ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2019 - Volume 9 - Número 2

Febre maculosa brasileira: Importância do diagnóstico e tratamento precoces

Brazilian spotted fever: importance of early diagnosis and treatment

RESUMO

A febre maculosa brasileira é uma doença febril aguda causada pela bactéria Rickettsia rickettsii, transmitida pela picada de carrapatos, tendo o Amblyomma cajennense como principal vetor. Apesar de ser zoonose endêmica no Brasil, especialmente na região Sudeste, a suspeição ainda é baixa e tardia, o que acaba gerando atraso no início do tratamento e pode apresentar elevada letalidade se não for prontamente identificada e tratada. Esse relato de caso descreve uma criança de 10 anos com febre, exantema, cefaleia, mialgia, náuseas, vômitos, dor abdominal e sinais meníngeos que iniciou tratamento com doxiciclina com 8 dias de evolução dos sintomas e foi a óbito 33 horas após suspeição diagnóstica.

Palavras-chave: febre maculosa das montanhas rochosas, rickettsiaceae, criança.

ABSTRACT

Brazilian spotted fever is an acute febrile disease caused by the bacterium Rickettsia rickettsii, transmitted by the bite of infected ticks, among them Amblyomma cajennense is the most important species involved. Although it is an endemic zoonosis in Brazil, especially in the southeast of the country, suspicion is still low and late, which leads to delayed beginning of treatment and may present with high mortality if not readily identified and treated. This case report describes a 10 years old boy, presenting fever, exanthema, headache, myalgia, nausea, vomiting, abdominal pain and meningeal signs, who was treated initially with doxycycline after 8 days of initial symptoms and progressed to death 33 hours after diagnostic suspicion.

Keywords: rocky mountain spotted fever, Rickettsiaceae, child.


INTRODUÇÃO

A febre maculosa brasileira (FMB) é a rickettsiose brasileira que possui maiores índices de letalidade1. A doença foi inicialmente identificada no Brasil em 1929, porém tornou-se doença de notificação compulsória somente em 2001, e desde 2007 integra o Sistema de Informações de Agravos de Notificação Compulsória2,3.

Segundo dados do Ministério da Saúde, foram confirmados 1.688 casos entre 2000 a 2016 em todo o Brasil, sendo o maior número de casos (1.239 - 73%) registrados na região Sudeste, com extensão a alguns estados das regiões Sul, Nordeste e Distrito Federal, com aumento da taxa média de letalidade de 25,7% para 35% nos períodos de 2000 - 2008 e 2009 - 2016, respectivamente4. A maior proporção de óbitos (528/1239 - 42,6%)4 também se encontra na região Sudeste. Apresenta maior número de casos entre os meses de junho e outubro, provavelmente relacionado ao ciclo reprodutivo do vetor, que ocorre em períodos menos chuvosos2.

É uma condição clínica de difícil diagnóstico, com necessidade de alto grau de suspeição, principalmente nas fases iniciais da doença, que apresenta sinais e sintomas inespecíficos (febre, cefaleia, mialgia, mal-estar e vômitos). Com o tropismo por células endoteliais de capilares e vênulas e a resposta inflamatória reacional, resultam em vasculite generalizada, levando a trombose e hemorragias. Além do comprometimento digestório inicial e do exantema maculopapular e petequial, pode evoluir com comprometimento renal (necrose tubular aguda), pulmonar (edema pulmonar, pneumonite e derrame pleural) e neurológico (déficit neurológico com encefalite e meningite).

O objetivo desse relato de caso é ressaltar a importância do diagnóstico e tratamento precoces da febre maculosa. Na ausência de tratamento adequado o paciente pode evoluir para formas graves, com mortalidade que pode chegar a até 80%3,5.


RELATO DE CASO

Trata-se de escolar masculino de 10 anos de idade, natural e residente de Belo Horizonte, MG, com história de febre elevada (>38°C) e cefaleia iniciados em 26 de agosto de 2016. Procurou serviço médico no 3º dia após o início dos sintomas, quando recebeu diagnóstico de sinusite sendo prescrito cefalexina. Na mesma noite, evoluiu com exantema maculopapular difuso presente em regiões palmares e plantares e dor intensa articular em membros inferiores com prejuízo à deambulação.

Como persistia com febre elevada, retornou ao serviço de pronto-atendimento no dia seguinte, quando foi transferido para internação hospitalar no 5° dia de doença. Exames evolutivos evidenciaram queda progressiva dos parâmetros hematimétricos com anemia e plaquetopenia leves (Hb 13,2 para 11,2g/dL e plaquetas 259.800 para 110.000/mm3, respectivamente), aumento proteína C reativa/PCR (23,1 para 96g/dL) e aumento de creatinina (1,0g/dL). Excluído diagnóstico de dengue por teste rápido e método sorológico. No 7° dia de evolução apresentou quadro de dor abdominal difusa sendo prescrito ceftriaxone e aventada a hipótese de abdômen agudo por apendicite, sendo transferido para hospital terciário.

À admissão no pronto-atendimento (PA) desse hospital terciário, encontrava-se com sinais clínicos de choque séptico e insuficiência respiratória, quando foram iniciadas medidas de tratamento suportivo com expansão volêmica com cristaloides, amina vasoativa e estabelecida via área definitiva com intubação orotraqueal. Descartada hipótese de apendicite aguda após avaliação de cirurgião pediátrico e ultrassonografia de abdômen.

Observou-se piora da anemia (Hb9,5 g/dL), plaquetopenia importante (plaquetas 43.000/mm3) elevação progressiva da PCR (257g/dL) e acidose metabólica (pH 6,93; HCO3-17,3mmol/L). Foram evidenciados, ainda, sinais meníngeos pronunciados, petéquias disseminadas e lesão crostosa em fossa poplítea esquerda (relatado pela mãe presença desde o dia 20/08, quando retornou de passeio em parque ecológico da cidade onde esteve junto ao seu grupo de escoteiros).

Diante do quadro evolutivo, foi transferido à unidade de cuidados intensivos do hospital, onde foi aventada a hipótese de febre hemorrágica, realizada coleta de sorologias e iniciada doxiciclina por cateter nasogástrico devido à indisponibilidade de cloranfenicol para administração endovenosa. No 9° dia de evolução da doença, foi iniciado cloranfenicol, aproximadamente 24 horas após suspeição clínica e admissão na unidade.

Criança persistiu com instabilidade hemodinâmica refratária às medidas suportivas e evoluiu com disfunção de múltiplos órgãos. Permaneceu anúrico desde a admissão, a despeito de altas doses de diurético; foi indicada hemodiálise, porém foi a óbito 33 horas após dar entrada no serviço no décimo dia de evolução. Punção lombar post- mortem revelou meningite asséptica (parâmetros: proteinorraquia 710,8mg/dL; glicorraquia 104,4mg/fL; hemácias 583/mm3; células nucleadas 18/mm3; segmentados 14% linfócitos 77% monócitos 9%; cultura negativa; bacterioscopia sem visualização de bactérias) e a suspeita de febre maculosa foi confirmada por reação de cadeia de polimerase pela Fundação Ezequiel Dias/FUNED após óbito.


DISCUSSÃO

A febre maculosa é rickettsiose causada pela espécie Rickettsia rickettsii, no Brasil chamada de febre maculosa brasileira (FMB) e nos Estados Unidos conhecida como febre maculosa das montanhas rochosas (RMSF). No Brasil, os dois principais vetores da doença pertencem ao gênero Amblyoma, sendo o A. cajennense, conhecido popularmente como carrapato estrela, o de maior importância epidemiológica6. Os principais hospedeiros do carrapato são roedores, como a capivara, e equinos, mas podem encontrar-se também em cães, gatos e pássaros7.

R. rickettsii é um bacilo gram negativo intracelular obrigatório que infecta principalmente as células endoteliais vasculares, e, menos comumente, células de músculo liso subjacentes de pequenos e médios vasos, causando uma vasculite sistêmica que ocorre logo no início da doença, ocasionando hemorragia, microtrombos e aumento da permeabilidade vascular8.

O diagnóstico da doença é essencialmente clínico e epidemiológico. Os casos podem se apresentar como oligossintomáticos ou se desenvolver de forma grave e fulminante. O período de incubação pode variar de 2 a 14 dias após a picada do carrapato, com média de 7 dias. As manifestações clínicas mais comuns incluem febre, cefaleia, calafrios, dor lombar, vômitos, dor abdominal, mialgia, artralgia e exantema.

O exantema surge entre o 3° e 5° dia da doença, está presente em cerca de 80 a 90% dos casos, e sua ausência parece estar associada à gravidade. É tipicamente maculopapular não pruriginoso, surgindo, inicialmente, nos punhos e nos tornozelos, com posterior generalização, sendo característico o envolvimento das palmas das mãos e plantas dos pés. Nos casos mais graves pode ocorrer até necrose de extremidades8.

As alterações em exames laboratoriais são inespecíficas, porém podem ser observados anemia e plaquetopenia, elevação de escórias renais e disfunção hepática3. O método diagnóstico padrão ouro atualmente é a reação de imunofluorescência indireta (RIFI), sendo possível detectar os anticorpos a partir do 7° ao 10° dia de doença9. A reação em cadeia de polimerase/PCR deve ser realizada preferencialmente nos primeiros 5 dias de doença e antes da instituição do tratamento. A cultura de tecidos para o isolamento do agente exige normas rigorosas de biossegurança e inviabiliza seu uso rotineiro.

O diagnóstico diferencial de febre e erupção cutânea é amplo, e durante os primeiros estágios da doença pode ser clinicamente indistinguível de muitos exantemas virais e outras doenças, particularmente em crianças. A FMB pode ser confundida com quadros simples como gastroenterite viral, infecção do trato respiratório superior, pneumonia, infecção do trato urinário no início de sua apresentação e até com outras sepses bacterianas, vasculites idiopáticas, meningoencefalites com a evolução dos sinais e sintomas.

A classificação dermatológica da erupção, a sua distribuição, tempo em relação ao início da febre, outros sinais sistêmicos e exames laboratoriais podem ajudar no diagnóstico diferencial. Dados epidemiológicos como estação do ano, história de picada de carrapato, viagens, atividades ao ar livre, exposição a animais de estimação ou outros animais também podem ser úteis na orientação do diagnóstico9.

A doxiciclina é a única droga comprovadamente eficaz para tratamento de todas as rickettsioses, em todas as faixas etárias. Nos casos mais graves com necessidade de internação como o apresentado neste relato, o cloranfenicol é o medicamento de escolha no Brasil pela indisponibilidade de doxiciclina endovenosa. O tratamento deve ser iniciado imediatamente em pessoas com sinais e sintomas sugestivos de rickettsiose.

O atraso no início do tratamento pode levar a doença grave e está diretamente relacionado à necessidade de hospitalização, internação em UTI e óbito6,9.


CONCLUSÃO

Nesse relato de caso, apesar da epidemiologia positiva e manifestações características, tais como exantema maculopapular em região palmoplantar, houve um atraso no diagnóstico, com visitas a vários serviços de saúde, e o paciente evoluiu para envolvimento sistêmico. A FMB é uma doença febril aguda com elevado potencial de evolução para formas graves, que possui manifestações clínicas e laboratoriais inespecíficas. A redução da evolução para formas graves está diretamente relacionada à suspeição clínica e instituição precoce de antibioticoterapia adequada. Desse modo, é de vital importância o conhecimento da evolução da doença e da epidemiologia para detecção precoce e manejo adequado, de modo a reduzir os índices de mortalidade tão elevados dessa febre hemorrágica brasileira.


REFERÊNCIAS

1. Greca H, Langoni H, Souza LC. Brazilian spotted fever: a reemergent zoonosis. J Venom Anim Toxins Incl Trop Dis. 2008;14(1):3-18.

2. Souza W. Doenças negligenciadas. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências; 2010.

3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Guia de Vigilância Epidemiológica. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.

4. Portal da Saúde. Situação epidemiológica – dados – febre maculosa [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; [citado 2017 Maio 15]. Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/saude-de-a-z/febre-maculosa/situacao-epidemiologica

5. Couto DV, Medeiros MZ, Filho GH, Lima AM, Barbosa AB, Vicari CFS. Brazilian spotted fever: the importance of dermatological signs for early diagnosis. An Bras Dermatol. 2015;90(2):248-50.

6. Szabó MP, Pinter A, Labruna MB. Ecology, biology and distribution of spotted-fever tick vectors in Brazil. Front Cell Infect Microbiol. 2013;3:27.

7. Milagres BS, Padilha AF, Barcelos RM, Gomes GG, Montandon CE, Pena DC, et al. Rickettsia in synanthropic and domestic animals and their hosts from two areas of low endemicity for Brazilian spotted fever in the eastern region of Minas Gerais, Brazil. Am J Trop Med Hyg. 2010;83(6):1305-7.

8. Secretaria do Estado de Saúde de Minas Gerais (SESMG). Protocolo de Febre Hemorrágicas: Febre Amarela. Dengue. Leptospirose. Rickettsioses. Meningococcemia e Doença Meningocócica. Febre Tifóide. Hantavirose. Hepatites. Malária. Belo Horizonte: Secretaria do Estado de Saúde de Minas Gerais; 2002.

9. Biggs HM, Behravesh CB, Bradley KK, Dahlgren FS, Drexler NA, Dumler JS, et al. Diagnosis and Management of Tickborne Rickettsial Diseases: Rocky Mountain Spotted Fever and Other Spotted Fever Group Rickettsioses, Ehrlichioses, and Anaplasmosis - United States. MMWR Recomm Rep. 2016;65(2):1-44.










1. Médica Residente do PRM Pediatria do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais - Médica Residente do 3° ano do PRM Pediatria do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
2. Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - Professora Adjunta IV do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
3. Professor Associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - Professor Associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
4. Médica Intensivista Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais - Chefe da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência:
Adrianne Mary Leão Sette e Oliveira
Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica
Avenida Professor Alfredo Balena, nº 110, Santa Efigênia
Belo Horizonte, MG, Brasil. CEP: 30130-100
E-mail: dennelsette@gmail.com

Data de Submissão: 19/10/2017
Data de Aprovação: 08/03/2018