ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2019 - Volume 9 - Número 3

Perfil de crianças falcêmicas internadas em crise

Profile of hospitalized children with sickle-cell crisis

RESUMO

OBJETIVOS: Descrever o perfil de pacientes com doença falciforme e crise álgica internados no bloco pediátrico de unidade hospitalar entre janeiro de 2014 e outubro de 2016.
MÉTODOS: Estudo descritivo, retrospectivo, com análise e coleta de dados de prontuários. Critérios de inclusão: CID na admissão de anemia falciforme COM crise (D57.0) e de exclusão: CID de anemia falciforme SEM crise (D57.1).
RESULTADOS: Houve 99 internações de 42 pacientes, 42,9% do sexo feminino e 57,1% do sexo masculino; idade entre 1 e 17 anos, sendo 45,2% entre 6 e 12 anos; em 47,6% dos casos, o diagnóstico foi no período neonatal; 91% das internações foram por crises álgicas; em 55,5% dos casos, a crise envolveu mais de um sítio de dor simultaneamente e em 44,5%, dor em sítio único: 14% dor abdominal, 15% em membros inferiores, 5% em membros superiores, 4,5% cefaleia, 3% dor torácica, 1% dorsalgia, 1% lombalgia e 1% cervicalgia; 85,7% dos pacientes apresentaram internações prévias, por crises álgicas e infecções; 59,5% fez uso de opioide (morfina); 31% fazia uso de hidroxiureia.
CONCLUSÕES: Leve predomínio do sexo masculino, maioria dos pacientes em idade escolar e com diagnóstico no período neonatal. Crise álgica foi a principal causa de internação e dor em mais de uma localização simultânea a mais prevalente.

Palavras-chave: anemia falciforme; dor aguda; epidemiologia; criança.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To describe the profile of patients with sickle cell disease and seizures hospitalized in the pediatric unit between January 2014 and October 2016.
METHODS: Descriptive, retrospective study with analysis and data collection from medical records. Inclusion criteria: ICD on admission of sickle cell anemia (D57.0) and exclusion: ICD of sickle cell anemia without crisis (D57.1).
RESULTS: There were 99 admissions of 42 patients, 42.9% female and 57.1% male; aged between 1 and 17 years; 45.2% between 6 and 12 years; in 47.6% of the cases, the diagnosis was in the neonatal period; 91% of hospitalizations were due to painful seizures; in 55.5% of cases, the crisis involved more than one pain site simultaneously and 44.5%, single site pain: 14% abdominal pain, 15% lower limb, 5% upper limb pain, 4.5% % headache, 3% chest pain, 1% back pain, 1% low back pain and 1% neck pain; 85.7% of the patients had previous hospitalizations, due to pain attacks and infections; 59.5% used opioid (morphine); 31% used hydroxyurea.
CONCLUSIONS: A predominance of males, most being school-age patients and with diagnosis in the neonatal period. Pain crisis was the leading cause of hospitalization and pain in more than one location was more prevalent.

Keywords: anemia, sickle cell; acute pain; epidemiology; child.


INTRODUÇÃO

A doença falciforme (DF) envolve um espectro de doenças que tem como causa uma mutação no gene da beta globina da hemoglobina, originando uma hemoglobina anormal, a hemoglobina S (HbS). Estima-se que, no Brasil, haja 2 milhões de portadores do gene HbS, mais de 8.000 afetados com a forma homozigótica e entre 700-1.000 novos casos de DF no país, anualmente1.

A DF apresenta complicações agudas, sendo as mais comuns: as crises dolorosas vaso-oclusivas (acometendo membros e costas) e a síndrome torácica aguda (STA), de acordo com Gellen-Dautremer et al.2. As crises álgicas são ocasionadas por dano tecidual secundário à obstrução do fluxo sanguíneo pelas hemácias falcizadas e representam frequente causa de internação hospitalar, aparecendo como primeira manifestação da doença, na maioria dos casos.

Os locais mais acometidos nas crises de dor aguda são: extremidades, região lombar, abdome ou tórax. A incidência e a prevalência variam de acordo com a idade, sexo, genótipo e alterações laboratoriais, podendo ocorrer desde episódios moderados e transitórios, até episódios generalizados que duram dias ou semanas, com padrão de dor variável3.

A abordagem desses pacientes deve ser individualizada e otimizada, através de equipes multiprofissionais, daí a importância do constante estudo sobre o tema. O tratamento é de suporte e se baseia, inicialmente, no controle da dor e investigação de complicações associadas, principalmente, quadros infecciosos, sendo importante observar e corrigir possíveis fatores desencadeantes, como: hipóxia, acidose e desidratação. O uso contínuo da hidroxiureia tem se mostrado eficaz na redução dos fenômenos vaso-oclusivos e se configura como boa opção terapêutica contínua4.

Avaliar o perfil desses pacientes mostra-se pertinente, por se tratar de uma afecção que ainda é um desafio na prática clínica, envolvendo pacientes que sofrem complicações periódicas, com impacto sobre a qualidade de vida deles e dos familiares.

Objetiva-se descrever o perfil de pacientes com DF em crise internados no bloco pediátrico de hospital de Salvador, BA, no período de janeiro de 2014 a outubro de 2016, observando-se: faixa etária, sexo, época do diagnóstico, localização da crise álgica, medicações utilizadas para tratamento da crise, uso prévio de hidroxiureia (e/ou outras medicações terapêuticas/profiláticas), internações anteriores, seguimento ambulatorial regular com especialista, tempo de permanência hospitalar, comorbidades associadas, pneumonia associada, outras complicações agudas da doença de base durante internamento e necessidade de admissão em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).


MÉTODOS

Realizado estudo descritivo, de caráter retrospectivo, através da análise e coleta de dados de prontuários de pacientes com DF internados com crise, no bloco pediátrico de hospital de Salvador, no período de janeiro de 2014 a outubro de 2016. As informações foram obtidas a partir do banco de dados do sistema informatizado (MVPEP/PAGU) utilizado na instituição. Posteriormente, os dados foram organizados em planilhas do programa Microsoft Excel 2013 e arquivos no Microsoft Word 2013, Windows 8, com elaboração de tabelas e gráficos.

Os critérios de inclusão foram pacientes em cujo prontuário constava CID na admissão na Unidade de Emergência Pediátrica (UEP) e/ou Código Internacional de Doenças (CID) de alta hospitalar com descrição de anemia falciforme COM crise (CID10: D57.0). Os critérios de exclusão foram pacientes em cujo prontuário constava CID na admissão na UEP e/ou CID de alta hospitalar com descrição de anemia falciforme SEM crise (CID10: D57.1). O projeto foi aprovado, em novembro de 2016, pelo Comitê de Ética em Pesquisa de hospital baiano, com Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) de número 62046316.0.0000.0048 e sob parecer 1.841.058.


RESULTADOS

Houve 99 internações de 42 pacientes no bloco pediátrico do serviço, sendo 42,9% (18) deles do sexo feminino e 57,1% (24) do sexo masculino. Foram avaliados pacientes na faixa etária de 1 ano e 2 meses até 17 anos (Figura 1).


Figura 1. Distribuição por faixa etária dos pacientes com doença falciforme e crise álgica.



Acerca da época do diagnóstico da DF, a maioria ocorreu no período neonatal, através do teste de triagem (teste do pezinho), correspondendo a 47,6% (20) dos pacientes avaliados. Outros três pacientes foram diagnosticados em períodos diferentes: um (2,4%) deles aos 4 meses de idade, um com 1 ano de idade e o outro aos 5 anos de idade. Não foi possível definir o período do diagnóstico em 45,2% (19) dos pacientes, por esta informação não estar descrita em prontuário.

A dor de localização em sítio único ocorreu em 44,5% (40) das internações, sendo distribuída da seguinte forma: 14% (12) dor abdominal, 15% (13) dor nos membros inferiores, 5% (5) dor nos membros superiores, 4,5% (4) cefaleia, 3% (3) dor torácica, 1% (1) dorsalgia, 1% (1) lombalgia e 1% (1) cervicalgia. Dos pacientes que apresentaram dor em mais de um local simultaneamente, a dor em topografia de coluna associada à dor nos membros prevaleceu.

Na análise dos prontuários, seis pacientes foram internados por outras causas, totalizando nove internações: um deles foi internado em duas ocasiões, uma por reação transfusional grave e a outra por síndrome torácica aguda (STA); outro, por sequestro esplênico e febre a esclarecer em dois momentos; outro deles, por quadro de hemólise e infecção associada; outro paciente foi internado duas vezes para realizar exsanguineotransfusão, um por pneumonia e, o último, para investigação de síncope.

Em oito das internações, houve outras complicações agudas da DF, além da crise álgica: três pacientes apresentaram STA, houve dois sequestros esplênicos (em um mesmo paciente), hemólise em uma internação, um caso de infarto ósseo, e um outro de tromboembolismo venoso.

Cabe destacar três pacientes que apresentaram maior número de internações quando comparados aos outros do estudo. Cada um deles apresentou número significativo de internações no período, sendo: 16, 9 e 7, respectivamente. No paciente que foi hospitalizado 16 vezes, 15 internações foram motivadas por quadro doloroso e uma para investigação de síncope. Observou-se características semelhantes entre os três pacientes: sexo feminino, idade acima de 12 anos e internações principalmente por crise álgica, infecções (pneumonia mais comumente) e cirurgias. Duas destas crianças faziam uso regular de hidroxiureia (HU).

A maioria dos pacientes, 85,7% (36) apresentou internações anteriores ao período avaliado. Destes, a maior parte, apresentara mais de uma internação ao ano, sendo as principais causas: crises álgicas e infecções. A pneumonia foi a infecção mais prevalente.

Nos três anos incluídos no estudo, houve 36, 27 e 36 internações em 2014, 2015 e 2016, respectivamente. Média de 33 internações ao ano. Houve 842 dias de internação de um total de 1.035 dias (34 meses), no geral. Dividindo-se esse total de dias pelo número de pacientes (42), significa que cada paciente permaneceu em média 20 dias em ambiente hospitalar no período estudado, ou seja, média de 6,6 dias por ano.

Nos casos contemplados pelo estudo em Salvador, 59,5% (25) dos pacientes fizeram uso de opioide (morfina) durante internação. Além disso, de um total de 90 internações por crise álgica no período avaliado, em 86,7% (78) delas, foi utilizada morfina em associação a outras medicações analgésicas.

Em relação ao uso de hidroxiureia, 13 (31%) pacientes estavam em uso desta. Dentre os 42 pacientes, 41 estavam em uso regular de ácido fólico e 21 faziam uso de penicilina para profilaxia de infecções. Quatro desses pacientes faziam uso de outras medicações por condições específicas: quelante de ferro (dois pacientes) por hemocromatose secundária, anticoagulante em um paciente com histórico de tromboembolismo e suplementação com vitamina D em outro paciente. Apenas no caso de um dos pacientes, não houve registro em prontuário do uso de medicamentos profiláticos.

Do total estudado, 40 pacientes faziam acompanhamento regular com especialista (hematologista pediátrico) e dois não realizavam seguimento. Quatro desses pacientes também eram acompanhados por outros especialistas por comorbidades associadas: um deles com ginecologista, por quadro de hipermenorragia; um com endocrinologista, por baixa estatura; um com cardiologista, por comunicação interatrial (CIA); e um com ortopedista, por hérnia lombar.

Dentre os 42 pacientes, 26 não apresentavam comorbidades associadas. Entretanto, em 16 deles, foram observadas afecções, isoladas ou em associação: asma (3), rinite alérgica (3), prurigo estrófulo (1), baixa estatura (2), obesidade (1), intolerância à lactose (1), alergia medicamentosa (2) - dipirona (1) e codeína (1), constipação crônica (2), sequelas de acidente vascular cerebral (3), hérnia lombar (1), CIA (1) e doença de Moya-Moya (1).

Considerando-se as 99 internações, houve pneumonia associada em 18 delas. Houve necessidade de UTI em 11 dessas internações, por quadros de: sequestro esplênico e pneumonia associados (1), STA (1), bacteremia (1), tromboembolismo venoso (1), reação transfusional grave associada à infecção sem foco definido (1), necessidade de exsanguineotransfusão (2), pneumonia associada à STA (2), pneumonia e dor abdominal (1), e sem crise álgica, para investigação de síncope (1). Não houve óbitos entre estes pacientes internados durante o período estudado.


DISCUSSÃO

Existem estudos sobre pacientes com doença falciforme, seja na faixa etária pediátrica ou em adultos, realizados em todo o mundo. Todavia, cada um deles é desenvolvido sob uma perspectiva diferente, incluindo: epidemiologia, aspectos clínicos, tratamento da crise álgica e outras complicações agudas da doença.

Os pacientes internados com crise álgica neste hospital de Salvador, no período avaliado, eram em sua maioria do sexo masculino e se encontravam na faixa etária escolar, tendo recebido o diagnóstico ainda no período neonatal. Isto está em consonância com a leve predominância do sexo masculino de estudos realizados no Brasil, em pacientes pediátricos com DF internados, como descritos por Laurindo & Capoulade5 e Sousa et al.6, em que 52,5% e 50% dos pacientes eram do sexo masculino, respectivamente.

Dentre as complicações agudas da DF, a crise álgica foi a maior causa de internação entre esses pacientes e a dor em mais de uma localização simultânea, a mais prevalente (Figura 2). De acordo com Field7, as crises dolorosas são as formas de apresentação mais comuns entre os pacientes com DF, correspondendo a mais de 80% das internações hospitalares. Desde 1981, Murtaza et al.8 já postulavam, mediante estudos com crianças com DF em Londres, que a causa mais comum de internação nesse grupo era a crise dolorosa vaso-oclusiva.


Figura 2. Causas de internação dos pacientes com doença falciforme entre janeiro de 2014 e outubro de 2016.



Além disso, em Indianápolis, nos Estados Unidos, trabalho realizado em pacientes pediátricos com DF concluiu que as crises vaso-oclusivas dolorosas são as causas mais comuns de hospitalização9. Da mesma forma, estudo realizado no Kuwait, por Akar & Adekile10, que observou durante 10 anos internações de crianças com DF, constatou que o principal motivo de internação foram as crises vaso-oclusivas (63,2%). Também corroborando os achados do presente estudo, existe um ensaio-clínico randomizado realizado com crianças portadoras de DF internadas nos Estados Unidos, no qual os pesquisadores concluíram que a crise vaso-oclusiva é importante causa de dor e foi considerada a complicação mais comum na DF11.

Augier et al.12, em estudo realizado na Jamaica, envolvendo pacientes com DF e crise álgica, descreveram oito locais diferentes de dor, sendo o mais comum os membros inferiores (44,6%), embora a maioria (60,3%) experimentou dor em mais de um sítio diferente no mesmo período; achado semelhante ao presente estudo, em que a maioria (55,5%) dos pacientes apresentou dor em mais de um local simultaneamente (Figura 3). Babela et al.13 postularam que os locais de maior acometimento nas crises álgicas da DF são: ossos longos, abdome e tórax, resultado parecido com o do presente estudo, que mostrou distribuição da dor (em localização isolada) com maior prevalência nos membros inferiores (15% dos pacientes) e dor abdominal (14%).


Figura 3. Localização da dor (crise álgica).



DeBaun & Vichinsky4, mediante análise de uma série de casos, contendo 145 adultos com DF internados, verificaram a prevalência de dor nos seguintes locais: região dorsal (63%), braço esquerdo (61%), braço direito (35%), pernas (30-40%), tórax (26%), abdome (26%) e região lombar (12%). Diferentemente, no estudo realizado em Salvador, foi observada menor proporção de tais localizações: 5% (5) dor nos membros superiores, 3% (3) dor torácica, 1% (1) dorsalgia e 1% (1) lombalgia.

Por sua vez, estudos realizados nos anos 80, nos Estados Unidos e Europa, com crianças e adultos com DF, evidenciaram que os pré-escolares apresentavam predominantemente dor nos membros, enquanto os escolares e adultos jovens queixavam-se mais de dor no tronco8,14,15. Essa distinção de localização em relação à idade não foi observada no presente estudo.

Segundo Babela et al.13, em pesquisa realizada no Congo com crianças e adolescentes com DF e crise álgica, contatou que as internações mais prevalentes foram causadas por crises dolorosas osteomusculares (58,6%), seguidas de: dor abdominal, STA, AVC (acidente vascular cerebral) e priapismo. Já, no presente estudo, as outras complicações agudas da DF encontradas foram: síndrome torácica aguda, sequestro esplênico, hemólise, infarto ósseo e tromboembolismo venoso.

Quase todos os pacientes faziam seguimento com especialista, menos da metade fazia uso contínuo de hidroxiureia (31%) e metade dos pacientes utilizava penicilina para profilaxia de infecções (faixa etária de 1 a 12 anos). De acordo com estudo realizado em Brasília com crianças com DF e crise álgica, o uso de HU esteve presente em 15,8% dos pacientes5. Em outro estudo, Sousa et al.6 evidenciaram que, dentre 24 crianças com DF, internadas com crise álgica em hospital mineiro, apenas três delas usavam HU continuamente (12,3%).

Em 2012, foi desenvolvido um ensaio-clínico randomizado placebo-controlado no Alabama, denominado BABY HUG, com o intuito de avaliar o uso da hidroxiureia (HU) em crianças com anemia falciforme severa. Este demonstrou que a HU reduziu os índices de complicações agudas da doença, diminuindo a incidência de episódios de crise álgica e taxas de hospitalização16. Outro estudo mostrou que os benefícios no uso da HU em crianças incluem maior sobrevida e menor risco de STA7. Ensaios clínicos já mostraram que a HU reduz o número de hospitalizações em pacientes com DF, mas, há critérios específicos para utilização.

Desde a década de 80, com os estudos feitos por Murtaza et al.8, sobre profilaxia medicamentosa com penicilina, sabe-se que esta deve ser fornecida aos pacientes com DF, no mínimo, até os 5 anos de idade. Segundo DeBaun & Vichinsky4, o benefício da profilaxia com penicilina, para pacientes com DF foi demonstrado em revisão de ensaios clínicos da Cochrane em 2012, com queda do risco de infecções pneumocócicas com a adoção da referida medida.

Neste estudo em Salvador, houve média de internação de 6,6 dias, sendo consonante com estudo feito em Brasília com crianças internadas com crise álgica e portadoras de DF, em que a média de tempo de internação foi de 6,3 dias5; o mesmo ocorrendo no trabalho de Lin et al.17 realizado em Nova Iorque com adultos com DF, mostrando média de permanência de 6 dias.

Diferentemente, em estudos realizados nos Estados Unidos e Inglaterra, em 2015, com 40 crianças portadoras de DF internadas por crise álgica, a média de internação foi de 5,1 dias18,19. Já Sousa et al.6, mediante estudos em Minas Gerais com crianças com DF internadas com crise álgica, constataram que a média foi de 12,07 dias de internação e, Murtaza et al.8, através de estudos nos Estados Unidos e Europa, mostraram média de permanência hospitalar de 7,4 dias.

Mais de 90% dos pacientes apresentaram internações frequentes, principalmente por crises álgicas, associadas ou não a infecções, sendo a pneumonia a infecção mais prevalente. Desde os anos 80, estudos realizados nos Estados Unidos e Europa já apontavam a pneumonia como a infecção mais comum em pacientes com DF8,14,15.

A maioria dos pacientes do estudo em Salvador foram medicados inicialmente com analgésicos comuns, principalmente dipirona, de forma sistemática, associado a anti-inflamatórios não esteroides (AINES), mais comumente o cetoprofeno. A morfina ficou reservada para casos em que a associação das medicações descritas não foi suficiente para controle da dor. Outras medicações como codeína foram menos utilizadas (Figura 4).


Figura 4. Medicamentos utilizados para tratamento de crise álgica durante internação hospitalar.



Similarmente, em estudo realizado com crianças portadoras de DF internadas em hospital de Brasília, a medicação utilizada isoladamente com maior frequência, durante internação, foi a dipirona5. Já, em estudos na Jamaica e no Congo, sobre o tratamento de crises álgicas em crianças e adolescentes com DF, as opções mais usadas foram os opioides e não opioides12. De acordo com Sousa et al.6, em estudo realizado em crianças com crise álgica e DF internadas em hospital universitário de Juiz de Fora, MG, as medicações mais usadas na internação foram dipirona associada a ibuprofeno e morfina (50% dos casos).

O presente estudo apresentou algumas limitações. Não foram analisados os genótipos dos pacientes (tipo de hemoglobinopatia), para averiguar se há maior prevalência de algum subtipo no grupo avaliado, como a homozigose HbSS, que tem apresentação clínica mais agressiva; os níveis de hemoglobina basal, que por vezes também estão relacionados a crises dolorosas mais frequentes e severas; e a terapia medicamentosa utilizada em domicílio antes da internação hospitalar.

Em contrapartida, este estudo proporcionou o conhecimento da população assistida pelo hospital, incluindo semelhanças e particularidades, o que poderá influenciar em discussões e ações para melhorias na qualidade do atendimento, principalmente na abordagem da dor, em indivíduos com DF. Foi possível analisar um período de tempo relevante, correspondendo a um espaço maior de tempo do que alguns estudos já realizados no Brasil e identificar comorbidades associadas, assim como a necessidade de UTI durante a internação, fatores que não haviam sido avaliados em outros estudos.

O estudo do perfil dos pacientes com DF com crise álgica tem importância na medida em que tais pacientes recorrem com frequência ao ambiente hospitalar, devendo ser prontamente cuidados, visando ao controle da dor e à investigação de outras complicações. Acredita-se que o referido estudo deva servir como estímulo à realização de novos trabalhos sobre o tema, que procurem ratificar os dados encontrados e, sobretudo, elucidar as características não abordadas pelo mesmo.


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1.Médica residente do segundo ano de Pediatra
2.Pediatra e preceptora de residência médica de Pediatria

Endereço para correspondência:
Maria do Bom Sucesso Lacerda Fernandes Neta
Hospital São Rafael-HSR,
Rua Jasmim - 612, Residencial Aquarelle, Chácara Primavera
Campinas - SP, Brasil. CEP: 13087-460
E-mail: bomsucessolacerda@gmail.com

Data de Submissão: 16/02/2018
Data de Aprovação: 11/06/2018