Relato de Caso
-
Ano 2019 -
Volume 9 -
Número
2
Válvula de Eustáquio mimetizando trombose atrial em paciente com doença falciforme: Relato de caso
Eustachian valve mimicking atrial thrombosis in a patient with sickle cell disease: A case report
Sabrine Teixeira Ferraz Grunewald1; Mariana Celestino Silva2; Bryan da Silva Marques Cajado3
RESUMO
A ocorrência de trombos no coração direito é um evento incomum, ocorrendo principalmente em condições relacionadas à trombofilia, como doença falciforme, lesões estruturais do coração ou arritmias. Descrevemos um caso em que uma válvula de Eustáquio observada ao ecocardiograma transtorácico foi confundida com um trombo atrial, em um paciente com risco trombogênico aumentado. Esse achado não apresenta importância clínica, mas pode erroneamente ser interpretado como patológico, devendo ser diferenciado de trombos e outras massas de átrio direito.
Palavras-chave:
ecocardiografia, variação anatômica, doença da hemoglobina SC.
ABSTRACT
The occurrence of thrombosis in the right heart is an uncommon event, occurring mainly in conditions related to thrombophilia, such as sickle cell disease, or in structural heart lesions or arrhythmias. We describe a case in which an Eustachian valve observed on the transthoracic echocardiogram was confused with an atrial thrombus in a patient with an increased thrombogenic risk. This finding is not clinically important, but may erroneously be interpreted as pathological, and should be differentiated from thrombi and other masses of the right atrium.
Keywords:
echocardiography, anatomic variation, hemoglobin SC disease.
INTRODUÇÃO
O átrio direito é sítio usual de variações anatômicas normais. A válvula de Eustáquio é um remanescente embriológico da incompleta reabsorção da válvula da veia cava inferior, e está envolvida na condução do sangue rico em oxigênio da veia cava inferior através do septo interatrial ao átrio esquerdo do coração fetal. É um achado comum e benigno na maior parte dos recém-nascidos, mas sua prevalência em adultos é desconhecida1.
Macroscopicamente, a válvula de Eustáquio aparece como uma prega na margem posterior da veia cava inferior. No ecocardiograma, é uma estrutura linear que surge da junção entre a veia cava inferior e o átrio direito. Ela pode dividir o átrio direito em duas câmaras, o que é chamado de cor triatrium, que geralmente traz repercussão hemodinâmica2. A válvula de Eustáquio corriqueiramente é considerada como patológica, sendo confundida com tumores ou trombos com alto risco de embolização. Essa má interpretação leva a solicitações de ecocardiografias transesofágicas e intervenções desnecessárias1.
O objetivo do presente trabalho é relatar um caso em que uma válvula de Eustáquio remanescente observada ao ecocardiograma transtorácico foi confundida com um trombo atrial em um paciente com risco trombogênico aumentado. Além disso, apresentamos uma breve revisão sobre o diagnóstico diferencial de massas intracardíacas.
RELATO DE CASO
Paciente de sexo masculino, com 7 anos de idade, portador de hemoglobinopatia SC diagnosticada ao nascimento. Em acompanhamento ambulatorial no serviço de Hematologia, realizou exames de rotina anual, sendo diagnosticado em ecocardiograma transtorácico com trombo intracavitário em átrio direito. O paciente estava assintomático, com exame físico cardiológico sem alterações, e foi internado no serviço do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora para realizar anticoagulação plena com heparina e investigação propedêutica.
Devido à raridade da hipótese diagnóstica inicial, optou-se por realização de novo ecocardiograma transtorácico, que revelou ausência de trombo em átrio direito, sendo observada a presença de válvula de Eustáquio (Figura 1), além de persistência de forame oval. Com esse novo diagnóstico, o paciente recebeu alta hospitalar e permanece em acompanhamento ambulatorial com médico hematologista.
Figura 1. Válvula de Eustáquio proeminente no átrio direito (asterisco).
DISCUSSÃO
O principal sítio trombogênico cardíaco é o coração esquerdo, principalmente o átrio e apêndice atrial esquerdo3. Apesar de evento incomum, existe a ocorrência de trombos no coração direito, principalmente se houver alguma condição que predisponha à trombofilia, como doença falciforme, lesões estruturais do coração ou arritmias.
A anemia falciforme, por si só, promove a ativação plaquetária e de fatores de coagulação plasmáticos, criando um estado de hipercoagulabilidade e podendo levar à formação de trombos num processo trombótico microangiopático. Entretanto, o acometimento intracardíaco é extremamente raro, o que justifica o questionamento ao resultado do primeiro ecocardiograma no caso relatado4.
O ecocardiograma é um método de imagem não invasivo, prático e de várias utilidades na prática clínica, permitindo, por exemplo, o diagnóstico diferencial entre massas intracardíacas. As principais etiologias de massas intracardíacas são neoplasias, vegetações e massas não infecciosas como trombos e remanescentes embrionários5.
Os tumores do coração podem se originar da camada muscular, dos tecidos que revestem o órgão ou do pericárdio5. Neoplasias primárias do coração são raras, sendo as mais frequentes os mixomas e o fibroelastoma papilar em adultos e os rabdomiomas em crianças6.
As metástases cardíacas são mais frequentes e se originam principalmente dos carcinomas de pulmão e esôfago e de linfomas7. Já as vegetações são aglomerados de fibrina e coágulo que se infectam, podendo conter ainda leucócitos e hemácias. São os achados característicos da endocardite infecciosa, acometendo as valvas cardíacas e próteses valvares, apresentando grande e risco de morbimortalidade8.
No caso apresentado, uma válvula de Eustáquio remanescente, achado benigno e sem implicação clínica, mimetizou uma condição potencialmente grave e de tratamento complexo e oneroso. A reavaliação do paciente com um novo exame esclareceu o diagnóstico. É importante destacar que um ecocardiograma realizado com técnica correta permite a diferenciação entre um remanescente embriológico normal de algo patológico. Dessa forma, pediatras e cardiologistas devem estar atentos a esse diagnóstico diferencial, evitando expor o paciente a condutas propedêuticas e terapêuticas desnecessárias.
REFERÊNCIAS
1. Ionac A, Dragulescu A, Mornos C, Gaspar M, Slovenski M, Dragulescu SI. Large eustachian Valve-A puzzling echocardiographic diagnosis and a difficult therapeutic management. Timisoara Med J. 2014;54(4):362-5.
2. Kim MJ, Jung HO. Anatomic variants mimicking pathology on echocardiography: differential diagnosis. J Cardiovasc Ultrasound. 2013;21(3):103-12.
3. Lueneberg ME, Monaco CG, Ferreira LDC, Silva CES, Gil MA, Peixoto LB, et al. O Coração como Fonte Emboligênica: Não Basta Realizar Ecocardiograma Transesofágico. É preciso ser bem feito. Rev Bras Ecocardiogr. 2003;16(2):13-24.
4. Nikparvar M, Evazi MR, Eftekhari T, Moosavi F. Intracardiac Thrombosis in Sickle Cell Disease. Iran J Med Sci. 2016;41(2):150-3.
5. Uzun O, Wilson DG, Vujanic GM, Parsons JM, De Giovanni JV. Cardiac tumours in children. Orphanet J Rare Dis. 2007;2:11.
6. Straus R, Merliss R. Primary tumors of the heart. Arch Pathol. 1945;39:74-8.
7. Lam KY, Dickens P, Chan AC. Tumors of the heart: a 20-year experience with a review of 12,485 consecutive autopsies. Arch Pathol Lab Med. 1993;117(10):1027-31.
8. Bayer AS, Bolger AF, Taubert KA, Wilson W, Steckelberg J, Karchmer AW, et al. Diagnosis and management of infective endocarditis and its complications. Circulation. 1998;98(25):2936-48.
1. Hematologista e Hemoterapeuta Pediátrica - Professora Auxiliar do Departamento Materno-Infantil da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
2. Médica - Residente em Pediatria pelo Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
3. Discente de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
Endereço para correspondência:
Sabrine Teixeira Ferraz Grunewald
Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora
Rua Catulo Breviglieri, s/nº, bairro Santa Catarina
Juiz de Fora - MG. Brasil. CEP: 36036-110
E-mail: sabrine.pediatria@gmail.com
Data de Submissão: 11/12/2017
Data de Aprovação: 13/03/2018