ISSN-Online: 2236-6814

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Relato de Caso - Ano 2019 - Volume 9 - Número 3

Periodontite causada por Actinomyces spp. em criança com Ascaris lumbricoides e Trichocephalus trichiurus: um relato de caso

Periodontitis caused by Actinomyces spp. in a child with Ascaris lumbricoides and Trichocephalus trichiurus: a case report

RESUMO

Actinomyces spp. é uma bactéria anaeróbia facultativa gram-positiva, normal na flora endógena da cavidade oral. Infecções causadas por Actinomyces spp., especialmente actinomicose cervicofacial, são raras em crianças. Este artigo tem como objetivo apresentar um caso de periodontite causada por Actinomyces spp. em uma criança de 03 anos de idade multi-parasitada e discutir a interação eosinofilica e a resposta imune aos parasitos.

Palavras-chave: Periodontite, Ascaris lumbricoides, Actinomyces.

ABSTRACT

Actinomyces spp. is a gram-positive facultative anaerobic bacteria, normal to the oral cavity endogenous flora. Infections caused by Actinomyces spp., especially cervicofacial actinomycosis, are rare in children. This article aims to present a case of periodontitis caused by Actinomyces spp. in a 03 years old multi-parasitized child, and to discuss the eosinophilia interaction and the immune response to the parasites.

Keywords: Periodontitis, Ascaris lumbricoides, Actinomyces.


INTRODUÇÃO

Actinomyces spp. é uma bactéria gram-positiva anaeróbia facultativa, normal à flora endógena da cavidade oral1. A literatura atual descreve 47 espécies2, Actinomyces israelii está entre as mais prevalentes1 e pode ser encontrada nas membranas mucosas, principalmente na cavidade oral, cólon e trato urogenital3,4. As infecções causadas por Actinomyces spp., principalmente a actinomicose cervicofacial, são raras em crianças, mas podem afetar pessoas de qualquer idade, afetando mais frequentemente as meninas, e em associação com febre e dor5.

As cepas de Actinomyces spp. Residem predominantemente no tecido periodontal, tanto em condições fisiológicas quanto nas inflamatórias6. As bactérias geralmente são estabelecidas em pedras, bolsas periodontais, lesões de cárie, nos dentes e na mucosa oral7.

O diagnóstico é dado pela confirmação histopatológica de grânulos de enxofre, cultura positiva e/ou o isolamento do Actinomyces spp.5 As lesões periodontais causadas por infecções por esse agente são tratadas idealmente com penicilina.

Este artigo tem como objetivo apresentar um caso de periodontite causada por Actinomyces sp. em uma criança de 03 anos de idade multiparasitária, e discutir a interação eosinofilia e resposta imune aos parasitas.


RELATO DE CASO

Criança do sexo feminino, com três anos de idade, nascida e residente no nordeste do Brasil, foi internada com lesão periodontal ulcerativa na gengiva superior (figura 1), purulenta, associada à alegação de febre por duas semanas.


Figura 1. Lesão periodontal ulcerativa na gengiva superior.



Ao exame físico, apresentava bom estado geral, palidez leve, hepatomegalia três centímetros abaixo da margem costal direita e ausência de sangramento da pele ou das mucosas. Durante a internação, a paciente foi submetido a uma biópsia para cultura da lesão.

Os resultados dos exames laboratoriais foram de hemoglobina igual a 11,6 mg/dL; hematócrito igual a 36%; contagem de leucócitos de 14.700/mm3 (25% de eosinófilos, 35% de linfócitos e 35% de segmentadores); contagem de plaquetas de 270.000/mm3; Proteína C reativa menor que seis; ferro sérico de 63 mcg/dL e teste de fezes, mostrando Ascaris lumbricoides, Giardia lamblia, Endolimax nana e Trichocephalus trichiurus. Também foi realizada tomografia computadorizada do crânio, mostrando aspectos de sinusite, concha bolhosa, desvio de septo nasal e vegetação adenóide (figura 2). A terapia foi iniciada com 8 ml de Albedanzol 40 mg/mL por cinco dias, sendo administrados por três dias no hospital e o restante em casa.


Figura 2. Também foi realizada tomografia computadorizada dos seios paranasais, mostrando aspectos de sinusite, concha bolhosa, desvio de septo nasal e vegetação adenóide.



Treze dias após a alta hospitalar, a biópsia mostrou tecido ósseo permeado por colônias de bactérias filamentosas que sugeriam Actinomyces ssp. e polimorfonucleares (figura 3). Naquela época, o paciente foi readmitido com lesões ulcerativas de dois centímetros em ambos os lados da gengiva superior, secreção purulenta, sem comprometimento dentário, febre diária, dor após comer e aumento dos linfonodos submandibulares, cervicais anteriores e occipitais, todos com aparência fibroelástica.


Figura 3. A biópsia mostrou tecido ósseo permeado por colônias de bactérias filamentosas que sugeriam Actinomyces spp. e polimorfonucleares.



Foi iniciado o tratamento com uma dosagem de 5.000.000 UI de penicilina cristalina intravenosa a cada seis horas. Novos exames laboratoriais foram realizados e seus resultados foram: hematócrito igual a 34,2%; contagem de leucócitos de 18.200/mm3 (24% dos eosinófilos, 50% dos linfócitos e 22% dos segmentadores; contagem de plaquetas de 222.000/mm3; proteína C reativa menor que seis; GOT: 41U/L; GPT: 12 U/L sódio de 130 mEq/L e potássio de 4,5m Eq/L.

As características clínicas dos pacientes melhoraram com a redução da febre desde o início da terapia e a regressão da ulceração. O plano de tratamento é de trinta dias de penicilina cristalina, seguido de pelo menos cinco meses de amoxicilina.


DISCUSSÃO

O caso apresentado desperta interesse científico ao introduzir formas localizadas de lesões por Actinomyces spp. na região gengival, que são extremamente raras. Além disso, a paciente não tinha histórico de manipulação dentária prévia, lesões traumáticas da mucosa bucal, uso de enxaguante bucal com gluconato de clorexidina 0,12%, ou higiene bucal precária, que justifique a destruição do tecido causador da infecção. A ausência de tais características clínicas dificultou a suspeita clínica inicial e, portanto, o diagnóstico precoce.

Também não houve fatores predisponentes como: gênero masculino, diabetes mellitus, imunossupressão, alcoolismo e desnutrição, o que corroboraria para explicar os mecanismos fisiopatológicos da actinomicose cervicofacial8,9,10,11,12.

Uma das coisas que chamou a atenção dos autores nesse caso foi a presença de parasitismo intestinal por Ascaris lumbricoides e Trichocephalus trichiurus, e 25% de eosinófilos. A eosinofilia tem várias causas. Nos países desenvolvidos, geralmente ocorre por enteropatia eosinofílica e distúrbio imunológico alérgico; no entanto, em países tropicais e regiões subdesenvolvidas, uma das principais causas é o parasitismo intestinal.

Existe, de fato, a possibilidade de que o desvio da resposta imune ao Th-2 possa ter predisposto o Actinomyces spp. multiplicação e disseminação, uma vez que a resposta Th-2 estimula a produção de IgE e a atividade de eosinófilos e mastócitos, no combate a bactérias e helmintos extracelulares13. Assim, a IgE estaria bloqueando a ação dos neutrófilos, beneficiando reações patológicas por Actinomyces spp. Infelizmente, não foi possível medir os níveis de IgE no caso relatado.

Embora as respostas Th-1 e Th-2 atuem de maneira equilibrada, buscando homeostase imune, é sabido que uma resposta imune desviada para Th-2, em infecções causadas por agentes intracelulares, é adversa ao hospedeiro14, pois aumenta a suscetibilidade infecções e proliferação e disseminação desses organismos.

Em relação ao parasitismo intestinal causado por Ascaris lumbricoides e Trichocephalus trichiurus, infecções causadas por esses helmintos - juntamente com várias alterações ambientais, como coinfecções, clima, dieta e comorbidades e com polimorfismo da resposta imune aos genes do hospedeiro - podem piorar ou melhorar alergias e autoimunidade15,16,17.

Além disso, a resposta imune aos helmintos é geralmente controlada pelo Th-2, juntamente com um compartimento estendido de células T reguladoras (Treg), que modula e amortece a inflamação - criando um ambiente hostil aos helmintos e restaurando os danos causados pelos parasitas, resposta inflamatória tipo 1, orientada a microrganismos bactérias e vírus18,19,20,21. Como os Tregs desempenham um papel duplo nas infecções por helmintos, protegendo o hospedeiro da resposta inflamatória excessiva à infecção ou reduzindo a imunidade protetora; permite que as infecções se tornem crônicas22,23,24,25.

Portanto, os autores acreditam que outra condição que possa explicar a periodontite descrita é a ocorrência de helmintíase, pois reduziria a imunidade protetora fornecida pelos Tregs e, assim, desencadearia a infecção.

A recuperação infantil no final do tratamento deveu-se certamente ao uso da penicilina. Além disso, é possível que a terapia com Albedanzol tenha eliminado os parasitas e modificado a resposta inflamatória.

Por fim, concluímos que esse parasitismo intestinal foi o principal fator por trás da gravidade da actinomicose.


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1. Estudante. Escola de Saúde. Universidade Potiguar. Natal. Brazil
2. Graduado em Medicina. Hospital Pediátrico Varela Santiago. Natal. Brasil
3. Graduado em Medicina. Hospital Universitário Onofre Lopes. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal. Brasil
4. Mestrado em Saúde Materno-Infantil. Departamento de Residência Medica em Pediatria. Hospital Pediátrico Varela Santiago. Natal. Brasil
5. PhD Doenças Infecciosas e Parasitarias. Departamento de Doenças Infecciosas. Instituto de Medicina Tropical do Rio Grande do Norte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal. Brasil

Endereço para correspondência:
Nathalia Rayane Wanderley
Hospital Infantil Varela Santiago, Residência de Pediatria
Av. Deodoro da Fonseca, nº 518, Centro
Natal/RN - Brasil. CEP: 59.025-600
E-mail: nathaliaray.wanderley@gmail.com

Data de Submissão: 26/07/2018
Data de Aprovação: 26/02/2019