ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2019 - Volume 9 - Número 2

Mal de Pott: Relato de caso

Pott’s Disease: A Case Report

RESUMO

Mal de Pott é o termo utilizado para definir a infecção da coluna vertebral pelo Mycobacterium tuberculosis. Galeno foi o primeiro grande estudioso a correlacionar a deformidade da coluna vertebral com a infecção. Em Pediatria, as infecções de coluna vertebral são incomuns e frequentemente há retardo no diagnóstico porque trata-se de uma doença crônica, com sintomas muitas vezes inespecíficos e de diagnóstico difícil por excelência, muitas vezes por condições inerentes à própria doença, podendo evoluir com sérias repercussões clínicas como deformidades ósseas, bem como lesões permanentes do sistema nervoso periférico. O objetivo deste estudo foi descrever um caso de tuberculose osteoarticular em adolescente de 14 anos, com queixa de que há quatro meses iniciou quadro de lombalgia e dificuldade para deambular, com paraparesia progressiva em membros inferiores, necessitando de cadeiras de rodas para locomoção. Teste tuberculínico forte reator, anti-HIV não reagente, cultura para BK positiva em aspirado de vértebra torácica lesada (D6), com fratura cominutiva associada a volumosa massa paravertebral com atenuação de partes moles com aspecto sugerindo espondilodiscite infecciosa com abscesso paravertebral em fuso. Iniciou tratamento com rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol. Atualmente, paciente encontra-se sem queixas álgicas, deambulando com auxílio de muletas. Pelo fato de existir poucos casos relatados de mal de Pott na literatura, pelo seu prognóstico, bem como a dificuldade em firmar o diagnóstico de maneira precoce, impondo-se como um importante diagnóstico diferencial de outras doenças, foi o que levou à motivação para a apresentação do caso.

Palavras-chave: infecção, tuberculose, coluna vertebral.

ABSTRACT

Pott’s disease is the term used to define infection of the spine by Mycobacterium tuberculosis. Galen was the first major scholar to correlate spinal deformity with infection. In Pediatrics, spinal infections are uncommon and often there is a delay in diagnosis because it is a chronic disease, with often non-specific symptoms and difficult diagnosis par excellence, often due to conditions inherent to the disease itself, and can progress with serious clinical repercussions such as bone deformities as well as permanent lesions of the peripheral nervous system. The objective of this study was to describe a case of osteoarticular tuberculosis in a 14-year-old boy with a complaint that four months later he had a low back pain and difficulty walking, with progressive paraparesis in the lower limbs requiring wheelchairs for locomotion. Strong reactive tuberculin test, non-reactive anti-HIV, culture for positive BK in aspirated thoracic vertebra (D6), with comminuted fracture associated with voluminous paravertebral mass with attenuation of soft tissues with aspect suggesting infectious spondylodiscitis with spindle paravertebral abscess. She started treatment with rifampicin, isoniazid, pyrazinamide and etambutol. Currently the patient is without pain complaints, wandering with the aid of crutches. Due to the fact that there are few reported cases of Pott’s disease in the literature, due to its prognosis, as well as the difficulty in establishing the diagnosis in an early manner, imposing itself as an important differential diagnosis of other diseases, was what motivated the presentation of the case.

Keywords: infection, tuberculosis, spine.


INTRODUÇÃO

A tuberculose é uma doença infecciosa muito prevalente a nível mundial e endêmica em países em desenvolvimento, representando um importante problema de saúde pública1. De acordo com Organização Mundial de Saúde, cerca de um terço da população mundial encontra-se infectada pelo Mycobacterium tuberculosis2. O envolvimento extrapulmonar se dá com maior frequência pela disseminação linfo-hematogênica dos bacilos.

Hipócrates foi o precursor na associação entre as alterações da coluna com uma condição infecciosa como etiologia. Posteriormente, Galeno relatou a deformidade da coluna vertebral devido à infecção da coluna3.

O mal de Pott foi descrito no século XVIII por um cirurgião britânico chamado Percivall Pott, que associou o quadro clínico manifestado por um paciente que apresentava a tríade abscesso, paraplegia e gibosidade, inserido no contexto clínico da tuberculose de localização vertebral, demonstrando o valor da drenagem de abscessos frios na abordagem da paraplegia ocasionada pela lesão vertebral à tuberculose de coluna vertebral4. Desde então, passou a ser conhecida como mal de Pott em homenagem ao seu descritor5.

Um número muito reduzido de casos relatados, bem como a dificuldade em firmar o diagnóstico de maneira precoce, levou à motivação para a apresentação do caso.


RELATO DE CASO

R.K.R.S., masculino, negro, estudante, 14 anos, 60kg, admitido com quadro de lombalgia e dificuldade para deambular há 4 meses, evoluindo com paraparesia progressiva, necessitando de cadeiras de rodas para se locomover. Apresentou baciloscopia negativa, teste tuberculínico forte reator (15mm) e anti-HIV I e II não reagente. Ressonância nuclear magnética evidenciando volumosa massa paravertebral estendendo-se de D4 a D7 (Figura 1) e fratura cominutiva anterior em cunha (D6) gerando cifose (Figura 2).


Figura 1. Volumosa massa paravertebral se estendendo de D4 a D7.


Figura 2. Fratura cominutiva com acunhamento anterior em D6.



Submetido à biópsia de coluna dorsal com cultura de aspirado de vértebra (D6) positiva para Mycobacterium tuberculosis. Foi instituído tratamento com o esquema I 2 RHZE + 4 RH (dois meses de rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol + quatro meses de rifampicina e isoniazida). Paciente submetido à artrodese de coluna toracolombossacral posterior no 50º DIH e em D18 de esquema I. Passados 229 dias do início do tratamento, paciente segue em acompanhamento multiprofissional já deambulando com auxílio de muletas, sem queixas álgicas.


DISCUSSÃO

A tuberculose de coluna vertebral pode ocorrer em qualquer faixa etária, sendo mais frequente na primeira década de vida e na adolescência em países em desenvolvimento6, sendo responsável por pelo menos 10% das formas extrapulmonares7. Ocorre geralmente secundária à infecção pulmonar pelo bacilo e quase sempre após o primeiro ano depois da primoinfecção por via linfo-hematogênica. As alterações vertebrais identificadas em exames de imagem surgem, em média, cerca de cinco meses após acometimento ósseo pelo bacilo. A lesão pode desencadear uma cifose, sendo a principal responsável pelo desenvolvimento de gibosidade na infância.

O mal de Pott é uma doença que muitas vezes não tem seu diagnóstico definido, por ser uma doença de diagnóstico difícil por excelência, outras vezes, o diagnóstico é dado de forma tardia, podendo evoluir com complicações graves de impacto decisivo na qualidade de vida dos pacientes, como a paraplegia decorrente da compressão medular na fase ativa da doença8.

Trata-se de uma doença indolente, negligenciada no campo da pesquisa e terapêutica, talvez por atingir pessoas menos favorecidas9. As sequelas observadas com maior frequência são: paraplegia ou tetraplegia, déficit neurológico e dissociação atlantoaxial nos casos em que há acometimento vertebral e deformidade permanente da coluna10.

A ressonância magnética exibe com inúmeras vantagens a extensão da deformidade e a consequente compressão da medula8. Ela é uma opção diagnóstica valiosa na investigação do mal de Pott por ter a capacidade de definir qual tecido está comprimindo os segmentos neurais: sequestro discal, tecido ósseo ou abscesso11.

A associação de rifampicina + isoniazida + pirazinamida + etambutol por dois meses seguidos de rifampicina + isoniazida por um período máximo de 6, 9, 12 ou 18 meses é o esquema terapêutico proposto com maior frequência no tratamento da tuberculose espinal12.

A espondilite tuberculosa aguda tem indicação cirúrgica quando o paciente evolui com aumento progressivo de deformidade na coluna vertebral, déficit neurológico progressivo, dor devido a abscesso ou instabilidade vertebral, falha no tratamento conservador e diagnóstico incerto13.

O motivo determinante para a substituição do tratamento medicamentoso exclusivo pela associação com o tratamento cirúrgico é o surgimento de sintomas neurológicos. Alguns cirurgiões definem que cifoses com mais de 30º apresentam indicação de tratamento cirúrgico14.


CONCLUSÃO

Em Pediatria, as infecções de coluna vertebral são incomuns e frequentemente há retardo no diagnóstico porque a coluna não é facilmente palpável, os sintomas geralmente são inespecíficos e muitos médicos ignoram o mal de Pott como hipótese diagnóstica, podendo gerar sérias repercussões clínicas como deformidades ósseas e lesões permanentes do sistema nervoso periférico.

O mal de Pott é uma doença de evolução lenta e, portanto, necessita ser aventada como hipótese em qualquer paciente com história de exposição a paciente com tuberculose pulmonar, que venha evoluindo com sintomas neurológicos como lombalgia, paraparestesias, paraparesias, dificuldade em deambular. Uma vez instituído o diagnóstico precoce e a terapêutica eficaz, reduz-se o risco de sequelas neurológicas graves.


REFERÊNCIAS

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1. Médico - Residente do 2º ano de Pediatria no Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão, Unidade Materno-Infantil, São Luís, MA, Brasil
2. Residência Médica em Infectologia Pediátrica - Infectologista Pediátrico da Comissão de Controle de Infecções Hospitalares do Hospital Universitário Materno-Infantil, São Luís, MA, Brasil
3. Mestra em Saúde Materno-Infantil pela Universidade Federal do Maranhão - Pediatra do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão - Unidade Materno-Infantil e Hospital da Criança Dr. Odorico Amaral de Matos, São Luís, MA, Brasil

Endereço para correspondência:
Diego Moreira de Aguiar
Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão, Unidade Materno-Infantil
Rua Silva Jardim, nº 215, Centro
São Luís - MA. Brasil. CEP: 65020-560
E-mail: drdiegoaguiar2014@gmail.com

Data de Submissão: 01/12/2017
Data de Aprovação: 02/02/2018