipótese de paracoccidioidomicose. À microscopia: os cortes histológicos demonstravam linfonodos cuja arquitetura apresenta-se alterada por proliferação de células histiocitárias e algumas células gigantes multinucleadas e infiltrado polimorfonuclear com estruturas leveduriformes refringentes intracitoplasmáticas. À coloração especial notam-se brotamentos e diferenças de tamanho entre as formas.
A biópsia de medula óssea reforçou o diagnóstico, evidenciando infestação fúngica por estruturas leveduriformes compatíveis com P. brasiliensis.
DISCUSSÃO
A paracoccidioidomicose ou doença de Lutz-Almeida-Splendore é uma micose sistêmica, de disseminação hematogênica e linfática, causada pelo fungo saprófita de plantas e do solo Paracoccidioides brasiliensis, predominante nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste e de caráter endêmico da zona rural. Tem caráter granulomatoso e progressão insidiosa1,2,5. A dificuldade de acesso dessa população aos serviços de saúde, bem como falta de informação, podem retardar o diagnóstico.
A disseminação ocorre por inalação de partículas, sendo o trato respiratório a porta de entrada do fungo no organismo. A partir daí, o fungo pode se disseminar através do sangue ou da linfa. Todos os órgãos do corpo podem ser acometidos, sendo os pulmões, linfonodos, suprarrenal, ossos, tubo digestivo e sistema nervoso os locais mais frequentes5.
A doença é classificada em 5 formas, segundo o Colóquio Internacional de Paracoccidioidomicose (1986) e o Consenso Brasileiro em Paracoccidioidomicose: infecção, doença (forma aguda/subaguda e crônica) e residual1,2. A forma aguda da paracoccidioidomicose, tipo juvenil, ocorre tipicamente em pacientes jovens de ambos os sexos e é caracterizada pelo tropismo do fungo pelo sistema monofagocítico3.
Clinicamente, apresenta-se por linfonodomegalia em cadeias superficial e profunda, associada a envolvimento do fígado, baço e ossos. O quadro clínico inicial é semelhante ao linfoma de Hodgkin, com linfonodos endurecidos e coalescentes, associados à febre vespertina. Sem tratamento, os linfonodos assumem aspecto inflamatório, abscedam e formam fístula.
As lesões de pele são frequentes e as de mucosas, raras. A disseminação linfática e hematogênica do fungo aumenta a taxa de mortalidade pela doença3. O paciente do caso possuía linfonodomegalia generalizada, envolvimento de fígado, baço e ossos. Inicialmente, suspeitou-se de linfoma de Hodgkin, atrasando o diagnóstico e a terapêutica adequada.
O exame a fresco para pesquisa direta do fungo é altamente eficaz e de baixo custo, sendo considerado padrão ouro. Podem ser utilizados escarro, raspados de lesões cutâneas e de mucosas, aspirado ganglionar e material obtido por fibrobroncoscopia1,4.
A radiografia de tórax pode apresentar infiltrado reticulonodular, predominante nos dois terços superiores de ambos os pulmões, assimétrico, com hipertransparência junto às bases pulmonares. Na tomografia computadorizada podem ser visualizados nódulos, opacidades em vidro fosco, aspecto em árvore em brotamento, lesões acinares, bandas parenquimatosas, espessamento do interstício peribroncovascular, cavidades, reticulosidades, sinal do “halo invertido”, enfisema paracicatricial e bronquiectasias de tração1,4.
O acometimento do SNC é caracterizado por duas formas, a meníngea (inflamação crônica na leptomeninge, de distribuição focal na base do crânio) e a granulomatosa ou pseudotumor (lesões nodulares, múltiplas, aleatórias com impregnação periférica e anelar por meio de contraste)5.
As adrenais podem ser acometidas, sendo uma das causas mais comuns de insuficiência adrenal primária (doença de Addison). Geralmente, é assintomática e causa um aumento global da glândula devido necrose caseosa5. Todos os segmentos do trato digestivo podem apresentar lesões, da boca ao ânus, contudo, é mais comum em órgãos que contêm mais tecido linfoide como apêndice, íleo terminal e cólon direito. Foram encontrados estenoses, trânsito lento, ulcerações, fístulas, perfurações5.
O paciente do caso apresentou drenagem nasogástrica sanguinolenta em grande quantidade. A doença óssea ocorre em 20% dos casos disseminados, podendo acometer mais frequentemente a clavícula, costelas, acrômio e rádio, geralmente assintomática, de caráter osteolítico e assimétrico5. No caso descrito o paciente apresentou imagens arredondadas osteolíticas nos úmeros, esterno e asas Ilíacas, levantando a hipótese de mieloma múltiplo.
O P. brasiliensis é um fungo sensível à maioria dos antifúngicos. Na literatura o itraconazol aparece como a opção terapêutica mais eficaz em um menor período de tempo. Porém, considerando que o itraconazol não está disponível na maior parte do Brasil, a combinação sulfametoxazol-trimetoprim é a alternativa mais utilizada na terapêutica ambulatorial dos pacientes com PCM. Nas formas graves, necessitando internação hospitalar, devem receber anfotericina B ou associação sulfametoxazol/trimetoprim por via intravenosa.
A duração do tratamento relaciona-se à gravidade da doença e à medicação utilizada. O tratamento é de longa duração, para permitir o controle das manifestações clínicas da micose e evitar as recaídas4. No caso relatado, optou-se, de acordo com a orientação da CCIH, por associar sulfametoxazol/trimetoprim ao esquema.
REFERÊNCIAS
1. Wanke B, Aidê MA. Curso de atualização - Micoses. Capítulo 6 - Paracoccidioidomicose. J Bras Pneumol. 2009;35(12):1245-9.
2. Martinez R. Epidemiology of paracoccidioidomycosis. Rev Inst Med Trop Sao Paulo. 2015;57 Suppl 19:11-20.
3. Marques SA, Lastória JC, Camargo RM, Marques ME. Paracoccidioidomycosis: acute-subacute clinical form, juvenile type. An Bras Dermatol. 2016;91(3):384-6.
4. Shikanai-Yasuda MA, Telles Filho FQ, Mendes RP, Colombo AP, Moretti ML; Grupo de Consultores do Consenso em Paracoccidioidomicose. Consenso em paracoccidioidomicose. Rev Soc Bras Med Trop. 2006;39(3):297-310.
5. Costa MAB, Carvalho TN, Araújo Júnior CR, Borba AOC, Veloso GA, Teixeira KS. Manifestações extrapulmonares da paracoccidioidomicose. Radiol Bras. 2005;38(1):45-52.
1. Médica Residente em Terapia Intensiva Pediátrica
2. Médica residente em Pediatria
3. Médica Intensivista Pediátrica e Neonatologista
4. Médica pediatra e neonatologista
5. Médico intensivista pediátrico
Endereço para correspondência:
Paola Mari Nakashima Cano
Hospital Regional de Mato Grosso do Sul. COREME - HRMS
Av.: Engenheiro Luthero Lopes, nº 36, Bairro Aero Rancho V
Campo Grande - MS, Brasil. CEP: 00000-000
E-mail: paolanakashima@hotmail.com
Data de Submissão: 21/12/2016
Data de Aprovação: 03/10/2017