Artigo Original
-
Ano 2018 -
Volume 8 -
Supl.1
Hipotonia na infância
Hypotony in children
Regina Célia Beltrão Duarte
RESUMO
A hipotonia na infância representa um sintoma de várias doenças sistêmicas e do sistema nervoso (cérebro, corno anterior da medula, nervos periféricos, junção mioneural e músculo). A síndrome do bebê hipotônico refere-se a uma criança com hipotonia generalizada presente ao nascimento ou na fase de lactente. Devido a inúmeras causas e condições clínicas, uma avaliação sistemática é essencial para a abordagem da criança hipotônica. O tratamento da criança que tem hipotonia deve ser adaptado à condição específica. Em geral, a terapia é de suporte, com acompanhamento de vários profissionais.
Palavras-chave:
Hipotonia Muscular, Criança, Tono Muscular.
ABSTRACT
Hypotonia in infants is a symptom of many systemic diseases or diseases of the nervous system (brain, anterior horn cell, peripheral nerve, neuromuscular junction, and muscle). Floppy infant syndrome refers to an infant with generalized hypotonia present at birth or in early life. Because of the multiple causes and clinical conditions in hypotonia, a systematic assessment is essential in the approach to the floppy infant. Treatment of an infant with hypotonia must be tailored to the specific condition causing it. In general, treatment is supportive, with the participation of several professionals.
Keywords:
Muscle Hypotonia, Child, Muscle Tonus.
INTRODUÇÃO
O termo hipotonia refere-se a uma diminuição do tônus muscular, sendo considerado, na grande maioria dos casos, um sintoma de disfunção neurológica1.
O tônus muscular é um estado de tensão constante a que estão submetidos os músculos em repouso. É a resistência do músculo ao estiramento. Há dois tipos de tônus muscular, o FÁSICO, que se caracteriza por uma contração rápida e envolve as estruturas apendiculares (Tônus de Ação), e o Tônus POSTURAL, decorrente de uma contração prolongada. A gravidade mantém os músculos antigravitacionais em constante estiramento e os músculos envolvidos são do pescoço, tronco e dorso (musculatura axial)2.
Quando ocorre a diminuição do tônus postural, há uma dificuldade da criança de sustentar corpo e membros contra a gravidade, gerando a hipotonia2.
A manutenção do tônus muscular depende da integridade do Sistema Nervoso Central (SNC) e Sistema Nervoso Periférico (SNP). Neste caso, a hipotonia é um sintoma comum decorrente de distúrbios neurológicos envolvendo cérebro, tronco cerebral, medula, nervos periféricos e músculo3.
Em decorrência do envolvimento de várias estruturas, a hipotonia é dividida em dois grupos4:
1) Hipotonia Primária: está relacionada ao comprometimento das estruturas que compõem a unidade motora (motoneurônio medular, raízes, nervos periféricos e músculos);
2) Hipotonia Secundária: decorrente de lesões do SNC, síndromes genéticas, doenças sistêmicas ou situações que afetem tendões e ligamentos.
Segundo Dubowitz, na sua descrição sobre a síndrome da criança hipotônica, há dois grandes grupos de hipotonia com manifestações clínicas diferentes que auxiliam no diagnóstico diferencial da hipotonia primária (Grupo Paralítico) ao da hipotonia secundária (Grupo Não Paralítico)5.
As manifestações clínicas estão listadas no Quadro 1.
Etiologia da Hipotonia: central ou periférica6-8
A criança hipotônica ou Floppy Infant apresenta um quadro clínico variável e com múltiplas etiologias que são agrupadas em causas centrais, que representam de 60 a 88% dos casos de hipotonia e as causas periféricas, que são menos frequentes, representando de 15 a 30% das causas de hipotonia e representam em conjunto as doenças neuromusculares.
As principais causas de origem central são: encefalopatia hipóxico-isquêmica, insultos cerebrais, malformações cerebrais, hemorragias intracranianas, síndromes congênitas, doenças metabólicas como os erros inatos do metabolismo (exemplos: síndrome de Zellweger, síndrome de Lowe) e doenças cromossômicas (exemplo: síndrome de Down).
As principais causas de origem periférica incluem as doenças da unidade motora, entre elas a atrofia muscular espinhal infantil (doença do motoneurônio medular); doença de Charcot Marie e Dejerine-Sotta (nervos); miastenia e botulismo (junção neuromuscular) e miopatias (músculo), entre elas, as miopatias congênitas, distrofias musculares congênitas e doenças do metabolismo (doença de Pompe).
Algumas doenças podem apresentar clinicamente sintomas e sinais de hipotonia do tipo central e periférica, entre elas, a deficiência de maltase ácida (doença de Pompe), neuropatia axonal gigante e doenças mitocondriais.
MÉTODO
A pesquisa foi realizada no período de 2000 a 2017, nas línguas inglês, português e espanhol com as seguintes palavras chaves: criança hipotônica, floppy infant, recién-nascido, lactante hipotônico, nas bases de dados.
Abordagem clínica da criança hipotônica5,8-10
Avaliação do tônus muscular: RN e lactente
O RN prematuro apresenta uma hipotonia fisiológica que se estende da 26° até a 36° semana de idade gestacional. Uma vez excluída a prematuridade, um recém-nascido hipotônico representa um quadro clínico alarmante, significando um bebê gravemente enfermo, inclusive com comprometimento na respiração e sucção. Este quadro contrasta com um RN saudável, que apresenta uma hipertonia fisiológica devido à semiflexão da musculatura dos membros.
No lactente a hipotonia que é fisiológica não é o sintoma mais observado no caso de uma criança com hipotonia patológica. Sendo assim, os sintomas observados são em decorrência do atraso ou ausência das aquisições motoras durante o desenvolvimento da criança. Este quadro poderá estar associado a alterações na linguagem e no comportamento.
O exame do tônus muscular é uma das etapas do exame neurológico e não caberá neste artigo o seu detalhamento, porém algumas manobras para verificação do tônus são realizadas nas crianças, entre elas:
1) Manobra de tração: consiste em segurar as mãos da criança, puxando-a para uma posição sentada. A resposta é elevação da cabeça junto com o corpo Ao chegar à posição sentada e a cabeça é mantida ereta na linha média. (Figura 1 A). Na criança hipotônica há falta de sustento completo da cabeça (Figura 1 A).
Figuras 1A a 1D. Hipotonia.
2) Manobra de suspensão horizontal: a criança, ao ser suspensa horizontalmente, fica com a cabeça ereta, dorso reto e a flexão dos cotovelos, joelhos, tornozelos e dos quadris. Nas crianças hipotônicas ocorre uma flacidez nas mãos do examinador, ficando cabeça e membros pendendo livremente (Figura 1 B).
3) Manobra de suspensão vertical: consiste em segurar a criança pelas axilas sem agarrar o tórax, puxando-a para cima. A resposta normal é que a criança fica suspensa com uma semiflexão dos membros, sem escorregar pelas mãos do examinador. Na criança hipotônica a cabeça cai para frente, os membros inferiores estão hipotônicos e a criança pode escorregar pelas mãos do examinador devido à fraqueza dos músculos dos ombros (Figura 1 C).
4) Manobra do Cachecol: na criança hipotônica ocorre falta de resistência à movimentação passiva dos membros superiores e os cotovelos cruzam-se além da linha média sem formar ângulos articulares e nos membros inferiores observa-se atitude em batráquio, com hiperabdução das coxas (Figura 1 D).
Anamnese9-12
Alguns aspectos da anamnese são relevantes na criança hipotônica:
1) História familiar: consanguinidade entre os pais, história de gestações anteriores, histórico familiar de doenças neurológicas;
2) Condições de parto e gestação: uso na gravidez do álcool, fumo, drogas ilícitas, presença de doenças sistêmicas maternas e infecciosas. Diminuição da movimentação fetal, aumento ou diminuição do líquido amniótico, retardo de crescimento intrauterino, ameaça de parto prematuro, sintomas de aborto, apresentação no parto, tipo de parto, traumas obstétricos, primípara ou multípara.
Exame físico geral e neurológico
Exame físico geral com avaliação de dismorfismos faciais, estado de alerta, avaliação do sistema cardiopulmonar, sistema digestório, sistema renal, sistema osteoarticular, pele e fâneros.
Exame neurológico: avaliação da motricidade e força muscular, da sensibilidade, pesquisa dos reflexos profundos e superficiais, presença de mal formações osteoarticulares, presença de contraturas.
Avaliação de exames complementares na criança hipotônica13-16
Os exames iniciais na criança hipotônica direcionam o diagnóstico para doenças sistêmicas e os exames de rotina são hemograma, análise e culturas (sangue, urina e liquor cefalorraquiano), análise das enzimas do fígado, glicemia, ionograma, magnésio, ureia e creatinina.
Em situações que há suspeita de infecções congênitas, solicitar as sorologias para toxoplasmose, sífilis, citomegalovirus, rubéola e herpes (TORCHS). Em casos de hipotonia central com suspeita de doenças metabólicas ou genéticas, alguns exames mais específicos são solicitados de acordo com a suspeita clinica como o Cariótipo em Banda G (no caso de dismorfismos faciais como exemplo a síndrome de Down), técnica de microaarray (microarranjos), estudo de hibridização in situ por fluorescência (FISH) e estudo da metilação (Prader Willi e Angelman).
Nos casos clínicos, quando há suspeita de erros inatos do metabolismo, alguns exames compõem a investigação, como exemplo no caso de acidose estar presente solicita-se cromatografia de aminoácidos (plasma) e dosagem de ácidos orgânicos na urina (no caso de acidemias orgânicas e aminoacidopatias), dosagem de piruvato e amônia (defeitos do ciclo da ureia), lactato (distúrbios do metabolismo dos carboidratos e doenças mitocondriais) e perfil de acilcarnitinas (acidemias orgânicas e defeitos da oxidação de ácidos graxos).
A dosagem de ácidos graxos de cadeia muito longa devem ser solicitada no caso de doenças peroxissomais, como no caso de adrenoleucodistrofia.
Nos casos de hipotonia periférica a dosagem de creatinoquinase (CPK) deve ser solicitada, assim como outros exames, dependendo da suspeita diagnóstica. Testes específicos como análise do DNA são úteis para AEI (amiotrofia espinal infantil) e distrofias miotônicas. Outros exames mais invasivos também são solicitados, como a eletroneuromiografia e a biopsia muscular com estudo imunohistoquímico e microscopia eletrônica, métodos de escolha para o diagnóstico diferencial de miopatias e distrofias musculares.
Os exames de imagem como a ressonância magnética (RM) são uma valiosa ferramenta para a detecção de anormalidades do sistema nervoso central. A RM de crânio permite definir malformações estruturais, defeitos de migração neuronal e anormalidade de sinal nos gânglios da base ou defeitos do tronco cerebral e cerebelo (síndrome de Joubert). As alterações de substância branca (leucodistrofias) podem ser vistas em doenças peroxissomiais e as heterotopias em distrofias musculares congênitas e outras doenças do SNC. A espectroscopia com RM auxilia no diagnóstico das doenças metabólicas.
As doenças neuromusculares representam uma pequena parte do universo das causas de hipotonia, porém, na presença de hipotonia associada à fraqueza muscular, as principais condições clínicas são estas doenças e são classificadas de acordo com a topografia. Algumas destas afecções cursam com hipotonia na fase de recém-nascido ou lactente. A seguir estão listadas as principais doenças neuromusculares:
1) Doenças do neurônio motor: Amiotrofia Espinhal Infantil e Paralisia Infantil.
2) Neuropatias: Dejerine-Sottas e síndrome de Guillain-Barré.
3) Doenças da junção mioneural: miastenia neonatal transitória, síndrome miastênica congênita, miastenia grave e botulismo.
4) Miopatias: distrofias musculares, distrofias musculares congênitas, miopatias congênitas, miopatias metabólicas e miopatias inflamatórias como a polimiosite, miosites infecciosas.
Inúmeras das doenças citadas acima têm o diagnóstico definitivo por meio da análise molecular como no caso da Amiotrofia Espinhal Infantil, que é a segunda doença neuromuscular mais frequente e o diagnóstico é feito pela análise molecular do SMN (survival motor neuron), cujo o resultado desta análise é a deleção deste gene. O quadro clínico cursa com hipotonia severa, principalmente na forma mais grave, que é a tipo 1 (doença de Werdnig-Hoffmann).
Outra doença neuromuscular que cursa com hipotonia principalmente na forma infantil é glicogenose tipo II, deficiência de maltase ácida ou doença de Pompe, que se caracteriza pela deficiência enzimática da alfaglicosidas e ácida. Esta enzima é responsável pela quebra do glicogênio nos lisossomas. Com a deficiência ou ausência desta enzima, há um acúmulo de glicogênio na musculatura estriada, cardíaca e musculatura lisa, havendo cardiomiopatia hipertrófica, hipotonia, fraqueza muscular, insuficiência respiratória e até óbito. O tratamento da doença de Pompe é feito por meio da reposição enzimática endovenosa com Alfa-Alglicosidase14,17.
Passos para o diagnóstico Hipotonia congênita benigna9
É uma causa comum para o diagnóstico diferencial da hipotonia, e se caracteriza por ser uma desordem neuromuscular não progressiva presente ao nascimento e com atraso nos marcos do desenvolvimento neuropsicomotor. Ocorre flacidez simétrica da musculatura. Os reflexos profundos estão normais e os exames de laboratório também estão normais. É um diagnóstico de exclusão. Há um aumento na incidência nestes casos de deficiência intelectual e transtornos do aprendizado.
TRATAMENTO
O tratamento da criança hipotônica deve ser adaptado de acordo com a condição específica. De um modo geral, a terapia é de suporte e com uma equipe de reabilitação, envolvendo inúmeros profissionais. O aporte nutricional é de extrema importância e deve ser administrado através de sondas enterais ou através da gastrostomia, assim como o suporte ventilatório, uma vez que a hipotonia pode comprometer as funções respiratórias e da deglutição.
O aconselhamento genético para os pais é de extrema importância, principalmente nos casos de hipotonia do tipo periférica, em que as doenças neuromusculares representam este quadro e a grande maioria é geneticamente determinada.
CONCLUSÃO
De um modo geral, a causa mais frequente de hipotonia é do tipo central. Devido ao largo espectro de manifestações clínicas com múltiplas causas da hipotonia, a anamnese e o exame físico geral e neurológico são de extrema importância, auxiliando na grande maioria do diagnóstico diferencial. A seleção para estudos genéticos específicos, exames de neuroimagem e exames laboratoriais auxiliam e contribuem para o esclarecimento da causa de hipotonia. Exames mais específicos e invasivos como a eletroneuromiografia e a biópsia muscular também têm papel de importância no diagnóstico da hipotonia, principalmente nas causas periféricas.
REFERÊNCIAS
1. Sáa KK, Benaprés MAA, De La Fuente ATP. Enfoque clínico del recién nacido y lactante hipotónico. Rev Ped Elec. 2014;11(3):39-54.
2. Pina-Garza JE. The Hypotonic Infant. In: Pina-Garza JE. Fenichel’s Clinical Pediatric Neurology. 7th ed. London: Elsevier Saunders. 2013; p. 147-69.
3. Bodensteiner JB. The evaluation of the hypotonic infant. Semin Pediatr Neurol. 2008;15(1):10-20.
4. Wijesekara DS. Clinical approach to a floppy infant. Sri Lanka J Child Health Clin. 2013;41:211-6.
5. Reed UC. Síndrome da criança hipotônica: causas neuromusculares. Rev Med (São Paulo). 2007:86(2):82-93.
6. De Vivo M, Rojo S, Rosso R, Chello G, Giliberti P. Floppy Infant Syndrome: new approach to the study of neonatal hypotonia through the analysis of a rare case of X-Linked Myotubular Myopathy. J Pediatric Neonatal Individual Med. 2014;3(1):e030114.
7. Kaur J, Punia S. Floppy Infant Syndrome: Overview. Int J Physiother Res. 2016;4(3):1554-63.
8. Núñez FA, Aránguiz RJ, Kattan SJ, Escobar HR. Sindrome hipotônico del recién nacido. Rev Chil Pediatr. 2008;79(2):146-51.
9. Peredo DE, Hannibal MC. The floppy infant: evaluation of hypotonia. Pediatr Rev. 2009;30(9):e66-76.
10. Harris SR. Congenital hypotonia: clinical and developmental assessment. Dev Med Child Neurol. 2008;50(12):889-92.
11. Laugel V, Cossée M, Matis J, de Saint-Martin A, Echaniz-Laguna A, Mandel JL, et al. Diagnostic approach to neonatal hypotonia: retrospective study on 144 neonates. Eur J Pediatr. 2008;167(5):517-23.
12. Leyenaar J, Camfield P, Camfield C. A schematic approach to hypotonia in infancy. Paediatr Child Health. 2005;10(7):397-400.
13. Prasad AN, Prasad C. The floppy infant: contribution of genetic and metabolic disorders. Brain Dev. 2003;25(7):457-76.
14. McDonald CM. Clinical approach to the diagnostic evaluation of hereditary and acquired neuromuscular diseases. Phys Med Rehabil Clin N Am. 2012;23(3):495-563.
15. Trabacca A, Losito L, De Rinaldis M, Gennaro L. Congenital hypotonia in a child with a de novo 22q13 monosomy and 2pter duplication: a clinical and molecular genetic study. J Child Neurol. 2011;26(2):235-8.
16. Swaiman K, Ashwal S, Ferriero DM, Shor NF. Swaiman’s Pediatric Neurology. 5th. London: Elsevier Saunders; 2012. p. 1463-658.
17. van den Hout HM, Hop W, van Diggelen OP, Smeitink JA, Smit GP, Poll-The BT, et al. The natural course of infantile Pompe’s disease: 20 original cases compared with 133 cases from the literature. Pediatrics. 2003;112(2):332-40.
Mestre em Neurociências pela UFPA. Professora Adjunta de Neurologia da UFPA/Médica Neuropediatra da UFPA e do Hospital Ofir Loyola. Professora do curso de Medicina do CESUPA, Presidente do capítulo Pará da ABENEPI. Membro do departamento científico de Neurologia da SBP. Membro Titular da Academia Brasileira de Neurologia e membro da SBNI e membro da LBE, Belém, PA, Brasil
Endereço para correspondência:
Regina Célia Beltrão Duarte
UFPA. Av. Nazaré , nº 491, Apto 1501
Belém, PA, Brasil. CEP: 66035-170
E-mail: rcbduarte@yahoo.com.br
Data de Submissão: 02/04/2018
Data de Aprovação: 28/06/2018