ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



TOP - Ano 2019 - Volume 9 - Número 2

Luto em pediatria: tecendo palavras no vazio das ausências

Pediatrics mourning: writing words in the void

RESUMO

O luto é uma experiência radicalmente dolorosa, atrelado não somente à morte, mas também à perdas vivenciadas durante toda a vida. As perdas decorrentes do adoecimento são variadas, fazendo do luto um processo psíquico importante na compreensão dos impactos emocionais nas crianças, nos adolescentes, nos familiares e nos profissionais de saúde. Tendo em vista a relevância do tema para o aprimoramento do cuidado do sofrimento humano, este texto objetiva o aprofundamento dos aspectos psíquicos do conceito de luto, tendo em vista a concepção psicanalítica. Para tal, utilizaremos como recurso metodológico fragmentos de narrativas que ilustram as construções psíquicas dos pacientes diante do adoecimento e da morte. Percebemos que, a partir da escuta e do testemunho de tal sofrimento, é possível o tratamento da dor pelo sujeito, na medida em que ele constrói ficções singulares. O sofrimento dos pacientes e a impotência diante da morte são fontes de angústia para o profissional de saúde. Acompanhar o trabalho de luto implica em evitar dois extremos: de um lado o desaparecimento do sujeito desejante e, de outro, a condenação desses sujeitos ao desamparo e à solidão. Encontrar uma boa medida para o cuidado parece ser um desafio para os profissionais, e exige constante autocuidado.

Palavras-chave: Luto, Criança, Adolescente, Cuidados Paliativos, Obras de ficção.

ABSTRACT

Mourning is a radically painful experience connected to death or loss. The types of loss tied to disease vary significantly and make mourning a relevant psychical process in the roster of emotional impacts endured by children, adolescents, families, and health care providers. Given the relevance of this topic in the care of grieving individuals, this paper aims to discuss the psychical aspects of mourning from the standpoint of psychoanalysis. The method chosen to look into mourning considers fragments of the narratives used by grieving individuals faced with disease and death. We found that by listening to and witnessing their suffering we can help them address their pain as they build their own unique fictions around it. Patient suffering and helplessness before death are sources of distress to health care providers. Following one's work of mourning implies in avoiding two extremes: on one end, the demise of a wishing subject; and on the other end, the condemnation of grieving subjects to helplessness and solitude. Finding a good measure of care seems to be a relevant challenge to health care providers, and one that calls for constant self-care.

Keywords: Bereavement, Child, Adolescent, Palliative Care, Fictional work.


INTRODUÇÃO


"Mas há um buraco onde havia o olhar dele. Percebo que envelhecer e perder é também aprender a andar por aí com o corpo esburacado pelos olhares que a gente não tem. Passamos a ser carregados de ausências (...)"1.


Eis que diante da segunda parada cardiorrespiratória, a mãe, mesmo hesitante, consegue, por meio de um gesto sutil, sinalizar que é preciso deixá-lo ir. Não quer que ele sofra. É preciso continuar paliando a sua dor! A mãe então se aconchega ao seu lado, colocando uma música de ninar. Davi, Davi, não tenha medo, Jesus está aqui! Canta em seu ouvido, abraça-o, com coração apertado. Afinal, seu sentimento de dever cumprido não é capaz de minimizar a dor de não conseguir sonhar e viver na ausência do filho. De malas prontas, de uma estadia de doze meses no hospital, vai embora de "mãos vazias"! As pessoas dizem que é somente o tempo, a dor passa! Inconformada, pensa nos sonhos interditados, na luta perdida. Poderia ela viver, apesar de um filho morto? Poderia ela desejar viver o que não pudera até então? Sem saber como viver, sem encontrar o caminho de casa, vai-se embora. É preciso continuar, mesmo sem saber como!

Cenas como essas são rotineiras em uma unidade pediátrica de um hospital de alta complexidade. Em meio à luta diária pela vida, às corridas pelo corredor, as risadas tímidas com as brincadeiras dos palhaços ou jogos de Uno, a morte, para alguns, parece ser um visitante inesperado e indesejado. O vazio da perda de uma pessoa amada é doloroso não somente para quem a sofre, mas também para quem a presencia. O adoecimento promove uma quebra na linha de vida, invade o sujeito, atualiza perdas e convoca-o a utilizar recursos psíquicos para construir um novo sentido para a existência. As perdas vivenciadas em meio ao adoecimento são variadas, fazendo do luto um processo psíquico importante na compreensão dos impactos emocionais nas crianças, nos adolescentes, nos familiares e nos profissionais de saúde.

Tendo em vista a relevância do tema para o aprimoramento do cuidado com o sofrimento humano, tarefa tal que perpassa o trabalho dos profissionais de saúde, este texto objetiva o aprofundamento dos aspectos psíquicos do conceito de luto, tendo em vista a concepção psicanalítica. Para tal, utilizaremos como recurso metodológico a apresentação de vinhetas clínicas, pontos específicos de um caso maior, preservando a identidade do paciente, tendo como foco apenas suas construções psíquicas2.

Nas trilhas do luto: a trama das ressignificações


"Eu não sentia nada. Só uma transformação pesável. Muita coisa importante falta nome"3.


O luto é uma experiência radicalmente dolorosa, pois envolve um processo de ressignificação, que pressupõe renúncias, recomeços. Envolve reações não somente no psiquismo, mas também manifestações variadas no âmbito físico, cognitivo e comportamental. Dessa maneira, para além da tristeza, solidão, ausência de sentido da vida, podem irromper sintomas físicos, tais como dor no peito, fraqueza, além de alterações na memória, confusão, alucinações, além de isolamento social, distúrbios do sono, dentre muitos outros4.

Diante de tantos atravessamentos, o luto pode assemelhar-se a um estado patológico, uma vez que aciona defesas psíquicas singulares, tentativas essas que buscam preservar, proteger o sujeito da devastação. Em meio à tentativa de não sucumbir ao aniquilamento ocasionado pelas perdas variadas, o psiquismo apropria-se, assim, de elementos variados, simbólicos e imaginários, nem sempre condizentes com os ditos preceitos sociais que regem as concepções acerca da "normalidade".

Freud, em seu célebre artigo intitulado "Luto e Melancolia", destaca o risco de aproximar o luto de uma situação patológica. Para esse autor, o luto é "uma reação à perda de uma pessoa ou de uma abstração que ocupa um lugar, como a pátria, a liberdade, um ideal etc"5. Trata-se assim, de uma perda em um sentido amplo, não somente concreta, mas também simbólica. Quando se perde alguém ou algo importante, não se trata apenas da ausência concreta, mas sim do que o objeto representa e é apropriado internamente, como parte de si.

A vida impõe perdas sucessivas. Desde o nascimento, a criança precisa lidar com elas, vivenciando-as em fases distintas, tais como: o desmame, a perda dos dentes, a perda do corpo infantil e a irrupção da puberdade, vivenciada pelos adolescentes, além da perda gradativa da juventude e a degradação do corpo, no processo de envelhecimento. Tais experiências podem perpassar as dimensões física, social e familiar. Diante das perdas, o sujeito sente-se desamparado, resgatando recursos psíquicos construídos ao longo da vida.

Desse modo, se as perdas são dolorosas em momentos variados da vida humana, não podemos deixar de destacar que elas são também constitutivas do ponto de vista psíquico. A vivência das frustrações do bebê, marcada pelos momentos de gap, ou seja, em que a mãe falta, ausentando-se por mais tempo, por exemplo, permite que o bebê apareça enquanto sujeito desejante, aprendendo a fazer uso de seus recursos psíquicos para lidar com a falta, a ausência materna6.

Na concepção freudiana, o luto compreende um trabalho dispendioso, exigindo do psiquismo um ensimesmamento, ou seja, um retraimento do sujeito. O sujeito fecha-se para o mundo externo, concentrando todas suas energias em uma "exclusiva dedicação ao luto"5. Ao retirar sua energia, sua libido1, do mundo externo, ele busca manter vivo o objeto perdido internamente. Esse fechamento em si e o apego ao objeto perdido pode chegar a níveis variados, podendo apresentar-se também em fenômenos psicopatológicos como alucinações e delírios.

Nesse ponto, podemos considerar a experiência de um sujeito que, após a perda de uma pessoa querida, insiste em ligar sucessivas vezes para seu número de telefone, na esperança que, em algum momento, possa escutar sua voz. Tal comportamento pode parecer estranho e descompensado, porém demonstra uma tentativa de confirmação de que o objeto ainda está vivo e tudo não passa de um pesadelo ou ilusão. Contudo, a frustração de não ser atendido inicia uma compulsão a tentativas outras, no desejo de que, em algum momento, a realidade possa corroborar, assim como no mundo interno, a vida do objeto morto.

Assim, se no mundo interno das lembranças é possível manter vivo o objeto perdido, a rotina da vida, o vazio do quarto, a ausência na mesa de jantar, assinala, de forma radical e insistente, a perda, exigindo um trabalho de retirada da libido do objeto perdido para que, assim, possa ser disponibilizada para novos investimentos, realizando novos laços. É necessário separar-se do objeto de amor que não existe mais.

É como se


a cada uma das recordações e expectativas que mostram a libido ligada ao objeto perdido, a realidade traz o veredicto de que o objeto não existe mais, e o Eu, como que posto diante das questões de partilhar ou não esse destino, é convencido pela soma das satisfações narcísicas em estar vivo, a romper seu vínculo com o objeto eliminado5.


A resposta à solicitação da realidade não acontece imediatamente, sendo cumprida aos poucos, mediante a aplicação de tempo e de energia, o que corrobora a dificuldade em se padronizar um tempo "normal" do processo de luto, já que é um processo singular, sofrendo variações de acordo com a história de cada sujeito, forma de organização psíquica e o lugar ocupado pelo objeto perdido em sua vida.

O sujeito vê-se, assim, em um dilema importante: deixar ir embora ou perder-se nos escombros? Essa travessia não é simples, pois reatualiza vivências de outras de perdas, resgatando recursos psíquicos singulares, ora construídos ao longo da constituição subjetiva. O processo de luto é frequentemente permeado pela dor, sendo penoso para o sujeito que o vivencia. Reiteram-se, nesse momento, os sentimentos de culpa, ambivalências emocionais, sendo necessária a elaboração da relação construída para que o enlutado possa se autorizar a seguir com a vida, sem que isso represente o esquecimento, o aniquilamento do objeto perdido. Pelas vias simbólicas, é necessário que o objeto perdido seja (re)apropriado para além de sua vertente concreta. Nas palavras de Cortes & Sirelli, em suma, o processo de luto vai de encontro a esquecer. Ele está diretamente ligado à apropriação da dor da ausência, como uma via para ressignificação e possibilidade de seguir em frente, apesar da falta. O sujeito se torna outro a partir dessa experiência, através dessa perda7.

Ao final do processo de luto, o sujeito não se desfaz do objeto perdido, não o esquece, apropria-se dele, naquilo que ele marca, toca, ensina. Desse modo, se ele se mantém vivo como efeito de transmissão de algo, não se torna mais necessária sua presença concreta. Freud, então, ensina que não basta que o objeto desapareça para que dele nos separemos. É necessário um verdadeiro trabalho psíquico, o "trabalho do luto" - tarefa lenta e dolorosa através da qual o eu2 não só renuncia ao objeto, dele se desligando pulsionalmente, como se transforma, se refaz no jogo com o objeto. Toda a dor vivenciada nesse processo é um sinal de que um importante trabalho subjetivo está em marcha, operando a perda do objeto e implicando uma remodelagem do eu, integrando traços do objeto perdido. O sujeito autoriza-se, assim, a seguir, carregando consigo o objeto de amor. Não é mais o mesmo, uma vez que se reconstruiu, nesse processo, reencontrando um novo sentido para sua existência.

A criança, os pais e o adolescente: nas trilhas das "mortes", das palavras e das ficções


"Todo abismo é navegável a barquinhos de papel"8.


Em uma unidade pediátrica de um hospital de alta complexidade, deparamo-nos com doenças variadas, muitas delas, ameaçadoras de vida. As crianças e adolescentes, assim, vivenciam, desde muito cedo, perdas, associadas não somente à morte, mas também a renúncias importantes relacionadas à enfermidade e ao seu tratamento, tais como: perda de partes do corpo, alterações na imagem corporal, perda de funcionalidade, de capacidades básicas de sobrevivência como comer ou respirar por si mesmo. O adoecimento gera uma ruptura na vida, definindo um antes e um depois, reatualizando a experiência de desamparo vivida pelo sujeito em sua constituição. Tal experiência está eminentemente ligada à situações traumáticas que se repetem ao longo da vida, sob variadas versões. Conceito importante na teoria psicanalítica, o desamparo está associado a situações


em que dependemos de outrem para sobreviver, para viver melhor ou, ao contrário, situações nas quais o sujeito e o outro são impotentes para deterem o risco de morte ou sofrimento9.


Desse modo, a chegada do diagnóstico, as hospitalizações e a presença de sucessivos procedimentos dolorosos, a convivência constante com a morte de outros pacientes, desnudam o desamparo primordial da existência humana. A deterioração do corpo e o olhar dos pais diante de tamanho sofrimento evidenciam, até mesmo para a criança pequena, a sua fragilidade e a possibilidade de morte. É surpreendente como os pequenos pacientes conseguem apreender e apropriar-se de sua vivência de adoecimento, até mesmo quando o silêncio rodeia e a palavra fica distante. Quando as crianças são escutadas, em sua singularidade por meio de recursos como o brincar, é possível perceber como elas compreendem e expressam seu sofrimento, encontrando estratégias/soluções para lidar com tantas perdas.

Em uma sessão lúdica, uma criança de cinco anos, durante o atendimento psicológico, representa a cena de uma tempestade intensa em que os piratas, no navio, desesperam-se ao serem arrastados pelo mar. Uma luta inicia-se, e é preciso pedir ajuda: "especialistas em tempestades" para que dêem a chance para que os piratas vivam mais um pouco, já que "a tempestade sempre volta". Cenas repetidas de bonecos doentes, muitos em risco de morte, e a tentativa de salvá-los permeiam as estórias contadas pelas crianças em seu brincar, presentes não somente em suas sessões de análise, mas em sua rotina, à vista de todos, em sua forma peculiar de se comunicar.

Essas crianças falam de perdas e, a partir de seus recursos psíquicos, recriam em suas fantasias novas formas de viverem e significarem a existência, apesar da doença. Demarcam o caráter irreversível de algumas dessas perdas, corroborando seu luto, aspecto evidenciado por uma criança de nove anos: "O médico disse que meu cabelo vai nascer de novo, mas nunca, nunca vai ser igual era antes. Antes ele era enroladinho, agora está liso." Nesse caso, a perda do cabelo metaforiza e evidencia a perda de algo maior: de uma parte de si, uma parte do que se era. Desse modo, é preciso reconstruir uma forma de ser e de viver, o que requer tempo e energia para viver a dor de tantas perdas.

Para seguir, é preciso viver o luto por tantas "mortes", perdas variadas que perpassam a vida, atravessada pelo adoecimento. Conforme as palavras de Brun, "a criança ameaçada de morte se sente então investida de uma dupla tarefa: enfrentar o perigo com seus próprios meios e acompanhar a mãe para lhes permitir suportar seu desaparecimento"10. Em meio à devastação dos pais diante da iminência de sua morte, a criança, muitas vezes, busca garantias de que eles continuarão a viver, mesmo sem a sua presença.

Gabriela, criança de nove anos, após vivências de tantas perdas (falecimento de sua mãe) e a iminência de sua morte, orienta seu pai: "gostaria muito de poder ensinar minha irmãzinha a andar. Mas quero que você ensine ela a caminhar, se eu não estiver aqui. Não deixe também de fazer o bolo de aniversário e cantar parabéns para ela." Mesmo tão pequena, Gabriela conhecia a dor de perder quem se ama. Se a criança vê nos olhos dos pais a aproximação de sua morte, mesmo sem ainda ter a dimensão do que isso representa, ela precisa encontrar formas de lidar com essa angústia sem nome, (re)criando suas ficções, construções acerca do seu desaparecimento. Freud ressalta o quanto o mundo das ficções acalenta o sujeito em seu sofrimento, uma vez que nele pode-se viver uma pluralidade de vidas, morrer e renascer, sem que haja regras e limitações11.

Mateus, cinco anos, diante da sua piora clínica, inicia suas construções acerca da morte, apropriando-se de elementos da religião dos pais, porém, de forma singular. Com os pais e com os médicos não se permitia falar da morte, fazendo, assim, de seu atendimento psicológico o lugar para as suas ficções. Convida a analista a imaginar como seria o céu, destacando sua impressão de ser um lugar bonito, sem dor, em que encontraria seu gatinho Floquinho, agora gordinho e sapeca. Os seus sonhos evidenciavam seu movimento psíquico na construção acerca da morte: "eu estava no céu e sabe qual foi a primeira coisa que fiz quando cheguei lá? Foi dar um abraço tão apertado no Floquinho! Ele ficou até sem ar!". No céu, Floquinho parecia muito bem, estava "até gordinho"; ele que sempre foi "uma tripinha". Em meio a ausência de representação acerca da morte, a fantasia, no âmbito imaginário, parece ser uma saída, uma forma de acalentar a travessia, a partir de uma promessa de paz e serenidade.

Os pais, em meio a revolta e a desilusão, tentam suportar o vazio da morte prematura de seus filhos. Tentam, mesmo que os olhos denunciem, esconder sua dor e desespero diante da impossibilidade de cura da doença e a possibilidade de perda dos filhos. Afinal, conforme as palavras de Freud: "as coisas devem ser melhores para a criança do que foram para seus pais, ela não deve estar sujeita às necessidades que reconhecemos como dominantes na vida"12. A morte da criança e do adolescente parece subverter a ordem natural da vida. Tal como uma jovem mãe, Maria, após a morte de seu filho Artur (três anos) anuncia: "Não tem sentido! Como que pode uma criança tão pequena sofrer tanto e viver tão pouco? Não entendo!". Em meio à ausência de sentido para a experiência, os pais precisam construir um saber que os possibilitem carregar consigo algo do objeto perdido. O medo do esquecimento reativa o sentimento de culpa: "Comecei a trabalhar e estudar, mas parei! Estranho! Tenho medo de M. achar que estou deixando ele prá trás, e achar que vou esquecê-lo. Deu-me uma angústia, aí saí."

As lembranças do pequeno Artur assinalavam a impossibilidade de esquecê-lo e de ser a mesma. "Eu aprendi tanto com ele! Me fez amadurecer! Não queria me ver triste! Seus beijos quando eu estava triste. Não dá para deixá-lo para trás! Hoje tirei o fone de ouvido e foi bom!". A aproximação do mundo externo permitia-lhe perceber que, apesar da ausência concreta de Artur, ele estava presente.

Na adolescência, a experiência do adoecimento e do morrer, encontram especificidades, tendo em vista o momento psíquico vivido. Lacadée, psicanalista francês, acentua as peculiaridades do momento da adolescência. Acentua que,


o jovem, em busca tanto de tutela quanto de autonomia, experimenta, no melhor e no pior, seu status de sujeito. Ele testa a fronteira entre o fora e o dentro, joga com as proibições sociais, estuda seu lugar no mundo em que ainda não se reconhece por completo. Incompreensível para si e para os outros, inscreve experiência, indizível na maior parte das vezes, na ambivalência e provocação13.


A adolescência é marcada, assim, por uma travessia, demarcada pelo exílio e pela solidão, evidenciando lutos variados: pelos pais idealizados da infância, pelo corpo infantil, pelo papel e identidade infantil. A doença vem como contingência para o trabalho do adolescer. O encontro com a finitude do mundo reconhecido gera rupturas e convoca o sujeito à busca de novos significados sob pena de não existir. As perdas das referências identificatórias geradas pelo adoecimento faz com que o adolescente se questione sobre a possibilidade e a alteridade de seu desejo, havendo risco de tornar objeto dos pais e profissionais.

Quando a única possibilidade de manter a vida coincide radicalmente com a submissão ao saber médico, a despeito de seu desejo, o adolescente vê-se diante de um impasse: recuar, desistir ou encontrar um ponto limite em que se possa viver e também decidir? Há aí uma possibilidade de vivificação do sujeito onde ele pode se perguntar sobre o seu desejo a partir da contingência do saber do outro e dos limites da existência: Quem sou eu, esse sujeito adolescente cheio de limitações, ameaçado pela morte? O que é importante para mim? O que eu quero? O que o outro espera de mim? Até que ponto devo responder a ele? Alice, adolescente de 13 anos, denuncia:


"Eu não tenho vida! Vivo neste hospital. Toda semana estou aqui para tomar transfusão, quando não fico internada, né? Meus pais não me deixam sair, com medo de eu sangrar. Não me deixam sair com ninguém, porque é muita responsabilidade para me levar: ninguém me chama! Mas tem um dia que é mais seguro sair: um dia após a transfusão. Mas sempre acontece alguma coisa e quando dá certo, minha mãe vai junto. Me diz: como vou conversar com os meninos e beijar os meninos com minha mãe agarrada em mim? Já é tão difícil achar um menino que aceite minha doença: eu vivo internada! Isso não é vida de adolescente!".


A vivência das experiências adolescentes em meio ao adoecimento parece ser um desafio, pois nem sempre a margem de escolha é bem definida, ficando o adolescente à deriva, em sua luta pela sobrevivência. O encontro com a finitude da vida aponta para a ausência de potência para vir a ser, situação diametralmente oposta à autorização de um sujeito de desejo, que corresponde ao trabalho da adolescência. A separação simbólica dos pais, operação fundamental da adolescência, torna-se uma separação real diante da morte. O sujeito adolescente fica desamparado e vulnerável à ambiguidade dos pais e profissionais de saúde, que se perdem em atitudes de proteção e da concessão de espaço subjetivo para o adolescente vir a ser.

Resta a ele encontrar estratégias para levar "uma vida de adolescente", seja por meio de transgressões ao tratamento ou a formação de grupos e relacionamentos afetivos em meio a seus pares, no contexto do hospital. O desejo imenso de viver e de experimentação levam alguns adolescentes a vivenciarem a proximidade da morte com raiva e revolta. Tal como um jovem de 17 anos que solicita à sua médica paliativista que "dê um jeito de em sua perna", acometida pelo osteossarcoma, mesmo que "ficasse como um graveto", pois precisava "viver suas tretas". O tempo parecia-lhe curto por demais para poder viver tudo o que desejava, evidenciando a impotência da equipe diante da proximidade da morte.

Alice, treze anos, após a progressão de doença e a piora clínica, decide planejar sua festa de quinze anos. Mesmo diante da impossibilidade de vivenciá-la na realidade externa e após recusar a proposta da equipe de "adiantar sua comemoração", a adolescente assinala: "Estou com medo! Medo de morrer! Já falei para minha mãe parar de ficar com aquela cara! Minha irmã pelo menos é mais alegre! Mas vamos continuar a planejar minha festa. Por que não tenho tempo! Não gosto de ficar enrolando, esperando!". Suas sessões eram marcadas pela presença da morte, a partir de seu medo, sua preocupação com a mãe, porém, para suportar morrer, ela precisava falar da vida, vivenciando, mesmo que internamente, a partir de seu planejamento, a magia de sua "transformação em mocinha". Não se tratava apenas de ter uma festa na realidade, mas de desejar àquela que demarcava o feminino em sua adolescência.

Planejou, sem que as outras pessoas soubessem, em suas sessões, cada detalhe: a escolha de dois vestidos, a trilha sonora, o bolo, a lista de convidados, o ator que gostaria de dançar a valsa. Mesmo na fantasia, a doença estava presente, já que até mesmo a valsa não poderia estender-se por muito tempo, "por causa do cansaço da doença". Viveu cada detalhe de sua festa, sorrindo, cantando as músicas escolhidas e concluindo a lista de convidados, um dia antes de morrer: "Agora está tudo pronto! Tudo certo! É só esperar!".

Diante do abismo, do trauma e das dores da vida, o sujeito busca saídas, salvar-se a partir de construções singulares, ora chamada de realidade psíquica. Trata-se da verdade de cada sujeito, coerente internamente, tendo em vista o desejo e a fantasia, mesmo que se distancie dos princípios da realidade externa14. Alice sabia de seu curto período de vida, a partir das feridas em seu corpo e do olhar de sua mãe; não havia tempo para o mundo externo, mas planejar não seria também uma forma de viver internamente? Suas ficções a sustentaram psiquicamente, protegendo-a da devastação diante da experiência do morrer. Afinal, conforme as palavras de Clarice Lispector, "Haverá outro modo de salvar-se? Senão o de criar as próprias realidades?"15.

O Cuidado com o sofrimento humano: a presença e o testemunho


"Cada um rema sozinho uma canoa que navega um rio diferente, mesmo parecendo que está pertinho"3.


Em meio ao adoecimento e à experiência do morrer, inúmeras são as "dores", não somente no âmbito do corpo. São as dores da alma! Conforme uma paciente idosa denuncia: "A alma dói. E a vida fica sem cor! E quando a gente vai melhorando, vai voltando a vontade de comer, de sair, de viver." Desse modo, podemos nos perguntar: O que significa preservar a vida, objetivo do Cuidado Paliativo? Uma filosofia do cuidado parece ser um caminho ético: fazer todo o possível para que o paciente seja ele mesmo, em sua essência, em seu senso de identidade, tendo em vista o significado que construiu para sua vida, o que se considera dignidade em seu processo de morrer.

Tarefa nem um pouco simples, uma vez que ao aproximarmo-nos do sofrimento humano, corremos o risco de obturá-lo oferecendo um cuidado invasivo, tentando ofertar ao paciente aquilo que gostaríamos que fosse feito conosco. Com tal atitude paternalista, agressiva por sinal, fazemos o sujeito desaparecer, mortificando-o, impedindo que ele apareça como desejante, em sua forma autêntica. Se o sofrimento dos pacientes pode levar a um excesso no cuidado, o oposto também pode ocorrer: a impotência diante da dor do outro pode levar ao fechamento de si, nas palavras do psicanalista austríaco Sándor Ferenczi, a uma "indiferença desautorizadora"16. Desse modo, o sujeito adoecido "ao invés de encontrar uma pessoa sensível capaz de testemunhar seu sofrimento, o sujeito encontra a indiferença, ou seja, o abandono traumático que desautoriza seu testemunho"17. Os profissionais de saúde, nesse caso, tornam-se incapazes de escutar o indizível da dor do doente, já que o estado de impotência o angustia e paralisa.

Encontrar uma forma de acolher, sem invadir, sem desautorizar, parece ser um desafio constante para quem se dispõe a cuidar do outro, de forma holística. Quando o paciente é uma criança ou um adolescente, esses limites parecem ser difíceis de sustentar o tempo todo, exigindo um autocuidado constante dos profissionais. A proximidade da morte dos pequenos pacientes e dos adolescentes leva, quem a presencia, a um estado de enlutamento. Otávio, criança de nove anos, osteossarcoma no braço, em ulceração, representa em sua pintura a aproximação de sua morte. Um imperioso vulcão, prestes a entrar em erupção, "matando tudo ao seu redor". Em torno de tal protuberância, uma paisagem belíssima, representada por plantas frutíferas, uma tarde alegre de sol. Após entregar sua obra de arte à mãe, expõe-a na enfermaria.

O incômodo e a angústia diante de tal pintura eram marcantes dentre seus cuidadores e profissionais de saúde. O vulcão e a iminência da erupção, representada pela fumaça saindo de sua cratera, impediam-os de ver a beleza e a leveza daquela bela paisagem. Diante dessa contemplação da obra de arte de Otávio, não podemos deixar de rememorar o passeio de Freud e seu amigo poeta por uma rica paisagem de verão da Europa, descrito em seu texto "A transitoriedade"18. A paisagem, por mais bela que fosse, perdia seu encanto junto ao amigo, pelo efeito de transitoriedade, uma vez que, tão logo o inverno chegasse, ela sucumbiria. Freud associa essa descrença do poeta frente à fragilidade do belo a duas tendências da psique: "doloroso cansaço" ou "rebelião contra o fato consumado".

Como se


imaginar que essa beleza é transitória deu àqueles seres sensíveis um gosto antecipado de luto pela sua ruína, e como a psique recua instintivamente diante de tudo que é doloroso, eles sentiram seu gozo pela beleza prejudicado pelo pensamento de sua transitoriedade (grifos meus)18.


Para além do vulcão ali no canto, marca da morte iminente, havia tanta vida! Afinal, conforme Freud acentua: "se o valor de tudo quanto é belo e perfeito é determinado somente por seu significado para a nossa vida emocional, não precisa sobreviver a ela e, portanto independe da duração absoluta"18. Desse modo, os profissionais de saúde lidam com um desafio constante. Afinal, como aproximar-se da morte de uma criança sem tornar-se cego, a ponto de não ver o sol e as nuvens do quadro de Otávio, e sem ser capaz de escutar as infinitas estórias, ficções construídas pelas crianças e adolescentes em sua forma autêntica de viver e desejar, apesar da morte?

Mesmo diante do "doloroso cansaço" que permeia o fazer do profissional de saúde, não podemos deixar de sustentar a aposta no sujeito. Nas palavras de Lacadée, "a singularidade só pode ser ouvida, se deixamos a cada um a escolha de dizer com suas palavras o que está acontecendo em sua vida. Trata-se, portanto, de inventar um lugar onde o sujeito possa entrar em contato com o que constitui seu impasse"13. Esse parece ser o desafio para quem se propõe a escutar essas crianças e adolescentes, que, por acaso, estão morrendo, porém, vivos em sua plenitude: desejantes.



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18. Freud S. A Transitoriedade. In: Obras Completas. Tradução de: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras; 2010.










1. Psicóloga, Psicanalista. Mestre em Psicologia pela UFMG. Especializanda em Cuidados Paliativos pelas Ciências Médicas, MG. Atua nas áreas de Pediatria, Cuidado Paliativo Pediátrico. Preceptora da Residência em Psicologia, Hospital das Clínicas UFMG/EBSERH - Belo Horizonte/MG, Brasil
2. Médica. Mestre em Saúde da Criança pela UFMG. Especialista em Medicina Paliativa (AMB) e em Medicina do Adolescente (UFMG). Membro do Grupo de Cuidado Paliativo Pediátrico (HC/UFMG) e da Saúde do adolescente, Hospital das Clínicas (UFMG/EBSERH) - Belo Horizonte/MG, Brasil

Endereço para correspondência:
Alessandra Aguiar Vieira
Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais
Av. Prof. Alfredo Balena, nº 110, Santa Efigênia
Belo Horizonte - MG. Brasil. CEP: 30130-100
E-mail: ale.aguiarvieira@yahoo.com.br

Data de Submissão: 11/06/2019
Data de Aprovação: 17/06/2019

1. Libido é um conceito importante dentro da teoria psicanalítica, referindo-se ao quantum de energia que põe em movimento o aparelho psíquico (Laplanche & Pontalis, 2003; p. 266).
2. O eu é uma das instâncias psíquicas, na qual Freud (1920), em sua segunda teoria, subdivide o aparelho psíquico. Relaciona-se ao polo defensivo da personalidade, em que mediante a percepção de um afeto desagradável, põe em ação mecanismos de defesa (Laplanche & Pontalis, 2003; p. 132).