ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Caso Interativo - Ano 2019 - Volume 9 - Número 3

Um paciente com massa abdominal de consistência pétrea. Qual o seu diagnóstico?

A patient with a stone-hard abdominal mass. What is your diagnosis?


Paciente com 7 anos de idade, do sexo masculino, é encaminhado da Clínica da Família ao Ambulatório para avaliação e tratamento de asma.

Apresentava sintomas de asma e rinite não controlados.

História patológica pregressa de bronquiolite viral aguda aos 3 meses, necessitando internação. Evolução com sibilância recorrente, apresentando crises a cada 2 meses. Nunca fez tratamento intercrítico.

Tem prurido nasal e ocular, roncos noturnos que não interferem com o sono.

Submetido à cirurgia por hérnia umbilical e de parede abdominal, criptorquidia e fimose.

Desde 2 anos de idade, apresenta constipação intestinal com soiling. Não consegue evacuar no vaso sanitário. Refere dor e medo de defecar, fazendo-o “prender as fezes”. Diariamente, o paciente acorda com escape fecal. Nega infecção do trato urinário.

Foi internado aos 3 meses, aos 2 anos e aos 6 anos, sempre por quadro de sibilância, na última vez com pneumonia.

Nasceu a termo, de parto vaginal, após gestação sem intercorrências. Mãe com febre reumática. Peso de nascimento 3315g. Teste do pezinho negativo.

Amamentado com leite materno até os 6 meses. Sua dieta atual é quantitativamente suficiente, mas de qualidade ruim. Ingesta acentuada de doces, farinhas e biscoitos.

Calendário vacinal em dia faltando apenas a dose anual de vacina contra influenza.

História familiar de alergias e rinite. Avó paterna com constipação e é fumante.

Casa limpa com cloro. Uso de amaciantes na lavagem das roupas. Ausência de animais domésticos.

Pais separados. Vive com a mãe e avó materna. Tem pouco contato com o pai. O paciente dorme na cama com a mãe. Muda com frequência de escola e tem mau rendimento escolar. Não há boa relação entre as famílias materna e paterna.


EXAME FÍSICO

P= 19900g, E= 118cm, IMC= 14,3 (score Z entre 0 e 2)

Bom estado geral. Pele ressecada e estigmas de atopia.

FC, FR e PA normais

Sibilos esparsos

Abdome globoso, flácido e depressível. Peristalse presente. Massa palpável em hipogastro, de consistência pétrea. Ânus sem fissuras.


PERGUNTAS

1. A constipação é uma causa de dor abdominal crônica. Qual das opções abaixo sugere um maior risco de doença orgânica nos pacientes com dor abdominal crônica?


A- Dor persistente no quadrante superior esquerdo (QSE)

B- Febre alta

C- Velocidade de hemossedimentação diminuída

D- Dor persistente no quadrante inferior direito (QID)

E- NRA


▪ Dor persistente nos QSD e QID


Dor abdominal crônica é uma queixa frequente em Pediatria. Entre os sinais que sugerem um maior risco de doença orgânica, estão:1


▪ Perda de peso ou parada de crescimento

▪ Hemorragia gastrointestinal

▪ Vômito bilioso ou protraído

▪ Odinofagia e disfagia

▪ Diarreia crônica grave

▪ Evacuações durante o período noturno e dor que acorda o paciente durante a noite

▪ Dor persistente nos QSD e QID

▪ Anormalidades no exame físico como massas, visceromegalias, anormalidades perianais, dor localizada

▪ Achados laboratoriais como aumento da proteína C reativa, da velocidade de hemossedimentação e presença de sangue oculto nas fezes

▪ História familiar de doença intestinal inflamatória


2. Qual das opções abaixo representa um sinal de alerta para condições orgânicas nos pacientes com constipação crônica?


A- Tufo piloso sobre região da coluna vertebral

B- Reflexo anal ou clemastérico ausente

C- Sinus na região sacra

D- Visceromegalias

E- Todas as respostas anteriores


Todas as respostas anteriores


A maioria dos casos de constipação é funcional. Alguns sinais de alerta sugerindo causa orgânica são:2-4


▪ Início no 1º mês de vida

▪ Eliminação de mecônio após 48h de vida

▪ Hipodesenvolvimento

▪ Diarreia intermitente e fezes explosivas. Distensão abdominal

▪ Reto vazio

▪ Seio pilonidal coberto por tufo de pelos

▪ Anormalidades pigmentares da região espinhal inferior

▪ Exame neurológico anormal como reflexo clemastérico ausente e tônus e/ou reflexos de membros inferiores diminuídos ou ausentes

▪ Sangue oculto nas fezes

▪ Sintomas extraintestinais

▪ Jorro de fezes ao toque retal

▪ Ausência de retenção ou soiling

▪ Ausência de resposta ao tratamento convencional


3. Que condição endócrina ou metabólica está associada à constipação?


A- Hipertireoidismo

B- Hipercalemia

C- Hipocalcemia

D- Hipovitaminose D

E- Diabetes mellitus


▪ Diabetes mellitus


Entre as condições endócrinas e metabólicas que podem causar constipação estão incluídas:5-7


▪ Hipotireoidismo

▪ Diabetes mellitus

▪ Fibrose cística

▪ Enteropatia por glúten

▪ Neoplasia endócrina múltipla tipo 2B

▪ Hipocalemia

▪ Hipercalcemia

▪ Porfiria


Outras causas orgânicas de constipação são:


▪ Malformações anatômicas

▪ Neuropatias

▪ Miopatias e distúrbios de nervos intestinais

▪ Anormalidades da parede abdominal

▪ Doenças do tecido conjuntivo

▪ Drogas como opioides, fenobarbital, antiácidos, antidepressivos, simpaticomiméticos, anti-hipertensivos, etc

▪ Outros: intoxicação por chumbo e outros metais pesados, intoxicação por vitamina D, botulismo e intolerância à proteína do leite de vaca


4. O atual sistema de classificação de diagnóstico dos distúrbios gastrointestinais funcionais para crianças é:8


A- Roma II

B- Roma III

C- Roma IV

D- Roma V

E- O sistema Roma não foi validado para crianças.


Roma IV


Em 1990 o Comitê da Fundação Roma estabeleceu pela primeira vez os critérios para diagnóstico e conduta nas doenças gastrointestinais funcionais. Somente em 1999 as crianças passaram a ser contempladas pelo sistema Roma (Roma II). Desde 2016, o sistema vigente é o Roma IV.

O Roma IV, como todos os seus antecessores, é um sistema baseado em sintomas e algumas mudanças ocorreram em relação ao Roma III.

O Roma IV contempla os adultos e crianças, sendo que para os pacientes pediátricos é dividido em função da faixa etária: um para neonatos e crianças até os 3-4 anos e outro para crianças maiores e adolescentes.

5. De acordo com os critérios de Roma IV, não é considerado critério diagnóstico:4,9,10


A- História de defecações difíceis e dolorosas

B- História de postura retentiva ou retenção voluntária excessiva

C- Três evacuações por semana

D- Presença de grande massa fecal no reto

E- História de fezes de grande diâmetro


História de defecações difíceis e dolorosas


Os critérios diagnósticos do ROMA IV para constipação funcional incluem pelo menos dois dos 6 critérios abaixo, desde que ocorram pelo menos 1 vez por semana por um mínimo de 1 mês, com critérios insuficientes para preencher o diagnóstico de síndrome do intestino irritável e após avaliação minuciosa não explicada por uma outra condição clínica.


▪ Duas ou menos evacuações por semana

▪ História de postura retentiva ou retenção fecal voluntária excessiva

▪ História de defecações difíceis ou dolorosas

▪ Presença de grande massa fecal no reto

▪ História de fezes de grande diâmetro

▪ Para crianças já treinadas no uso do vaso sanitário, dois critérios adicionais:

▪ Pelo menos um episódio semanal de incontinência fecal

▪ História de fezes de grande diâmetro que podem obstruir o vaso sanitário



IMPRESSÃO INICIAL E CONDUTA

O diagnóstico inicial foi de asma e rinite não controlados e constipação crônica com massa abdominal (fecaloma? neoplasia?). Realizada ultrassonografia de urgência (Figura 1).


Figura 1. Ultrassonografia abdominal.



Fígado de forma, volume e ecogenicidade normais sem evidência de dilatação das vias biliares intra e extra-hepáticas.

Vesícula biliar normodistendida, de paredes finais com conteúdo anecoico habitual.

Baço de volume normal e ecotextura homogênea.

Pâncreas sem alterações ao método.

Rins tópicos, com dimensões e ecogenicidades normais e dissociação corticomedular preservada. Rim direito mede 7,6cm e o esquerdo 7,7cm no eixo longitudinal. Não há evidências de hidronefrose ou cálculos.

Bexiga com boa capacidade (v=55ml), paredes finas e conteúdo anecoico.

Ausência de líquido livre na cavidade peritoneal.

Importante distensão de sigmoide com grande quantidade de resíduos fecais (fecaloma).

Foram solicitadas radiografias de tórax em AP e perfil e radiografia de abdome em AP e oblíqua (Figuras 2A, 2B, 3A e 3B, respectivamente).


Figura 2A. Radiografia de tórax em AP - hiperinsuflação.


Figura 2B. Radiografia de tórax em perfil - hiperinsuflação.


Figura 3A. Radiografia de abdome em AP - grande quantidade de fezes em toda a extensão do cólon.


Figura 3B. Volumosa quantidade de material fecal em toda extensão do cólon.



EVOLUÇÃO

Após clister, o paciente melhorou e recebeu alta. Prescritos budesonida nasal e beclometasona inalatória e laxativo osmótico (cloreto de sódio+macrogol+bicarbonato de sódio+cloreto de potássio) 2 sachês por dia, além de orientações dietéticas.

Na revisão realizada 10 dias após a primeira consulta, observou-se melhora significativa dos sintomas de asma, rinite e do quadro de constipação. Encaminhado ao ambulatório de Gastroenterologia para investigação complementar. O laxativo osmótico não irritante foi substituído por polietilenoglicol 4000 (20g/dia). Paciente evoluiu com bom controle clínico.


CONCLUSÃO

A constipação crônica é uma causa importante de dor abdominal na criança, ocasionando um número significativo de consultas ao Departamento de Emergência e ao Ambulatório de Gastroenterologia. Apresenta morbidade significativa, com grande impacto na qualidade de vida dos pacientes e suas famílias.

A grande maioria dos casos é funcional, mas é preciso atenção aos sinais de alerta que possam indicar uma possível causa orgânica.

Os critérios de diagnóstico dos distúrbios gastrointestinais funcionais nas crianças e nos adultos foram revisados em 2016 e constituem o ROMA IV. O quadro gastrointestinal do paciente do caso relatado preencheu os critérios estabelecidos pelo ROMA IV de constipação funcional.


REFERÊNCIAS

1. Zeitel DK. Abdominal Pain in Children: From the Eternal City to the Examination Room. Pediatr Clin North Am. 2017;64(3):525-41.

2. Nurko S, Zimmerman LA. Evaluation and treatment of constipation in children and adolescents. Am Fam Physician. 2014;90(2):82-90.

3. Philichi L. Management of Childhood Functional Constipation. J Pediatr Health Care. 2018;32(1):103-11.

4. Tabbers MM, DiLorenzo C, Berger MY, Faure C, Langerdan MW, Nurko S, et al.; European Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition; North American Society for Pediatric Gastroenterology. Evaluation and Treatment of Functional Constipation in Infants and Children: Evidence Based Recommendations From ESPGHAN and NASPGHAN. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2014;58(2):258-74.

5. Andromanakos NP, Pinis SI, Kostakis AI. Chronic severe constipation: current pathophysiological aspects, new diagnostic approaches, and therapeutic options. Eur J Gastroenterol Hepatol. 2015;27(3):204-14.

6. Petersen B. Diagnosis and management of functional constipation: a common pediatric problem. Nurse Pract. 2014;39(8):1-6.

7. Blackmer AB, Farrington EA. Constipation in the pediatric patient: an overview and pharmacologic considerations. J Pediatr Health Care. 2010;24(6):385-99.

8. Koppens IJ, Nurko S, Saps M, Di Lorenzo C, Benninga MA. The pediatric Rome IV criteria: what´s new? Expert Rev Gastroenterol Hepatol. 2017;11(3):193-201.

9. Hyams JS, Di Lorenzo C, Saps M, Shulman RJ, Staiano A, van Tilburg M. Functional Disorders: Children and Adolescents. Gastroenterology. 2016. pii: S0016-5085(16)00181-5.

10. Zeevenhooven J, Koppen IJ, Benninga MA. The New Rome IV Criteria for Functional Gastrointestinal Disorders in Infants and Toddlers. Pediatr Gastroenterol Hepatol Nutr. 2017;20(1):1-13.










1. Professora auxiliar de Saúde da Criança e Adolescência UNESA, Pneumologista e Alergista Pediátrica do Hospital Municipal Jesus
2. Professora auxiliar de Saúde da Criança e Adolescência UNESA, Gastroenterologista Pediátrica do Hospital Federal de Bonsucesso e Hospital Municipal Jesus
3. Gastroenterologista Pediátrico do Hospital Municipal Jesus
4. Residente de Pediatria do Hospital Municipal Jesus
5. Doutoranda de Medicina UNESA

Endereço para correspondência:
Patrícia Barreto Costa
IFF. Av. Rui Barbosa 716
Rio de Janeiro, RJ. Brasil. CEP: 22250-020
E-mail: pfbcosta@gmail.com

Data de Submissão: 10/06/2019
Data de Aprovação: 20/06/2019

Organizadoras: Sandra Mara Amaral e Patricia F. Barreto Costa