ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2019 - Volume 9 - Número 3

Perfil de crianças e adolescentes internados por distúrbios neurológicos

Profile of pediatric pacients hospitalized for neurologic disorders

RESUMO

OBJETIVOS: O levantamento teve como objetivo compreender melhor o perfil clínico e demográfico dos pacientes pediátricos hospitalizados por causas neurológicas ou portadores de doença neurológica, internados por intercorrências clínicas no Hospital Universitário de Brasília.
MÉTODOS: Consiste em um estudo observacional descritivo retrospectivo realizado no Hospital Universitário de Brasília (HUB) de levantamento de dados sobre pacientes internados no período de janeiro de 2015 a maio de 2018. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário de Brasília.
RESULTADOS: A principal causa de internação no HUB no grupo estudado é crise epiléptica. A faixa etária mais afetada é entre um e cinco anos de idade. O tempo médio de internação é prolongado, aumentando os riscos, inclusive de infecção hospitalar. Metade dos pacientes internados, ao receberem alta, continuam em acompanhamento ambulatorial no HUB.
CONCLUSÕES: Os dados obtidos podem servir como base para elaborar medidas de prevenção à saúde e auxiliar na análise crítica quanto à real necessidade de internação desses pacientes, a fim de garantir uma melhor assistência pediátrica.

Palavras-chave: neurologia, epidemiologia, morbidade, pediatria.

ABSTRACT

OBJECTIVE: This study aimed to gather clinical and demographic information from pediatric patients hospitalized for neurological disorders and individuals diagnosed with neurological conditions admitted to the Teaching Hospital of the University of Brasília for adverse neurological events.
METHOD: This retrospective descriptive observational study was carried out at the Teaching Hospital of the University of Brasília (HUB) and included the data of inpatients seen from January 2015 to May 2018. The Ethics Committee of the Brasília Teaching Hospital approved the study design.
RESULTS: Epileptic seizures ranked atop all causes of hospitalization at HUB. Most of the individuals hospitalized for neurological disorders were aged ≥ 1 and < 5 years. On average, our patients were hospitalized for a long period of time, which increases the risk for hospital-acquired infection. After discharge, half of the patients remained on outpatient care at HUB.
CONCLUSION: The data collected in this study may provide input to the development of preventative health measures and encourage discussions on the actual need to hospitalize pediatric patients in order to ensure improved care to this population.

Keywords: Neurology, Epidemiology, Morbidity, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

Pacientes pediátricos com distúrbios neurológicos são mais admitidos em unidades de cuidado intensivo, têm risco de mortalidade mais elevado e necessitam de maiores cuidados quando comparados a crianças hospitalizadas por outras condições. A complexidade do cuidado dessas crianças também pode ser observada pelos maiores índices de admissões em hospital pediátrico, maior duração da internação e maiores custos hospitalares1. Esses dados demonstram a importância de uma análise mais aprofundada acerca desses pacientes.

O diagnóstico mais comum em crianças hospitalizadas por distúrbios neurológicos é a convulsão, tendo uma ampla variedade de causas1. Além disso, é o distúrbio neurológico mais comum na população pediátrica, sendo que 4 a 10% das crianças passam por pelo menos um episódio até completar 16 anos. As etiologias mais comuns das crises epilépticas dependem das variações geográficas, sendo as crises convulsivas febris mais frequentes em países tropicais2.

Com um levantamento de informações sobre esses pacientes, espera-se aprofundar o conhecimento e delinear o perfil das crianças e adolescentes hospitalizadas por condições neurológicas mais comuns. Tais dados são essenciais para embasar programas de saúde e, por fim, auxiliar na definição de prioridades na assistência pediátrica3.

O estudo tem como objetivo principal compreender melhor o perfil clínico e demográfico dos pacientes pediátricos hospitalizados por causas neurológicas ou portadores de doença neurológica, internados por intercorrências clínicas no Hospital Universitário de Brasília, um hospital da rede pública de Brasília (DF). Além disso, incluir informações acerca das causas da hospitalização e do posterior seguimento ambulatorial desses pacientes no mesmo hospital.


MÉTODOS

Trata-se de um estudo observacional descritivo retrospectivo realizado no Hospital Universitário de Brasília (HUB) de levantamento de dados sobre pacientes internados no período de janeiro de 2015 a maio de 2018. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário de Brasília (CEP/CONEP número 1.453.723).

Inicialmente, o objeto do estudo era avaliar apenas pacientes indígenas internados. No entanto, o grupo estudado foi ampliado pelas seguintes razões: a) os livros de registro de internação da Pediatria anteriores a 2015 foram perdidos; b) no setor de arquivo médico do HUB, não foi possível resgatar a listagem de pacientes pediátricos internados; c) no período estudado, foi encontrado um número inexpressivo e não representativo de crianças indígenas.

O passo seguinte foi coletar os nomes e os registros nos cadernos de clínica e cirurgia pediátrica que tinham como diagnóstico - manifestação neurológica como motivo de internação, intercorrência neurológica com qualquer doença de base, durante a internação, ou ainda ser portador de doença neurológica. Posteriormente, foram analisados os prontuários em papel do arquivo médico e da estatística do HUB.

Foram incluídos todos os pacientes na faixa etária de 0 a 18 anos admitidos na Enfermaria Pediátrica do Hospital Universitário de Brasília pela Clínica Pediátrica ou pela Cirurgia Pediátrica. Os critérios de exclusão foram pacientes que tiveram prontuários incompletos ou com informações insuficientes no arquivo médico. Além disso, em pacientes com mais de uma internação no período em estudo, foi considerada apenas a última internação para a coleta dos dados.

Foram analisadas as seguintes informações demográficas: idade, sexo e etnia. Quanto aos dados clínicos, foram incluídos: etiologia, tempo de internação, número de internações anteriores incluindo a atual, motivo da internação e complicações ocorridas durante a internação. Foram analisados dados sobre o acompanhamento ambulatorial: se tem acompanhamento no HUB, qual a periodicidade e se realizam o tratamento adequadamente.


RESULTADOS

O total de pacientes internados no período estudado foi de 2867, sendo 2021 pela Clínica Pediátrica e os 846 restantes pela Cirurgia Pediátrica. Dentro desse total, foram identificadas 67 internações por causas neurológicas, sendo três cirúrgicas e as demais clínicas. Na Tabela 1 observa-se, com maiores detalhes, qual foi a incidência por causas neurológicas em cada ano e durante todo o período correspondente à pesquisa.




Perfil demográfico

Em relação ao perfil demográfico, a proporção entre meninos e meninas é semelhante, totalizando 51% do sexo masculino. A idade média dos pacientes internados foi de 4,84 anos. Na distribuição da amostra por faixa etária, encontrou-se (Tabela 2): 14 internações de lactentes até 11 meses; 31 na faixa de 1 a 5 anos; 16 entre 5 e 12 anos; e seis internações de adolescentes (13 anos a 18 anos).




Em relação à etnia, os dados nos prontuários estavam incompletos ou inconsistentes, sendo o resultado final: 58 crianças pardas, nove brancas, uma quilombola, uma indígena e os cinco restantes com dados incompletos.

Perfil clínico

Em relação ao perfil clínico, as causas da hospitalização foram classificadas: 22 por crises convulsivas, 12 por síndromes genéticas ou malformação congênita, nove por causas infecciosas, três por causas cirúrgicas, quatro por distúrbios do comportamento, dois por quadro neurovascular e 16 por causas diversas. Na Tabela 3, estão citadas algumas causas commaior detalhamento nos subgrupos. É importante ressaltar que foram excluídos 14 pacientes, cujos prontuários estavam incompletos ou não foram resgatados.




O número médio de internações, considerando a atual, foi de aproximadamente duas internações, sendo que cerca de 49,21% nunca havia sido internado anteriormente. A duração média aproximada da hospitalização foi de oito dias (8,30).

Foram identificados 17 pacientes (25,37%) que apresentaram sequelas ou complicações após a internação. Algumas das complicações observadas foram: necessidade de uso de oxigênio domiciliar, espasmos frequentes e leves, marcha atípica, pneumonia hospitalar e óbito. Dentre as 67 internações por causas neurológicas, foi identificado um óbito de um lactente com diagnóstico de distrofia miotônica congênita (síndrome de Steinert) com 4 meses e 29 dias.

Dentre os 67 pacientes, 38 acompanhavam no ambulatório de neuropediatra do hospital, um no ambulatório de psiquiatria e os 28 restantes não faziam nenhum tipo de acompanhamento no HUB. Desses pacientes que acompanhavam no ambulatório, 16 estavam no grupo de pacientes que havia sido internado por crise epiléptica, correspondendo a 42,1% dos acompanhamentos ambulatoriais. Além disso, cinco pacientes interromperam o acompanhamento por conta própria sem alta. Dentre os pacientes que possuíam prontuários completos, a média do intervalo entre as consultas foi de 3,91 meses. Cerca de 11,42% dos pacientes não aderiram ao tratamento estabelecido corretamente por motivos diversos. Tal dado foi obtido analisando a história clínica nas consultas de retorno.


DISCUSSÃO/CONCLUSÃO

A melhor compreensão do perfil de internação hospitalar de crianças e adolescentes pode auxiliar na elaboração de planos de atenção à saúde que previnam o agravamento das doenças, evitando assim possíveis hospitalizações3.

O percentual de pacientes neurológicos identificados nesta casuística foi semelhante aos dados revisados na dissertação de Ferrer4, na qual se destacam, por ordem decrescente de frequência: doenças do aparelho respiratório (38%), doenças infecciosas e parasitárias (21%), afecções originadas no período perinatal (10%), doenças do aparelho digestivo (6%), causas externas (5%) como as condições mais comumente identificadas. Nesta revisão, as causas neurológicas responderam por aproximadamente 2% do total, semelhante aos dados observados na nossa série. Entretanto, na nossa casuística foram incluídas as causas infecciosas do SNC, que foram analisadas em separado no trabalho de Ferrer, sugerindo, realmente, uma subestimativa das causas neurológicas no nosso trabalho.

Embora o HUB seja um hospital terciário, não há residência de Neurologia ou de Neurocirurgia, além disso, a residência de Neurologia Pediátrica foi criada recentemente. Outra razão é que, no Distrito Federal, há dois hospitais que são referência para os casos neurológicos, o IHBDF, que tem um Centro Neurocárdio, e o HMIB, hospital exclusivamente materno infantil, que respondem por grande parte do atendimento de casos complexos e de urgência neurológicos do serviço público. Além disso, o HUB não possui UTI pediátrica, apenas UTI neonatal, o que demonstra, de certa forma, uma fragilidade da assistência neuropediátrica. Como muitos casos neurológicos têm potencial risco de atendimento em UTI, sendo outros com necessidade de abordagem cirúrgica, muitos pacientes acabam não sendo direcionados ao HUB.

Quanto ao perfil demográfico, a informação sobre a etnia não trouxe muitas informações, uma vez que grande parte dos prontuários não apresentavam tal informação de forma clara. A maioria significativa era parda e foi identificado apenas um paciente indígena e um quilombola. A faixa etária mais afetada de forma significativa foi entre 1 e 5 anos e a faixa menos afetada foi a dos adolescentes (de 13 a 18 anos). Um levantamento realizado em 2015 nos Estados Unidos observou que a faixa com maior incidência foi de 19 dias a 364 dias e a com menor foi de 10 a 18 anos1.

Em relação ao sexo, a proporção entre meninas e meninos foi bastante semelhante. Em outros estudos já se observou um maior risco de morbidade de doenças neurológicas em criança do sexo masculino, independentemente da idade gestacional ao nascimento e peso ao nascimento5. No entanto, nesse estudo não se identificou esse risco relacionado ao sexo.

O maior esclarecimento das principais causas de internação que, no caso da pesquisa, foram as crises convulsivas, pode auxiliar na elaboração de um melhor acompanhamento ambulatorial para evitar tais internações. A epilepsia é o terceiro distúrbio neurológico mais comuns na população geral6 e também é muito relevante na área de neuropediatria. Aproximadamente 4 a 10% das crianças passa por pelo menos uma crise epiléptica e a incidência de epilepsia na infância é de aproximadamente 1% a 2%7. Os dados obtidos no levantamento mostraram que crises epilépticas foram a principal causa de internação, concordando com a incidência já observada em estudos anteriores1,2.

Como segunda causa, encontrou-se o grupo das causas diversas, seguido das síndromes genéticas e malformações congênitas e das causas infeciosas, respectivamente. Outra causa bastante comum de hospitalização é o trauma cranioencefálico, como demonstrado por um levantamento realizado nos Estados Unidos1; no entanto, tal aspecto não foi identificado no estudo. O HUB, embora seja um hospital terciário, não recebe pacientes traumatizados, por não contar com residência médica nem equipe de Traumatologia.

Em relação ao tempo de internação, foi relativamente prolongado, cerca de oito dias. Um estudo chinês encontrou hospitalização prolongada (6 dias) em pacientes pediátricos internados por crises epilépticas, mesmo com bom prognóstico. Além disso, a média de permanência geral dos pacientes internados na enfermaria de pediatria em 2017 foi de 3 dias, ou seja, um valor inferior ao encontrado no grupo estudado. A hospitalização prolongada é prejudicial, uma vez que aumenta o risco de exposição a infecções nosocomiais2. Tendo em vista este fato, é necessário rever o tempo de internação desses pacientes, tentando reduzi-lo quando houver possibilidade.

Cerca de metade dos pacientes realizavam acompanhamento ambulatorial no HUB e a maioria seguia o tratamento proposto adequadamente. O acompanhamento dessas crianças é muito importante para um melhor prognóstico, evitando complicações da doença e diminuindo as chances de internação.

É importante ressaltar que a hospitalização é um evento que pode ser um fator de risco no desenvolvimento psicológico da criança no domínio cognitivo e afetivo8. Assim, a prevenção ou diminuição do tempode hospitalização, quando possível, pode ser benéfica a longo prazo, evitando prejuízos no desenvolvimento neuropsicológico das crianças e adolescentes.

Tais dados podem servir como base para elaborar medidas de prevenção à saúde e auxiliar na análise crítica quanto à real necessidade de internação desses pacientes, a fim de garantir uma melhor assistência pediátrica.

Por fim, pode se concluir:

1) A principal causa de internação no HUB no grupo estudado é crise epiléptica.

2) A faixa etária mais afetada é entre 1 e 5 anos de idade.

3) O tempo médio de internação é prolongado, aumentando os riscos, inclusive de infecção hospitalar.

4) Metade dos pacientes internados, ao receberem alta, continuam em acompanhamento ambulatorial no HUB.



REFERÊNCIAS

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1. Graduanda de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), Departamento de Pediatria - Brasília - DF - Brasil
2. Médica residente de Pediatria do Hospital Universitário de Brasília/ Universidade de Brasília (HUB/UnB), Departamento de Pediatria - Brasília - DF - Brasil
3. Professora da Área de Medicina da Criança e do Adolescente da Universidade de Brasília (UnB), Departamento de Pediatria - Brasília - DF - Brasil

Endereço para correspondência:
Lisiane Seguti Ferreira
Universidade de Brasília (UnB)
UnB - Brasília, DF, 70910-900
E-mail: lisiane@unb.br

Data de Submissão: 29/08/2018
Data de Aprovação: 16/12/2018