ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2019 - Volume 9 - Número 3

A face oculta da mononucleose: Relato de 2 casos atípicos envolvendo a síndrome clínica

The hidden face of mononucleosis: report of two atypical cases involving this clinical syndrome

RESUMO

O vírus Epstein Barr (EBV) é um agente infeccioso comum na população pediátrica e responsável por infecções pouco sintomáticas e autolimitadas. Contudo, em algumas situações, o vírus se apresenta com manifestações atípicas e desfechos graves. Por isso, relatamos um caso de hepatite e outro de linfo-histiocitose hemofagocítica, ambos relacionados à infecção por EBV, acompanhados na Unidade Pediátrica do Hospital São Lucas do Grupo Santa Casa de Belo Horizonte, seguido de uma revisão bibliográfica sobre os temas, a fim de alertar o pediatra acerca da importância do reconhecimento precoce dessas condições clínicas.

Palavras-chave: infecções por vírus Epstein-Barr, mononucleose infecciosa, hepatite, linfo-histiocitose hemofagocítica.

ABSTRACT

The Epstein Barr virus (EBV) is a common infectious agent in the pediatric population, and one responsible for infections that are not symptomatic and are self-limiting. However, in some situations, the virus presents with atypical manifestations and severe outcomes. Therefore, we report one case of hepatitis and another case of hemophagocytic lymphohistiocytosis, both related to EBV infection, accompanied at the Pediatric Unit of the Santa Casa Hospital of the Santa Casa Group of Belo Horizonte, followed by a literature review on the topics, in order to alert pediatricians about the importance of early recognition of these clinical conditions.

Keywords: Epstein-Barr virus infections, infectious mononucleosis, hepatitis, lymphohistiocytosis, hemophagocytic.


INTRODUÇÃO

O vírus Epstein Barr (EBV) é um agente infeccioso de distribuição mundial, encontrado em aproximadamente 90% da população com menos de 20 anos1-3. Trata-se de um vírus de DNA pertencente à família do herpes, cuja transmissão ocorre por meio da saliva1,4. Inicialmente, o vírus penetra nas células da nasofaringe e orofaringe, ocasionando viremia, e infecta os linfócitos B presentes no sistema linforeticulonodular, onde se replicará, gerando linfonodomegalia cervical em 80-100% casos, esplenomegalia em até 75% dos casos e hepatomegalia em menos de 25% dos pacientes.

Durante a infância, principalmente nos menores de 5 anos, a infecção pelo EBV é oligossintomática, com sintomas triviais respiratórios e gastrointestinais. Contudo, na adolescência, 30-50% dos pacientes manifestam a síndrome clínica mononucleose infecciosa (MI), caracterizada por febre, linfadenopatia e faringite2,5,6. Já o acometimento sistêmico e a severidade da infecção estão relacionados com a resposta imunológica induzida pelo vírus8.

O diagnóstico tem como base o exame clínico e achados laboratoriais que incluem: hemograma com leucocitose e linfocitose, plaquetopenia; aumento das transaminases. O aparecimento dos anticorpos contra o capsídeo viral IgG coincide com o surgimento dos sintomas e permanece positivo ao longo da vida, enquanto o IgM nem sempre é positivo na infecção primária. Quando positivos, podem desaparecer em algumas semanas6,9. Por fim, a detecção do DNA do vírus pela reação de cadeia de polimerase (PCR) no soro é um bom indicador de infecção ativa.

O manejo da MI é suportivo, uma vez que se trata de condição autolimitada. Contudo, a MI tem sido associada a manifestações atípicas e desfechos graves.

Em razão disso, relatamos dois casos acompanhados na Unidade Pediátrica do Hospital São Lucas do Grupo Santa Casa de Belo Horizonte entre 2016 e 2017, seguido de revisão bibliográfica em base de dados PubMed, a fim de atentarmos para as manifestações ocultas relacionadas à infecção pelo EBV, alertando o pediatra que o reconhecimento precoce dessas condições interfere na morbimortalidade dos pacientes.


CASOS CLÍNICOS

Caso 1

Paciente de 4 anos, sexo feminino, admitida com história de dor abdominal de 5 dias de evolução associada a vômitos e um pico febril isolado. Ao exame, apresentava-se com linfonodomegalia cervical e hipertrofia amigdaliana sem exsudato, abdome distendido com hepatomegalia (6cm do RCD). Revisão laboratorial identificou leucocitose com desvio e linfocitose (LG 20.800, 3% bastão, 57% linfócitos), aumento das transaminases (TGO 521,TGP 459) e colestase (fosfatase alcalina (FA)763, GGT 120) sem hiperbilirrubinemia (BT 0,79, BD 0,42). Enzimas pancreáticas, coagulograma, albumina, fibrinogênio e função renal adequadas. Ultrassom abdominal mostrou hepatomegalia leve e vesícula biliar com edema parietal.

Paciente permaneceu afebril e estável clinicamente. Contudo, evoluiu com piora das enzimas hepáticas, com 12 dias de quadro, alcançando valores de TGP 684, TGO 918, FA 1393, GGT 788. Sorologias para hepatites A, B e C, HIV e citomegalovírus, todas negativas. Sorologia e PCR para EBV positivos, com esse último apresentando 116.728 cópias, evidenciando quadro de hepatite por EBV. Paciente evoluiu com redução das enzimas hepáticas e da hepatomegalia, mantendo acompanhamento ambulatorial.

Caso 2

Paciente de 7 anos, sexo masculino, admitido com história de febre prolongada de 13 dias, sem melhora após tratamento com azitromicina e amoxicilina + clavulanato para amigdalite. Nessa ocasião, apresentava ainda edema periorbitário, vômitos e dor abdominal intensa. Foi encaminhado ao Centro de Tratamento Intensivo (CTI), onde evoluiu com instabilidade hemodinâmica, necessitando de albumina, aminas e hemocomponentes. Cursou com quadro sugestivo de colite associado à ascite e hepatoesplenomegalia. Foi submetido à laparoscopia, que evidenciou apenas edema de alças e líquido livre na cavidade.

Fez uso de antibioticoterapia de largo espectro sem melhora. Sorologia para EBV com IgM negativo e IgG positivo, mas PCR positivo para o mesmo vírus com 169.174 cópias. Revisão laboratorial mostrava anemia e plaquetopenia, hipofibrinogenemia (195), ferritina aumentada (432,45), sendo diagnosticado, portanto, com linfo-histiocitose hematofagocítica, secundária ao EBV.

O caso foi discutido com equipes de Imunologia e Hematologia Pediátricas e realizado o protocolo HLH-94 com dexametasona, etoposídeo e rituximabe. Devido a retorno de febre e distensão abdominal, suspeitou-se de refratariedade ao tratamento, sendo iniciada imunoglobulina humana. Paciente apresentou melhora dos sintomas. Segue em acompanhamento ambulatorial com Hematologia e Imunologia, na pesquisa de imunodeficiência ainda inconclusiva. Faz uso de imunoglobulina humana, mantendo PCR positivo com carga viral elevada.


DISCUSSÃO

O acometimento hepático em pacientes com infecção pelo EBV é comum, com 80-90% dos casos evidenciando elevação das transaminases em cerca de 2-3 vezes. O aumento das enzimas hepáticas inicia na primeira semana da doença, alcança pico máximo na segunda semana e retorna para níveis normais em até 6 semanas3,5.

Contudo, a disfunção grave do fígado ou da vesícula é rara nos pacientes imunocompetentes1,3. O aumento de transaminases, GGT, FA e hiperbilirrubinemia deve atentar para a ocorrência de hepatite colestática. Nesses casos, a icterícia ocorre em menos de 5% dos pacientes, contribuindo pouco para a suspeição clínica. A paciente do caso 1 apresentava parâmetros indicativos de colestase, contudo, sem aumento das bilirrubinas. A estase biliar em questão pode ainda gerar colecistite aguda acalculosa, resultante da isquemia da parede da vesícula. O achado ultrassonográfico de espessamento da parede da vesícula biliar serve de alerta para a severidade da hepatite colestática1,2,5.

A explicação para a estagnação do fluxo biliar resulta da liberação de citocinas pela resposta imunológica ou a própria invasão viral no epitélio dos capilares sinusoidais ou dos canalículos biliares2. Outra teoria defende a produção de autoanticorpos contra enzimas antioxidantes, favorecendo a ocorrência de hemólise autoimune11.

O prognóstico da hepatite induzida pelo EBV é geralmente favorável, uma vez que a maioria dos casos se resolvem espontaneamente. Menos de 1% dos casos evoluem para insuficiência hepática aguda. O tratamento é suportivo, mas nos casos de hepatite fulminante o transplante hepático é uma opção terapêutica5.

No segundo caso, apresentamos uma condição ainda menos comum, que é a linfo-histiocitose hemofagocítica (LHH), desordem hematológica potencialmente fatal caracterizada por uma resposta imune descontrolada9,11,14.

A LHH é dividida em 2 tipos: primária ou familiar, resultante de um defeito genético, ou secundária, quando associada a doenças autoimunes, malignidades e infecções. Dentre as causas infecciosas, os vírus são os principais responsáveis pelo desencadeamento dessa condição clínica, sendo o EBV o mais prevalente11,14. Um estudo realizado com crianças japonesas verificou que a incidência anual de LHH na faixa pediátrica é de 51,7 casos por ano, sendo que metade desses pacientes tinham infecção pelo EBV15,16.

Possivelmente, ao infectar as células B, o EBV induziria a proliferação de células T CD8 ou células NK, via CD 21, proteína presente na membrana dessas células, resultando em produção aumentada de citocinas, gerando hemofagocitose1,13,15.

As manifestações clínicas resultam da infiltração histiocitária no sistema reticuloendotelial e incluem febre, esplenomegalia e/ou hepatomegalia, linfadenopatia, icterícia, ascite, edema, rash cutâneo e sintomas neurológicos como irritabilidade, hipotonia e convulsões17.

O diagnóstico de LHH não é fácil, uma vez que a sintomatologia pode simular síndrome da resposta inflamatória sistêmica ou até mesmo uma sepse12. De acordo com o Histiocyte Society, a LHH pode ser estabelecida por um diagnóstico molecular ou por meio de critérios clínicos e laboratoriais (cinco dos oito critérios devem estar presentes), que são: febre persistente, esplenomegalia; citopenias (pelo menos 2 de 3 linhagens - hemoglobina < 9g/dL ou 10g/dL em recém-nascidos; neutrófilos <1.000/mL) ou plaquetas <100.000/mL), hipertrigliceridemia (>265mg/dL) ou hipofibrinogenemia (<150g/dL), hemofagocitose na medula óssea, baço ou linfonodo, sem nenhuma evidência de malignidade, aumento da ferritina (>500mcg/L), atividade diminuída ou ausente das células NK e a dosagem do receptor CD25s (>2400U/mL)18.

A dosagem de citocinas tem sido usada como marcador biológico de LHH e reúne a pesquisa de fator de necrose tumoral (TNF-alfa), interleucina 6 (IL-6) ou o aumento do receptor de interleucina 2 (IL-2), CD25, sugerindo ativação de linfócitos T e baixa atividade de células NK15,18.

Hashemi-Sadraei et al.14 defendem que carga viral de EBV acima de 1000 cópias/mL, hiperbilirrubinemia (>1,8mg/dL) e níveis maiores de 20.300 μg/L de ferritina estão associados com mau prognóstico. Se não tratada, a sobrevivência estimada é menor que 2 meses.

Para o tratamento, o protocolo HLH 94 da Histiocyte Society recomenda uma fase de indução de 8 semanas com dexametasona e etoposídeo, com metotrexate intratecal, quando sintomas neurológicos. Em 2004, o protocolo foi revisado e a ciclosporina A foi incluída na fase de indução. No entanto, a indução com terapêutica tripla associa-se à neurotoxicidade, optando-se por usar o protocolo HLH94 para o paciente do caso 218,19. Em casos de infeção pelo EBV está recomendado rituximabe, um anticorpo monoclonal anti CD20, promovendo redução da carga viral15,16. A indicação de transplante de medula óssea está reservada para doença progressiva ou envolvimento do sistema nervoso central, sendo a opção terapêutica curativa16.


CONCLUSÃO

Conforme exposto, devido à alta prevalência da infecção por EBV na faixa etária pediátrica, é de suma importância o conhecimento e a valorização, sobretudo por parte dos pediatras, dos sintomas discordantes do habitual para essa condição clínica, uma vez que podemos estar de frente com manifestações atípicas da MI.

De fato, o seu reconhecimento e confirmação diagnóstica podem não ser fáceis, o que exige uma análise individualizada para cada doente, excluindo diagnósticos diferenciais prováveis, a fim de evitar tratamentos desnecessários, capazes de aumentar a morbidade do paciente.


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1. Residência em Pneumologia Pediátrica Hospital das Clinicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Especialista pediátrico - Chefe da clínica pediátrica da Santa Casa de Belo Horizonte, Belo Horizonte MG, Brasil










Endereço para correspondência:
Mariana Isadora Ribeiro Vieira
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Data de Submissão: 04/02/2018
Data de Aprovação: 16/07/2018