ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2019 - Volume 9 - Número 2

Avaliação da adequação do uso de hemocomponentes em pacientes pediátricos não críticos

Evaluation of the use of blood components in non-critical pediatric patients

RESUMO

OBJETIVO: O objetivo desse estudo retrospectivo descritivo é expor as características epidemiológicas dos receptores de hemocomponentes e as características técnicas dos produtos utilizados nos pacientes não críticos de um hospital pediátrico terciário, além de avaliar a adequação das transfusões de hemocomponentes em conformidade com as diretrizes apresentadas pelo British Committee for Standards in Hematology (BCSH).
MÉTODOS: Foi realizado um levantamento de todas as transfusões realizadas entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2015, seguido da revisão dos respectivos prontuários e coleta de dados epidemiológicos. Posteriormente, as transfusões foram e classificadas em apropriadas e inapropriadas conforme suas indicações clínicas e de acordo com as diretrizes já citadas.
RESULTADOS: Foram estudados 49 eventos transfusionais no período do estudo, em unidades não intensivas clínicas e cirúrgicas, sendo 63,3% transfusão de concentrados de hemácias, seguidos pelos concentrados de plaquetas (32,6%) e plasma fresco congelado (4,1%). Após avaliação, foi encontrado um percentual de inadequação de 55,1% nas indicações de hemotransfusão, contrastando com a literatura vigente, que apresenta taxas menores de divergências nas indicações transfusionais.
CONCLUSÃO: Os dados obtidos no presente estudo indicam a necessidade de intervenções para a implementação efetiva das diretrizes apresentadas pelo BCSH, melhorando assim a prática transfusional nesse grupo de pacientes.

Palavras-chave: transfusão de sangue, sangue, pediatria.

ABSTRACT

OBJECTIVE: This retrospective descriptive study aimed to portray the epidemiological characteristics of blood component recipients and the technical characteristics of the products offered to non-critical patients of a pediatric tertiary care hospital, and to assess the appropriateness of blood transfusions relative to the guidelines published by the British Committee for Standards in Haematology.
METHODS: The study included all transfusions performed in 2015 at IFF/Fiocruz and screened the corresponding patient records for epidemiological data. Transfusion procedures were subsequently categorized as appropriate or inappropriate based on clinical indication and the aforementioned guidelines.
RESULTS: A total of 49 transfusions took place during the study period in the non-critical clinical and surgical care units of the hospital; 63.3% were transfusions of packed red blood cells, followed by platelet concentrates (32.6%), and fresh frozen plasma (4.1%). Subsequent evaluation found that 55.1% of the transfusion indications were inappropriate, a proportion higher than the rates published in the literature.
CONCLUSION: The results described in this study call for prompt intervention and implementation of measures to ensure the adoption of the guidelines published by the BCSH and the consequent improvement of the transfusion practices in effect for this group of patients.

Keywords: child, cough, respiratory infections, whooping cough.


INTRODUÇÃO

A transfusão de sangue e hemocomponentes é terapêutica comum na prática médica, podendo ser medida salvadora de vidas em muitos casos, porém apresentando riscos inerentes a sua aplicação, o que pode levar a complicações agudas e tardias1.

No caso da população pediátrica, os efeitos a longo prazo se tornam ainda mais significativos, devido à sua grande expectativa de vida pós-transfusional. Isto contrasta com a realidade da população geral, na qual estudos demonstram uma sobrevida média estimada de 51 meses após a realização de transfusão, nos pacientes que requerem esse procedimento2.

Considerando-se a realidade brasileira, devemos ainda ponderar os custos do procedimento, já que o uso de sangue e hemocomponentes é prática cara para o SUS, por necessitar de tecnologia de ponta e recursos humanos qualificados, além de ser dependente de doação voluntária.

No Brasil, entre 2012 e 2014, foram realizadas cerca de 3.657.756 coletas de sangue, com aumento de 162.446 procedimentos realizados em 2014 em relação a 2013. Desses procedimentos, 90,94% foram coletas realizadas no SUS e 9,06% nos serviços privados3.

Tais dados mostram que a taxa de doação de sangue no país em 2014 foi de 18,49 doações por 1.000 habitantes, com aumento de 0,65 pontos por mil habitantes em relação ao ano anterior3.

Ainda que existam diversos protocolos para a utilização de sangue e hemocomponentes em Pediatria, estes são, em grande maioria, baseados na adaptação de práticas comuns utilizadas na população adulta, muitas vezes inadequadas à população pediátrica4.

Por todos esses motivos, a prescrição de sangue e hemocomponentes deve levar em conta a segurança do doador, do receptor e a disponibilidade do acesso a esse recurso.

Um estudo realizado com médicos de uma Unidade de Terapia Intensiva e uma Unidade Onco-hematológica no Canadá demonstrou que o simbolismo do sangue como distinção de identidade, linhagem, etnicidade ou raça, além de seu emprego como representação de força e regeneração, influenciam a percepção e aceitação das hemotransfusões dentro da crença de cada indivíduo.

Tais fatores contribuem para que a transfusão seja uma propedêutica imbuída de subjetividade, apesar de regida por protocolos e evidências científicas. Além disso, apontou que a maioria dos médicos afirma não ter recebido treinamento relacionado à hemotransfusão durante o curso de Medicina, adquirindo seus conhecimentos durante a residência ou na prática médica.

Desses, a maioria tende a adotar níveis laboratoriais mínimos para a prescrição de hemocomponentes, afirmando porém que a decisão é baseada nas condições de saúde de cada paciente, o que gera grande variabilidade no perfil das indicações do uso de sangue. Por outro lado, alguns assumem já terem prescrito hemotransfusões para "melhorar a qualidade de vida" do paciente5.

Apesar de não haver dados brasileiros, estudos baseados nos Estados Unidos estimam que cerca de 5% de todas as transfusões de sangue total e concentrados de hemácias (CH) no ano de 2013 tenham sido realizadas em pacientes com menos de 18 anos de idade, sendo 58,3% desses produtos componentes irradiados6.

Segundo dados americanos, dentre as condições mais associadas à realização de hemotransfusões na infância estão o baixo peso ao nascer, as hemoglobinopatias, as cardiopatias com necessidade de correção cirúrgica, a realização cirurgia de fusão espinhal e a quimioterapia para neoplasias7.

Quando se trata da indicação de transfusão em Pediatria, existem poucos estudos acerca do uso dos hemocomponentes, suas complicações e sua utilidade clínica nesta faixa etária. Somado a isso, as particularidades de cada idade e sua maturidade fisiológica colocam o paciente pediátrico em maior risco de eventos adversos, incluindo aqueles relacionados ao erro humano, a reações adversas imunológicas e à transmissão de doenças infecciosas7.

Quanto ao risco imunológico, em receptores imunocompetentes, a exposição ao sangue do doador pode resultar no processo conhecido como aloimunização, o qual consiste no desenvolvimento de resposta imune contra os antígenos não próprios recebidos. No caso das transfusões sanguíneas, os antígenos mais comumente envolvidos são aqueles relacionados ao HLA de plaquetas e linfócitos, além de antígenos específicos de granulócitos, plaquetas e eritrócitos. Existem, até o momento, 308 antígenos reconhecidos associados aos grupos sanguíneos na superfície dos eritrócitos humanos8.

Esse fenômeno, apesar de raramente ocorrer no período neonatal, torna-se clinicamente importante nos pacientes pediátricos, principalmente naqueles que necessitam de transfusões de repetição. Esses pacientes terão muitos anos de sobrevida pós-transfusional, tornando cada vez mais difícil o encontro de bolsas compatíveis a eles com o passar do tempo.

Na população pediátrica em geral, cerca de 1-5% dos pacientes transfundidos irão desenvolver aloimunização. Este número, porém, é muito maior em pacientes portadores de hemoglobinopatias, chegando a 7,7% nos portadores de talassemia e 29% em pacientes portadores de anemia falciforme. Em contrapartida, em pacientes oncológicos submetidos à quimioterapia, a ocorrência de aloimunização é estimada em 0-2%9-11.

Além disso, nas pacientes do sexo feminino, os efeitos a longo prazo incluem a ocorrência de complicações a possíveis futuras gestações, podendo ocasionar a doença hemolítica do recém-nascido e até morte fetal e abortamento.

O Ministério da Saúde recomenda, segundo Portaria Nº 158, de 4 de fevereiro de 2016, que seja realizada pesquisa de anticorpos antieritrocitários irregulares (PAI) em todas as transfusões e a de utilização de hemácias fenotipadas compatíveis, principalmente para os sistemas mais imunogênicos (Rh, Kell, Duffy, Kidd e MNS) para pacientes aloimunizados contra antígenos eritrocitários ou que estão ou poderão entrar em esquema de transfusão crônica, com o objetivo de auxiliar a identificação de possíveis anticorpos antieritrocitários irregulares.

Em relação ao risco infeccioso, o Ministério da Saúde orienta que todas as bolsas de sangue coletadas sejam testadas e não sejam utilizadas antes da obtenção de resultado laboratorial para as seguintes doenças: hepatite B, hepatite C, HIV I e II, doença de Chagas, sífilis e infecção pelo HTLV I e II. A triagem para CMV deve ser realizada em casos específicos. O uso de componentes celulares desleucocitados pode substituir a utilização de componentes soronegativos para CMV.

Nas regiões endêmicas de malária, com transmissão ativa, deve ser realizado também teste para detecção do plasmódio ou de antígenos plasmodiais.

Outro fator importante a se considerar na prescrição de hemocomponentes é o risco de reações transfusionais. Apesar da população adulta apresentar maior probabilidade de receber transfusões que a pediátrica, esta encontra-se em maior risco para a ocorrência de resultados adversos a longo prazo devido a diversos fatores de sua fisiologia, como a imaturidade de seu sistema imunológico, da barreira hematoencefálica e sua maior expectativa de vida pós-transfusional4.

Um estudo realizado nos Estados Unidos demonstrou uma incidência de 6,2 reações por 1000 transfusões na população pediátrica, comparados a 2,4/1000 na população adulta. Na população pediátrica, a idade não foi associada a risco de reação transfusional, enquanto o sexo masculino foi correlacionado a maior ocorrência de reações. A ocorrência de eventos ameaçadores à vida parece não apresentar diferenças estatísticas significantes entre os grupos pediátrico e adulto12.

Embora as informações sejam limitadas devido à baixa aderência ao sistema de notificação, a Gerência de Monitoramento do Risco brasileira levanta a hipótese de que a taxa de reações transfusionais no país esteja próxima de 5/1.000 transfusões realizadas, com predominância das reações imediatas (mais de 96%). A reação febril não hemolítica e a reação alérgica são as mais prevalentes. Cerca de 82% das reações notificadas são de gravidade leve13.

Considerando-se a população pediátrica, alguns eventos adversos merecem especial atenção. Por exemplo, uma unidade de sangue transfundida a uma criança pode representar uma proporção muito maior de sua volemia quando comparada a um adulto. Somado a isso, no final da sua vida útil, ou após a armazenagem pós-irradiação, as unidades eritrocitárias têm níveis de potássio suficientemente elevados para causar hipercalemia significativa quando transfundidas rapidamente em crianças pequenas e em transfusões de volumes acima de 25mL/kg14,15.

Devido a sua maior sobrevida, a população pediátrica encontra-se também em maior risco para o desenvolvimento das complicações clínicas a longo prazo. Nos pacientes cronicamente transfundidos, a sobrecarga de ferro se torna clinicamente significante, podendo levar à falência hepática e toxicidade cardíaca. Estudos indicam também que possa haver algum grau de persistência de leucócitos do doador no sangue do receptor - o chamado microquimerismo transfusional. Entre as consequências desse fenômeno, estariam as doenças autoimunes e a doença do enxerto versus hospedeiro associada à transfusão (DECHAT) crônica4,16.

Apesar de todos esses fatores, dados do Reino Unido demonstram que a transfusão de hemocomponentes incorretos ainda apresenta grande prevalência nos relatos de incidentes transfusionais neonatais e pediátricos, destacando-se a falha para prescrição de componentes irradiados ou com sorologia negativa para CMV. Tais dados apontam uma possível falta de treinamento e conhecimento médico na área, já que a população pediátrica apresenta menores taxas transfusionais que a adulta14.

Dentre as principais modificações que podem ser utilizadas para adequação do componente ao receptor, estão o uso de filtro de leucócitos (leucorredução), que reduz a incidência de reações HLA-mediadas, da DECH-AT e de imunossupressão por efeitos imunomoduladores pós transfusão; a irradiação, que previne a proliferação de linfócitos do doador no paciente, também reduzindo o risco de DECH-AT e o uso de componentes lavados, diminuindo os níveis de proteínas plasmáticas e potássio livre, indicados nos casos de pacientes que tiveram reação anafilática por deficiência de IgA, reação alérgica grave a proteínas plasmáticas e recém-nascidos com trombocitopenia aloimune neonatal que forem receber plaquetas da maternas17.

O presente estudo tem como objetivos descrever as características dos pacientes pediátricos não críticos submetidos à hemotransfusão e as características técnicas das transfusões realizadas no Serviço de Pediatria do Instituto Nacional de Saúde da Criança, da Mulher e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), no Rio de Janeiro, RJ, no ano de 2014 e avaliar a adequação das solicitações de transfusões de hemocomponentes de acordo com as diretrizes que sistematizam evidências científicas para o uso de hemocomponentes.

Existem, atualmente, diversas diretrizes para guiar a prescrição e a indicação do uso de hemocomponentes, sendo as mais relevantes para a prática clínica brasileira a da American Association of Blood Banks (AABB), o Guia do Ministério da Saúde e as diretrizes apresentadas pelo British Committee for Standards in Hematology (BCSH)1,18,19. Após reunião com as chefias médicas do Serviço de Pediatria, optou-se pelo uso das diretrizes do BCSH, que considera a faixa etária infantil; aborda plaquetopenia isolada ou com sangramento ativo e considera maior diversidade de procedimentos cirúrgicos.


MÉTODOS

Este é um estudo retrospectivo, descritivo, realizado por meio da revisão de prontuários dos pacientes maiores de 28 dias a 18 anos de idade, portadoras de doenças clínicas ou cirúrgicas, internadas nas enfermarias de Pediatria, Cirurgia Pediátrica e dos ambulatórios do IFF, durante o período de 1 de janeiro a 31 de dezembro de 2015, e que receberam transfusão de sangue e hemocomponentes.

O Instituto realiza atendimento terciário nas áreas de Pediatria e Cirurgia Pediátrica, não possuindo serviços de hematologia, oncologia ou cirurgia cardíaca, fator que influencia diretamente o número de transfusões e o perfil dos receptores. Além disso, trata-se de uma instituição de ensino, com programas de residência médica e multidisciplinar nas áreas de Pediatria, Cirurgia Pediátrica e Saúde da Mulher. O estudo foi conduzido após aprovação pelo Comitê de Ética da instituição, sob parecer número 1.676.030, de 12/08/16.

As informações foram coletadas por meio da busca das transfusões ocorridas neste período no registro epidemiológico do Serviço de Hemoterapia, com revisão dos prontuários das crianças submetidas a este procedimento. Os dados foram avaliados quanto à idade, sexo, peso, grupo sanguíneo, diagnóstico clínico, indicação para transfusão, unidade solicitante, hemocomponente solicitado, idade do componente.

Em seguida, as transfusões foram avaliadas e classificadas em apropriadas ou inapropriadas conforme suas indicações clínicas. Para tal, após revisão da literatura, optou-se pela adoção das diretrizes apresentadas pelo British Committee for Standards in Hematology (BCSH), cujos pontos principais são resumidos no Quadro 1.




RESULTADOS

A Tabela 1 apresenta as características epidemiológicas dos receptores de hemocomponentes durante o ano estudado, além das características técnicas dos produtos utilizados. Quanto ao hemocomponente solicitado, 63,3% dos eventos constituíram-se de transfusão de concentrados de hemácias, seguidos pelos concentrados de plaquetas (32,6%) e plasma fresco congelado (4,1%). Não foram realizadas transfusões de crioprecipitado ou de plasma de 24h no período do estudo.




O tempo médio de estocagem dos componentes - considerado como tempo entre a coleta e transfusão - foi de 14,65 dias para o CH; 3,36 dias para o CP e 116,5 dias para o PFC.

Quanto as características dos pacientes, 53% foram do sexo feminino contra 47% do sexo masculino. Considerando-se a faixa etária, a grande maioria dos pacientes que recebeu componentes sanguíneos se encontra na faixa etária de 0-2 anos (42,8%), seguidos pelos adolescentes (28,6%). Esses pacientes apresentaram uma mediana de idade de 2,08 anos e peso médio de 14,58Kg.

Quarenta por cento das transfusões foram realizadas em unidades cirúrgicas (Centro Cirúrgico e enfermaria de Cirurgia Pediátrica) enquanto 59,2% foram realizadas na Enfermaria de Pediatria, Unidade Intermediária Pediátrica e Ambulatório de Pediatria.

Quanto ao volume médio de componente transfundido, aqueles pacientes receptores de CH receberam em média 14,91mL por quilo de peso, enquanto os receptores de CP receberam 6,05mL/kg e os de PFC 11,96mL/kg.

Após a avaliação das indicações de hemotransfusão de acordo com os parâmetros clínicos e laboratoriais discriminados na Tabela 1 deste estudo, 55,1% dos eventos transfusionais foram classificados como inapropriados quanto a sua indicação, conforme demonstra a Tabela 2.




Em ordem de percentual de erros por número total de transfusões, as plaquetas foram o componente com pior índice de adequação clínica avaliado, sendo 56,3% consideradas inapropriadas, seguidas pelos CH (54,8%) e pelo PFC (50%).

No caso das plaquetas, a inadequação ocorreu por ausência de dosagem laboratorial pré-transfusão em um caso e pela indicação de transfusão sem necessidade considerando-se o nível laboratorial e grau de sangramento conforme critérios do BSCH (Tabela 3).




Avaliando-se a transfusão de CH, em todos os casos a inadequação se deu à indicação de transfusão para pacientes com Hb sérica > 7g/dL sem evidência dos fatores de risco descritos no Quadro 1.

Já no caso do PFC, a inadequação se baseou na indicação de transfusão em paciente com evidência de sangramento intra operatório porém com testes de coagulação normais.

Avaliando-se a adequação por faixa etária (Tabela 4), percebe-se que o maior percentual de erros ocorre na indicação de hemocomponentes para lactentes (51,8%), que também foi a faixa etária com maior número de transfusões.




DISCUSSÃO

De acordo com os resultados do presente estudo, pode-se observar que não houve discrepâncias na população estudada quanto ao sexo, porém quando se avalia a idade dos pacientes submetidos à transfusão, a grande maioria ocorreu em lactentes (42,8%). Este fato levanta o concernimento dos efeitos a longo prazo das transfusões, já que estes pacientes poderão ter maior sobrevida pós-transfusional e chance de serem expostos a novas transfusões futuramente, potencializando as possíveis complicações relacionadas às transfusões.

Quanto aos hemocomponentes transfundidos, 63,3% foram concentrados de hemácias, seguidos pelos concentrados de plaquetas e plasma fresco congelado. A maior prevalência do uso de CH já foi demonstrada por Bahadur et al.20 em estudo semelhante, porém este autor relata grande uso de sangue total e maior utilização de PFC que de CP, em desacordo com os resultados encontrados neste estudo.

O volume médio transfundido foi de 11,96mL/kg e durante a revisão dos prontuários não foram encontrados relatos de sintomas de sobrecarga volêmica relacionada à transfusão sanguínea. A ocorrência e notificação de reações transfusionais, porém, não foi avaliada de forma sistemática neste estudo.

Quanto à especialidade, 59,2% foram realizadas nas unidades clínicas, contra 40,8% em unidades cirúrgicas. Tais estatísticas devem ser relacionadas ao volume de atendimentos e às características clínicas dos pacientes atendidos, não podendo ser feitas inferências quanto à prevalência de transfusões em cada serviço no momento.

Após avaliação das transfusões sob os critérios do BCSH, discriminados no Quadro 1, foi encontrada uma razão de 44,9% de transfusões consideradas adequadas pelos critérios adotados. Este valor se encontra muito inferior a estudo semelhante, realizado por Bahadur et al.20, também em instituição de ensino, que descreve um percentual de apropriação de 59,65%.

Um estudo multicêntrico realizado em 15 unidades neonatais brasileiras aponta que dentre os principais fatores relacionados às dificuldades na implementação de diretrizes clínicas nas práticas em saúde estão o nível de conhecimento dos profissionais, as atitudes desses profissionais, envolvendo desde a concordância com a prática orientada à preferência ao uso de práticas antigas, as preferências indicadas pelos pacientes e o ambiente de trabalho e inadequação da infraestrutura necessária21.

Nosso estudo demonstrou grande taxa de inadequação na indicação de hemotransfusões quando comparada a outro estudo semelhante, fato que indica a necessidade de intervenções para a implantação efetiva das diretrizes do BCSH, melhorando assim o uso de hemocomponentes no IFF/Fiocruz e futuros trabalhos nessa área.

Existem diversas estratégias que podem ser adotadas para a melhoria da qualidade das transfusões de sangue. Fundamentalmente, essas estratégias se baseiam na educação continuada das equipes de saúde e na realização de audições e estudos frequentes para avaliação da qualidade transfusional e eficácia das medidas adotadas.

Do ponto de vista educacional, é essencial estimular o uso de alternativas ao sangue como o tratamento de anemias carenciais em pacientes estáveis, com suplementação de ferro e vitaminas; capacitação dos profissionais prescritores quanto às indicações do uso de hemocomponentes, avaliando-se criteriosamente a necessidade clínica de cada transfusão, a despeito de resultados laboratoriais isoladamente e identificando os pacientes sob risco de complicações secundárias à anemia severa ou à deficiência de componentes.

Além disso, todos os profissionais devem ser treinados em relação à monitorização e à notificação de complicações e de reações transfusionais. Outra estratégia descrita na literatura se baseia na implementação dos pontos-chave das diretrizes e indicações como parte dos formulários de pedido de hemocomponentes, incentivando a revisão criteriosa de tais indicações no momento da prescrição.

A realização de estudo retrospectivo por meio de revisão de prontuários apresenta limitações e dificuldades técnicas já bem conhecidas, como a ausência de relatos clínicos claros e perda de dados pela não discriminação em prontuário. Além disso, não é possível realizar investigações complementares quando necessário, o que prejudica a realização do trabalho. No presente estudo, a ausência de relatos sobre os desfechos decorrentes das transfusões com indicações inadequadas, avaliando se o paciente sofreu algum dano e o tamanho da amostra, também foram fatores limitantes para a avaliação dos resultados.

Por outro lado, a realização de tais estudos é parte fundamental para a avaliação da qualidade da prática médica e da conscientização das equipes quanto às práticas adotadas.


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1. Residência em Pediatra pelo Instituto Fernandes Figueira (IFF-FIOCRUZ) - Residente de Terapia Intensiva Pediátrica - ICr/HC-FMUSP, São Paulo, SP, Brasil
2. Doutora em Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz - chefe do Serviço de Hemoterapia do Instituto Fernandes Figueira, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência:
Vivian Henriques do Amaral
Instituto Fernandes Figueira - Fundação Oswaldo Cruz (IFF-FIOCRUZ)
Av. Rui Barbosa, nº 716, Flamengo
Rio de Janeiro - RJ. Brasil. CEP: 22250-020
E-mail: vivian.hamaral@yahoo.com

Data de Submissão: 16/11/2017
Data de Aprovação: 28/05/2018