ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Ponto de Vista - Ano 2012 - Volume 2 - Número 1

Prevenção da violência contra crianças e adolescentes: do conceito ao atendimento - campanha permanente da Sociedade Brasileira de Pediatria

Prevention of violence against children and adolescents: from concept to service - permanent campaign of Brazilian Society of Pediatrics


INTRODUÇÃO

A violência é, antes de tudo, uma violação dos direitos humanos fundamentais; manifesta-se sob diversas formas, nos mais diferentes espaços e em todas as classes sociais, afetando a saúde e a qualidade de vida das pessoas. Os maus-tratos, abuso ou violência doméstica, que se configuram como campo de atuação dos pediatras, são mais visíveis nas camadas populares empobrecidas que, utilizando os serviços públicos de saúde como ambulatórios e serviços de emergência, de assistência social e outros, conferem maior visibilidade a esses eventos. Nas classes economicamente favorecidas, o sigilo que envolve as agressões é garantido em consultas particulares, seja com médicos, psicólogos e outros profissionais em serviços privados.

Os maus-tratos sofridos na infância e adolescência, fases da vida de maior vulnerabilidade, por serem praticados, em sua maioria, no âmbito intrafamiliar, são encobertos por um complô de silêncio, justificado, muitas vezes, pelas alegadas inviolabilidade do lar e não invasão da sua privacidade. Esses argumentos dificultam a atuação preventiva e o adequado encaminhamento das vítimas, podendo se perpetuar por meses e anos. Cabe ao pediatra, médico encarregado pelo acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança e do adolescente, incorporar em sua anamnese, exame físico e, fundamentalmente, na escuta empática da família e do seu paciente – crianças e adolescentes, elementos que possam subsidiá-lo para afastar ou suspeitar e/ou confirmar um caso de violência.


ASPECTOS JURÍDICOS - INSTITUCIONAIS

No Brasil, crianças e adolescentes são protegidos por várias normativas jurídicas e institucionais que garantem, ao menos na letra da lei, seus direitos humanos fundamentais.

O atual Direito Constitucional da Infância e Adolescência, expresso no Brasil pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, prescreve: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à saúde, à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

A Carta Magna e as normativas internacionais, como a Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 e a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990 (ratificada pelo Brasil e outras 192 nações), no seu Artigo 3º, estabelece que "todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança", têm no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei federal 8069/90 a garantia da criação de condições de exigibilidade para os direitos dessa população. Expressam juridicamente a estes sujeitos a proteção prioritária pela sua condição peculiar de pessoas em período de crescimento e desenvolvimento, na perspectiva da proteção integral. O ECA, em seu Artigo 5º, dispõe que "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais".

No que concerne à Saúde, o ECA apresenta artigos que vão do 7º ao 14, e outros, como os Artigos 87, 130 e 245, dirigidos aos maus-tratos e às penalidades que constam da lei em caso de descumprimento da obrigatoriedade da notificação ao Conselho Tutelar.

O ECA prevê, ainda, a participação da sociedade por meio dos conselhos de direitos e tutelares, sendo imprescindível a referida parceria para o atendimento das vítimas.

A existência do arcabouço jurídico-institucional não exclui outros pressupostos que, a serem respeitados, levam a uma sociedade mais solidária e, em consequência, menos violenta, a saber: recursos no orçamento público para as políticas voltadas à infância e adolescência; garantia do pleno funcionamento dos conselhos de direitos e tutelares e criação destes onde eles ainda não existirem; ampliação do acesso à educação infantil de qualidade; melhora da qualidade do ensino fundamental; ampliação e melhora do atendimento pré-natal; assegurar a ampliação da licença-maternidade para 6 meses a todas as mulheres do país; respeito às diversidades e a todas as pessoas em quaisquer circunstâncias.

A violência e suas consequências são, pois, uma violação dos referidos direitos, além de serem consideradas um grave problema de saúde pública no mundo, segundo Relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 20021.

Para Cecília Minayo, a violência tornou-se um problema de saúde pública por ser um fenômeno sociohistórico; a violência não é, em si, uma questão de saúde pública e nem um problema médico típico. Mas ela afeta fortemente a saúde porque:

  • Provoca morte, lesões e traumas físicos e um sem número de agravos mentais e emocionais;
  • Diminui a qualidade de vida das pessoas e das coletividades;
  • Exige uma readequação da organização tradicional dos serviços de saúde;
  • Coloca novos problemas para o atendimento médico preventivo ou curativo;
  • Evidencia a necessidade de uma atuação muito mais específica, interdisciplinar, multiprofissional, interssetorial e engajada do setor, visando às necessidades dos cidadãos.


  • Fica demonstrado pela Tabela 1 o perfil de mortalidade de crianças e adolescentes no Brasil em 2006, evidenciando a relevância do setor da saúde na abordagem do problema em questão.




    Em 2006, o total de óbitos na faixa etária de 0 a 19 anos foi de 86.512, sendo as causas externas (acidentes e violências) responsáveis por 24% desse total, isto é, 20.614 óbitos (Tabela 1).

    As agressões (8.414 casos) correspondem a 41% das mortes por causas externas nesta faixa etária.


    CONCEITOS

    A definição de violência varia de acordo com a cultura, com a história de cada grupo social, com a interferência dos elementos midiáticos que se configuram como um poder incontestável na sociedade atual.

    Para a OMS (2002)1, a violência pode ser definida como "o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação."

    Segundo documento da OMS, de 20021, tem-se procurado explicar as raízes da violência, utilizando-se o denominado modelo ecológico, que aponta para a complexa interação de fatores individuais, interpessoais, sociais, culturais e ambientais (Relatório Mundial sobre Violência e Saúde).

    O documento da OMS apresenta quadro dos tipos de violência (Figura1). O eixo horizontal mostra quem é afetado e o eixo vertical descreve como são afetados. Frequentemente, os diversos tipos atuam interagindo entre si.


    Figura 1. Tipologia da violência segundo OMS, 2002. Tipologia da Violência.



    A violência é definida por Minayo & Assis2 como "o fenômeno gerado nos processos sociais, levando pessoas, grupos, instituições e sociedades a se agredirem mutuamente, a se dominarem, a tomarem à força a vida, o psiquismo, os bens e/ou o patrimônio alheio". Ainda segundo Minayo & Assis2, a violência pode ser categorizada como estrutural, da delinquência, cultural e a violência revolucionária/resistência.

    A violência estrutural refere-se às condições de vida dos indivíduos, a partir de decisões histórico-econômicas e sociais, tornando vulneráveis suas condições de vida e trazendo à sociedade brasileira a marca da desigualdade social caracterizada por aspectos desfavoráveis da vida de crianças e adolescentes. Como exemplos dessa iniquidade e revelando uma perversa face da violência estrutural, estão os meninos e meninas em situação de rua; trabalhando de forma ilegal (o trabalho infantil é proibido pela lei federal 8069 – ECA); a exploração do trabalho adolescente, o envolvimento com drogas, como o álcool, a maconha, os solventes, o "crack", entre outras; a participação em atos criminosos levados por adultos em geral ligados ao tráfico de entorpecentes; a prática de sexo inseguro; a exploração sexual comercial e outros atos de não cidadania. São crianças e adolescentes que não estão inseridos no direito inalienável da convivência familiar e comunitária, fundamental para o seu adequado crescimento e desenvolvimento.

    As principais causas que levam meninos e meninas para fazer das ruas o seu espaço de sobrevivência são a miséria e a violência doméstica a que estão submetidos. Tanto a falta de condições familiares para a subsistência quanto os maus-tratos sofridos fazem com que eles saiam de casa, acreditando encontrar nas ruas as condições mínimas de uma vida menos violenta e mais feliz. Viver longe das agressões e das dificuldades cotidianas de suas casas é o objetivo da imensa maioria que se encontra nas ruas das cidades do País. É importante ressaltar, porém, que não se pode, nem se deve, culpar a família por essa situação, pois elas próprias, muitas vezes, são vítimas das dificuldades – estruturais, culturais, individuais, que necessitam de apoio tanto quanto os seus filhos. As redes de apoio, os serviços de saúde e assistência social, a justiça, os conselhos tutelares e demais equipamentos sociais disponíveis devem ser acionados para apoiar e acompanhar as famílias em situação de risco social e de violência.

    Para se promover a redução do número de ocorrências de maus-tratos contra a população infanto-juvenil, iniciativas de sensibilização e capacitação dos profissionais, especialmente os pediatras, são propostas que visam a subsidiá-los para o diagnóstico precoce, o atendimento e encaminhamento adequados.

    Os maus-tratos se configuram como o tipo de violência ao qual pediatras têm a possibilidade de atuar de forma direta, não só pelo vínculo com a família do seu paciente como pelo contato cotidiano com essa ocorrência, lamentavelmente, comum nos consultórios dos ambulatórios dos serviços públicos da rede de saúde e/ou nas clínicas particulares.

    Define-se "abuso ou maus-tratos pela existência de um sujeito em condições superiores (idade, força, posição social ou econômica, inteligência, autoridade), que comete um dano físico, psicológico ou sexual, contrariamente à vontade da vítima ou por consentimento obtido a partir de indução ou sedução enganosa." A definição do que possa ser uma prática abusiva passa sempre por uma negociação entre a cultura, a ciência e os movimentos sociais. (Deslandes,1994)3.

    Os maus-tratos são divididos nos seguintes tipos, segundo o Guia de Atuação Frente a Maus-tratos na Infância e Adolescência (2005), elaborado em conjunto pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), pelo Centro Latinoamericano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Carelli (CLAVES- ENSP/ FIOCRUZ) e pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos - Ministério da Justiça:

  • Maus-tratos físicos – uso da força física de forma intencional, não acidental, praticada por pais, responsáveis, pessoas da família ou conhecidas da vítima, com o fim de machucar, ferir ou destruir, podendo deixar ou não marcas evidentes. Assinala-se como de importância, não só pela gravidade quanto pela frequência, a "síndrome do bebê sacudido" que consiste em uma forma especial de maus-tratos em que a criança, em geral menor de 6 meses, é sacudida por um adulto, provocando lesões cerebrais na mesma.
  • A síndrome da criança espancada "se refere, usualmente, a crianças de baixa idade, que sofreram ferimentos inusitados, fraturas ósseas, queimaduras, ocorridas em épocas diversas, bem como em diferentes etapas e sempre inadequada ou inconsistentemente explicadas pelos pais" (Azevedo & Guerra, 1989)4. O diagnóstico da síndrome pode ser feito por meio de evidências clínicas e radiológicas das lesões.
  • Maus-tratos psicológicos – são todas as formas de desrespeito, discriminação, rejeição, depreciação, cobranças ou punição exageradas, assim como a utilização da criança ou do adolescente com o objetivo de atender às necessidades dos adultos.Essas formas de maus-tratos psicológicos podem causar danos ao desenvolvimento da criança em seus vários aspectos, a saber, psíquicos, físicos e sociais. Essa violência está, em geral, embutida nos outros tipos de maus-tratos e dificilmente é evidenciada.
  • Negligência – é o ato de omissão do responsável pela criança ou adolescente em prover as necessidades básicas para o seu crescimento e desenvolvimento (Abrapia, 1997)5. O abandono é considerado a forma extrema de negligência. No Brasil, em virtude das dificuldades socioeconômicas de grande parte da população, deve-se ter cuidado ao se imputar intencionalidade ao evento, questionando com cautela as condições de vida da família envolvida.
  • Abuso sexual – é todo ato ou jogo sexual, hetero ou homossexual, cujo agressor está em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado que a criança ou adolescente. Tem por intenção estimulá-la sexualmente ou utilizá-la para obter satisfação sexual. Estas práticas eróticas e sexuais são impostas à criança ou ao adolescente pela violência física, por ameaças ou pela indução de sua vontade. Podem variar desde atos em que não exista contato sexual, como o voyeurismo e o exibicionismo, aos diferentes tipos de atos com contatos sexuais com ou sem penetração. Engloba ainda a exploração sexual comercial e a pornografia (Deslandes, 1994)3.
  • Síndrome de Munchausen por procuração – é aquela em que a criança ou o adolescente é levado para cuidados médicos por apresentar sinais ou sintomas inventados ou provocados pelos seus responsáveis. Como consequência, são realizados procedimentos invasivos como exames de sangue, uso de medicamentos, ingestão forçada de líquidos, chegando a internações e cirurgias desnecessárias.



  • PREVENÇÃO E ATENÇÃO

    A partir, portanto, do conhecimento dos vários tipos de maus-tratos, os profissionais envolvidos com a população infanto-juvenil poderão adotar medidas clínicas e legais eficazes de prevenção e atendimento. Tanto nos setores governamentais, como Saúde, Educação, Assistência Social, Justiça e outros, como os parlamentares das três esferas de governo, os operadores dos direitos (conselhos de direitos e tutelares), a mídia, o terceiro setor e a sociedade como um todo, representada pelas famílias e comunidades, estarão aptos a participar no sentido da prevenção e adequado encaminhamento dos casos, formando uma grande articulação interssetorial e interdisciplinar.

    Prevenção

    A prevenção da violência se faz em três níveis, Os níveis primário, secundário e terciário têm características próprias, a saber:

  • Nível primário: contempla a sensibilização dos profissionais no sentido da atuação preventiva junto às pessoas e comunidade. A prevenção primária prevê a promoção da melhoria das condições de vida dos indivíduos, as discussões ampliadas nas diversas instituições, famílias, mídia sobre o tema da violência contra crianças e adolescentes, sempre com o intuito de trazer à tona o conhecimento sobre os maus-tratos, com vistas ao seu reconhecimento precoce, atendimento e prevenção de novos casos. Ao mesmo tempo, a prevenção primária deve incluir a promoção da cidadania da população infanto-juvenil, dando-lhe a oportunidade de sua livre expressão e respeito às opiniões e informações por ela emitidas.
  • Nível secundário: propõe-se a identificar os casos, seu diagnóstico e intervenção precoces. As atividades de prevenção da violência têm que abranger os aspectos sociais, físicos e mentais, não se reduzindo à vítima individualmente, assim como atuar em articulação com os outros setores, como a Educação, a Assistência Social, a Justiça, entre outros. Neste nível de prevenção, é importante suspeitar de maus-tratos quando o profissional se deparar com contradições entre o achado clínico e a história contada pelos pais/responsáveis. A equipe multidisciplinar tem papel fundamental nessas ocasiões, com seus olhares diferenciados na avaliação da vítima.
  • Nível terciário: refere-se ao atendimento em serviços hospitalares e institucionais, configurando-se em ações de maior complexidade no atendimento. A adequada organização dos serviços de Saúde é fundamental para a funcionalidade da atuação frente aos casos de violência.


  • A campanha permanente da Sociedade Brasileira de Pediatria - SBP

    De acordo com os conceitos referidos e em consonância com a missão da SBP de promover a vida saudável, em todos os aspectos, de crianças e adolescentes, foi criada a Campanha Permanente de Prevenção da Violência contra Crianças e Adolescentes com o lema "Violência é covardia – as marcas ficam na sociedade".

    Ao longo dos últimos 10 anos, têm sido distribuídos por todo o País cartazes, volantes, publicações – Guia de atuação frente a maus-tratos, Livro das Famílias, além das participações em eventos discorrendo sobre o tema nas várias mídias, etc.

    O coletivo dos profissionais da área da saúde, desde aqueles em período de especialização até o mais experiente e titulado, deve se incorporar ao grupo que atua na prevenção da violência e na promoção de uma vida saudável, tanto física quanto psíquica e social.


    REFERÊNCIAS

    1. Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório mundial sobre a violência e saúde, s.l. 2002.

    2. Minayo MC, Assis S. Violência e saúde na infância e adolescência: uma agenda de investigação estratégica. Saúde em Debate. 1993;39:58-63.

    3. Deslandes SF. Prevenir a violência – um desafio para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ENSP/CLAVES; 1994.

    4. Azevedo MA, Guerra VNA. Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu Editora; 1989.

    5. Associação brasileira multi-profissional de proteção à infância a adolescência. (ABRAPIA). Abuso sexual contra crianças e adolescentes: proteção e prevenção - guia de orientação para educadores. Petrópolis: Autores & Agentes & Associados; 1997.










    Assessora de campanhas da SBP. Pediatra com área de atuação em Adolescência e Saúde Pública.