Relato de Caso
-
Ano 2012 -
Volume 2 -
Número
2
Púrpura de Henoch-Schönlein: relato de caso e revisão da literatura
Henoch-Schonlein purpura: a case report and literature review
Monica Soares de Souza1; Juliana Gomes da Costa2; Ivana Ludmila de Aquino Frias3
RESUMO
Os autores descrevem um caso clínico clássico de Púrpura de Henoch-Schönlein (PHS) em menina de 4 anos de idade, com febre, dor abdominal, artrite e púrpura palpável atrombocitopênica, apresentando remissão completa da fase aguda com o uso exclusivo de sintomáticos em cerca de 12 dias. Programado acompanhamento clínico e laboratorial posterior para vigilância de recorrências e monitorização da pressão arterial, proteinúria e hematúria por período mínimo de seis meses até definição ou não da alta hospitalar. A gravidade e/ou a duração dos sintomas extrarrenais, associados a faixas etárias maiores são os fatores clínicos de risco mais significativos para o desenvolvimento da nefrite da PHS (NPHS). A doença renal contribui como a principal morbidade em longo prazo. As evidências científicas não demonstram até a atualidade que o uso de corticosteroides por curtos períodos influencie na prevenção da doença renal persistente. Os autores fazem revisão bibliográfica e documentam que estudos multicêntricos e randomizados são necessários para elaboração de consensos de tratamento e seguimento dos pacientes com PHS.
Palavras-chave:
criança, diagnóstico, púrpura de schoenlein-henoch, tratamento, vasculite sistêmica.
ABSTRACT
The authors report a typical case of Henoch-Schönlein purpura (HSP) in a four-years-old girl presenting fever, abdominal pain, arthritis and nonthrombocytopenic palpable purpura. Complete remission of the acute phase occurred at twelve days using symptomatic. The minimum length of follow-up for possible recurrences and the monitoring of the blood pressure, proteinuria and hematuria should be six months. Severity and/or duration of extrarenal symptoms and older age are the most significant risk factors for developing of HSP nephritis (PHSN). Renal involvement contributes to long-term morbidity. Up to now there is no evidence that the use of corticosteroids for short periods prevents persistent renal disease. The authors present a literature review and document that studies and multicenter trials are necessary to developing guidelines for treatment and follow-up of the patients with HSP.
Keywords:
child, diagnosis, purpura, schoenleinhenoch, systemic vasculitis, therapeutics.
INTRODUÇÃO
Em 1802, Willian Heberden publicou o caso clínico de um menino de 5 anos com edema, artralgia, hematúria, dor abdominal, melena e lesões purpúricas nas pernas. Em 1837, Johann Schönlein descreveu a associação entre artralgia e púrpura. Posteriormente, Eduard Henoch observou o acometimento gastrointestinal e renal, originando o nome Púrpura de Henoch-Schönlein (PHS)1.
A PHS é a vasculite sistêmica mais comum na infância que afeta os pequenos vasos. Geralmente, seu curso é autolimitado; tem ligeiro predomínio em meninos. O padrão monocíclico e de bom prognóstico é o mais observado na pediatria, embora possam aparecer manifestações renais por períodos mais longos2.
Os sintomas clínicos são bem reconhecidos: todos os pacientes apresentam rash purpúrico, 75% desenvolvem artrite, 60% a 65% têm dor abdominal, e 40% manifestam doença renal. Contudo, a patogênese permanece desconhecida. Não há diretrizes estabelecidas sobre o tratamento e o seguimento da PHS3.
RELATO DE CASO
ECV, 4 anos, sexo feminino, branca, DN: 20/02/2008, natural do RJ. Apresentou manchas vermelhas de diferentes tamanhos em membros inferiores em 30/01/2012, sem outros sintomas. Após 24h, evoluiu com o aparecimento de menor número de manchas vermelhas em membros superiores e temperatura de 37,5°C. Procurou atendimento em posto de saúde, sendo encaminhada ao Hospital Municipal Miguel Couto (HMMC) com hipótese de PHS. Cerca de dez dias antes, a criança havia apresentado resfriado com coriza, tosse e febre, com involução espontânea. À admissão, encontrava-se em bom estado geral, hipocorada +/4, hidratada, eupneica, acianótica, anictérica, afebril, com lesões cutâneas purpúricas, maculopapulosas eritematosas, petéquias e equimoses predominantemente em membros inferiores (Figura 1), região glútea, planta (Figura 2) e dorso dos pés, mas acometendo a palma das mãos (Figura 3) e antebraços. Apresentava, também, dor à manipulação, edema sem flogose em tornozelos e mãos (Figura 4) e dificuldade de deambulação. Prescrita analgesia com paracetamol. Exames laboratoriais: leucocitose com discreto desvio para a esquerda; aumento de proteína C reativa (PCR - t), da desidrogenase lática (LDH) e da velocidade de hemossedimentação (VHS); resultados normais dos níveis de plaquetas, da atividade protrombina, do international normatized ratio (INR), da PTTA e do EAS. A boa evolução laboratorial é mostrada pelos Quadros 1 e 2, em concomitância com a melhora clínica descrita abaixo.
Figura 1. Púrpura palpável na superfície extensora dos membros inferiores, evidenciadas por lesões cutâneas hemorrágicas, que não desaparecem a vitro pressão, desde petéquias a equimoses.
Figura 2. Púrpura palpável em planta dos pés.
Figura 3. Púrpura palpável em palma das mãos.
Figura 4. Edema e petéquias no dorso das mãos.
No segundo e terceiro dias de internação, evoluiu com aumento do número de lesões em membros inferiores, parada de deambulação, picos subfebris, má aceitação da dieta, mas estável hemodinamicamente. Iniciada hidratação venosa. No terceiro dia, apresentou clareamento das lesões cutâneas em membros inferiores, melhora discreta da artralgia e do edema de tornozelos, mãos e pés, porém, mantendo ausência de deambulação. Iniciou quadro de dor abdominal difusa. Realizada ultrassonografia abdominal sem alterações.
No quinto e sexto dias de internação apresentou melhora da dor abdominal, retorno da deambulação e sem distermias. Recebeu alta no sétimo dia de internação e encontra-se bem após 6 meses de acompanhamento no Hospital Federal dos Servidores do Estado (RJ).
HPP: Saudável até a internação.
HGPN: Mãe - Gesta III, Para II; um aborto espontâneo, uma consulta de pré-natal, nega o uso de medicamentos, fumo ou uso de drogas ilícitas.
Criança nascida de parto normal, 2490g, estatura 48 cm, PC 35 cm, Capurro somático de 35 semanas, Apgar 8 e 9 nos 1º e 5º min, respectivamente. Desenvolvimento neuropsicomotor normal. Vacinas atualizadas.
H. FAMILIAR: Pais não consanguíneos. Mãe com hipertensão arterial. Pai e irmã saudáveis.
CONSIDERAÇÕES GERAIS
A PHS é a vasculite mais comum da infância. Os critérios diagnósticos sugeridos pela Sociedade Europeia de Reumatologia Pediátrica, mas ainda não validados, baseiam-se na púrpura palpável atrombocitopênica associada a, no mínimo, um dos seguintes achados: dor abdominal difusa, biópsia com deposição predominante de imunoglobulina A, artrites ou artralgia, e acometimento renal (hematúria ou proteinúria). Até 40% das crianças com PHS necessitam de hospitalização para tratamento das manifestações agudas, que podem incluir glomerulonefrite, hipertensão arterial, dores, hemorragia gastrointestinal ou artrite4.
Epidemiologia
A PHS ocorre em 10 a 22 por 100.000 pacientes a cada ano. Crianças com menos de 10 anos de idade representam mais de 90% dos pacientes. O pico de incidência é maior na faixa etária de 4 e 6 anos, alcançando índices, neste grupo, de 70,3 por 100.000 crianças anualmente. Gardner-Medwin et al.5 registraram dados baseados numa larga amostra populacional (1,1 milhão de crianças abaixo de 17 anos), comparando diferentes etnias na Inglaterra. A incidência anual estimada foi de 20,4 por 100.000 crianças no Reino Unido, com uma incidência maior em crianças de origem indiana (24 por 100.000), comparada com as caucasianas (17,8 por 100.000) e com as negras (predominantemente afrocaribenhas: 6,2 por 100.000). Vários agentes infecciosos são relacionados ao desenvolvimento da PHS. Do ponto de vista imunológico, raciocinamos que devem existir muitos polimorfismos ligados à susceptibilidade à doença, à gravidade e aos fatores de risco que geram o acometimento renal.
Apesar da maior incidência na infância, todas as faixas etárias são acometidas, inclusive, adolescentes e adultos. O prognóstico mais favorável e as formas mais leves de apresentação clínica são presentes em menores de 2 anos. A doença é mais grave e causa maior comprometimento renal em adultos. Gestantes com histórico de PHS na infância estão sob maior risco de complicações, tais como hipertensão arterial e proteinúria durante o pré-natal1.
Imunofisiopatologia
Os pacientes com PHS apresentam a imunoglobulina A (IgA) em imunocomplexos que são depositados em pequenos vasos. Esta reação é responsável pelo aparecimento de petéquias e da púrpura palpável. Pode ocorrer hemorragia gastrointestinal quando os imunocomplexos se depositam nos vasos da parede intestinal. A deposição na região mesangial renal poderá resultar em glomerulonefrite crescente proliferativa de intensidade leve a grave.
Os complexos de IgA são formados e depositados na pele, no intestino e nos glomérulos, resultando em resposta inflamatória localizada. Posteriormente, a vasculite leucocitoclástica se instala com necrose de pequenos vasos sanguíneos.
A IgA é encontrada no soro e nas secreções das mucosas. Há dois isotipos: IgA1 e IgA2. A IgA das mucosas é, principalmente, da forma polimérica e 60% de IgA2, enquanto a IgA sérica é, principalmente, IgA1, 90% monomérica. Na PHS, os complexos são formados com a forma polimérica de IgA1. Níveis elevados de uma forma anormal de IgA1, deficiente de galactose, têm sido encontrados em pacientes portadores da nefrite associada a PHS, quando comparados com pacientes com PHS sem nefrite e com pacientes sadios6.
A etiologia da PHS não é claramente elucidada, embora se conheça a resposta imunológica mediada por imunocomplexos, que pode ser desencadeada por infecção, medicamento, ou fator ambiental.
Infecções do trato respiratório superior são descritas como precursoras da PHS, particularmente pelo Streptococcus β haemolyticus do grupo A. Pacientes com NPHS têm culturas positivas para este agente em mais de 30% dos casos, assim como títulos de antiestreptolisina mais elevados. Outros organismos envolvidos são: Mycoplasma, adenovírus, parvovírus B19, varicela zoster, herpes simples, Helicobacter pylori, Haemophilus parainfluenzae e Staphylococcus aureus resistentes à meticilina7,8.
Além da ação dos imunocomplexos IgA associados e dos possíveis agentes que colaboram para o desencadeamento da PHS, outros fatores individuais são gerenciados por citocinas e moléculas de adesão envolvidas na modulação da resposta inflamatória e na ativação celular endotelial.
A maioria das crianças apresenta respostas imunológicas que levam ao bom prognóstico da PHS.
Manifestações clínicas
A tríade de púrpura, dor abdominal e artrite pode surgir em qualquer sequência, embora os dois últimos não estejam presentes em todos os pacientes. A maioria dos casos é precedida por sintomas respiratórios das vias aéreas superiores, e o início da doença pode ser acompanhado por mal-estar e febre baixa. A duração dos sintomas varia de dias a semanas, cursando de forma insidiosa em alguns pacientes. Cerca de um terço das crianças apresentam sintomas por menos de 14 dias, um terço por 2 a 4 semanas e outro terço por mais de 4 semanas. A recorrência dos sintomas ocorre em cerca de 30%, geralmente nos primeiros quatro meses de resolução da sintomatologia inicial. As recorrências são mais frequentes nos pacientes que desenvolverão doença renal9.
O acometimento cutâneo
Todos os pacientes com PHS apresentam rash sem prurido, que se inicia de forma discreta e breve, como pápulas eritematosas que evoluem para as lesões petequeais e purpúricas, características da doença. O diagnóstico de púrpura é definido como lesões hemorrágicas cutâneas que não clareiam à vitropressão, com diâmetros de cerca de 10 mm ou mais, e, geralmente, localizada nas superfícies extensoras dos membros. Estas lesões podem se alargar e se transformar em equimoses palpáveis. Com o passar do tempo, as lesões vão mudando de cor. Iniciam com coloração avermelhada, evoluem para a cor púrpura e, posteriormente, para cor de ferrugem, antes do esmaecimento por período de aproximadamente 10 a 14 dias. O rash ou lesões purpúricas agrupadas predominam nas áreas de maior pressão (Figura 5): membros inferiores, cintura e nádegas, mas pode se estender para os membros superiores, face e tronco.
Figura 5. Lesões maculopapulosas de cor púrpura ou de cor avermelhada, alargadas ou agrupadas, em áreas de maior pressão pela imobilização do acesso venoso.
Raramente, crianças apresentam lesões hemorrágicas bolhosas na PHS. Esta forma é mais comum em adultos; em crianças, cria um dilema diagnóstico, mas não parece influenciar no bom prognóstico na maioria das vezes. A pressão é provavelmente o fator desencadeante na formação das bolhas10,11.
Recorrência dos sintomas purpúreos pode ocorrer meses após o primeiro surto acompanhados das manifestações abdominais em um terço dos pacientes. Em geral, o quadro é mais brando e tende a desaparecer com o tempo.
A PHS pode evoluir de uma forma crônica na minoria de pacientes e se caracteriza pela persistência das alterações cutâneas, gastrointestinais e/ou renais por um período contínuo maior que 12 meses.
O acometimento articular
Cerca de 75% dos pacientes com PHS apresentam manifestações articulares. Joelhos e tornozelos são mais acometidos. Os sintomas vão desde a dor às manifestações de artrite com edema e diminuição do movimento. A tendência é a melhora rápida com resolução completa5.
O acometimento gastrointestinal
Entre 50% a 75% dos pacientes com PHS desenvolvem quadro abdominal, que varia de cólicas leves a dor abdominal intensa, simulando abdôme agudo. A dor em cólica pode ocorrer cerca de uma semana após o início do rash purpúrico. Vômitos e hemorragia gastrointestinal (oculta ou sangue vivo) aparecem em 30% dos pacientes, mas as formas graves são raras. Outras complicações também raras são a intussuscepção e a perfuração intestinal. A ultrassonografia abdominal é importante para a definição diagnóstica12.
O acometimento renal
A doença renal é a sequela mais grave da PHS, ocorrendo em 20% a 50% dos pacientes. A mortalidade pela PHS é rara, mas a doença renal pode causar a morte. O risco é maior em pacientes acima de 10 anos com os seguintes sintomas associados: púrpura com caráter persistente, dor abdominal grave ou episódios recorrentes. O quadro, geralmente, se inicia no primeiro mês e raramente ocorre após seis meses de doença. Pode se apresentar com gravidade diferenciada: hematúria microscópica isolada, cilindros de hemácias, proteinúria com hematúria microscópica ou macroscópica, síndrome nefrítica aguda, síndrome nefrótica ou quadro misto nefrítico/nefrótico. A doença renal costuma involuir espontaneamente na maioria das vezes. Embora a glomerulonefrite progressiva possa se desenvolver, principalmente, em pacientes com proteinúria persistente.
Complicações raras
Outros órgãos envolvidos com menor frequência são: o sistema nervoso central (vasculite cerebral), as gônadas (a orquite) e os pulmões (hemorragia pulmonar). Outra complicação rara é a obstrução uretérica13.
Como diagnosticar a PHS?
O diagnóstico é basicamente clínico: rash cutâneo típico, púrpura predominante em membros inferiores (principal pista), geralmente acompanhada de dor abdominal e artralgia com ou sem artrite. Não há teste laboratorial específico para a PHS. As dosagens do complemento e anticorpos antinucleares são normais. Os níveis de IgA sérica estão elevados em cerca de metade dos pacientes. Os testes da coagulação são normais. O aumento das plaquetas é raro. As provas de função renal e as dosagens de eletrólitos estarão alteradas nos casos de uma nefrite na fase aguda. A maioria dos pacientes não necessita de biópsia cutânea e/ou renal para o diagnóstico, com exceção daqueles que apresentem lesões atípicas na pele ou um acometimento renal grave.
A lesão cutânea característica da PHS é a vasculite leucocitoclástica com acúmulo de neutrófilos e células mononucleares perivasculares. Este achado histopatológico se refere ao rompimento dos leucócitos no tecido, em particular, aos debris nucleares característicos. Esta decomposição não é específica da PHS, mas fortalece a suspeita diagnóstica. Os estudos de imunofluorescência mostram a deposição de IgA e C3 na pele afetada. A causa da PHS é desconhecida, mas é provável que a IgA tenha um papel pivô na patogênese da doença.
A NPHS é caracteristicamente uma glomerulonefrite proliferativa focal segmentar. Há casos graves com uma glomerulonefrite rapidamente progressiva, que geralmente mostram um alto percentual de mudanças glomerulares crescentes na biópsia renal.
Quando a biópsia renal é necessária?
As indicações para biópsia renal, segundo McCarthy & Tizard são1:
Dano renal agudo/Síndrome nefrítica na fase inicial;Função renal normal associada à síndrome nefrótica persistente por 4 semanas;Índices de proteína/creatinina urinárias > 250mg/ mmol por 4 a 6 semanas, compatíveis com síndrome nefrótica, sem melhora espontânea;Proteinúria persistente: índices de proteína/creatinina urinárias > 100mg/mmol por mais de 3 meses deve ser considerada a biópsia se o diagnóstico é duvidoso;
Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial compreende: meningococcemia, dengue, lúpus eritematoso sistêmico, poliarterite nodosa, granulomatose de Wegener, vasculite de hipersensibilidade por reação a medicamentos, etc5. Todas estas doenças apresentam achados clínicos semelhantes à PHS, mas com características diferenciadas. A meningococcemia com quadro toxêmico e de rápida evolução. A dengue acompanhada de outros sintomas, como a diarreia e os vômitos associados à hemoconcentração, leucopenia e/ou a plaquetopenia. A granulomatose de Wegener tem acometimento do trato respiratório superior e inferior (sinusites, otites, infiltrados pulmonares) associada a acometimento renal, rash, artrite/ artralgia, etc. Na vasculite de hipersensibilidade por drogas, a história clínica é fundamental. A PHS também pode ocorrer com outras formas de doença autoinflamatória, como a febre familiar do Mediterrâneo em áreas endêmicas.
O tratamento
A PHS tem resolução espontânea em 94% das crianças e o tratamento com sintomáticos é a primeira escolha. Internações ocorrem em até 40% dos pacientes devido às manifestações agudas: dores intensas, artrite, hipertensão arterial, glomerulonefrite ou hemorragia gastrointestinal. Estudos sobre o curso natural e o tratamento da doença são limitados devido às reavaliações clínicas em períodos variáveis e as definições diferentes de gravidade e complicações.
Estudo retrospectivo, conduzido por Pamela et al.4, com 1988 crianças internadas, no período de 2000 a 2007, demonstrou que o tratamento se baseou em um ou a combinação dos seguintes medicamentos: corticosteroides (56%), opiáceos (36%), anti-inflamatórios não esteroidais (AINES, 35%) e anti-hipertensivos (11%). Antagonicamente, na classificação inicial dos pacientes, 1507 (73%) foram considerados como formas leves pela escala de gravidade publicada por Feudtner14. Apesar da falta de estudos bem controlados, o uso de corticosteroides parece ser uma prática clínica, que nem sempre segue critérios de gravidade.
As metanálises não demonstram relação entre o uso de corticosteroides, recorrência, cronicidade e prognóstico da PHS2.
A vasculite cutânea raramente necessita de tratamento. Raros estudos mostram sucesso com o uso de corticosteroides nas formas bolhosas10.
A artropatia debilitante pode ser tratada com AINES com rápida resolução. Num ensaio clínico de 171 pacientes randomizados para receber prednisolona oral ou placebo, a prednisolona reduziu a gravidade dos sintomas articulares e mostrou tendência para menor duração da dor, mas sem significância15.
Ainda não há ensaios clínicos randomizados que justifiquem a eficácia do uso dos corticoides nos sintomas gastrointestinais. Rosenblum & Winter16, em estudo não randomizado, demonstraram que os pacientes tratados com corticosteroides pareceram ter resolução mais rápida dos sintomas gastrointestinais, mas, em 72h, não houve diferença entre os grupos. Outro estudo, mais recente, randomizou 40 pacientes para receberem prednisolona ou placebo, nenhuma diferença foi observada no grau de acometimento gastrointestinal17.
Na vasculite grave do trato gastrointestinal, há registros bem sucedidos com o uso de metilprednisolona, imunoglobulina em doses imunomoduladoras e plasmaferése.
Zaffanello & Fanos18 realizaram extensa revisão sobre o tratamento da nefrite na PHS, não encontrando evidências substanciadas quanto à terapêutica adequada em relação à progressão para a insuficiência renal.
A indicação precoce dos corticosteroides previne ou ameniza o desenvolvimento da NPHS?
Em 1992, Mollica et al.19 publicaram estudo prospectivo com 164 crianças com PHA, sem nefrite, tratadas com prednisona ou sem tratamento. Nenhum paciente do grupo prednisona desenvolveu nefropatia dentro de 6 semanas, comparado com 12% (10/84) do grupo não tratado. Posteriormente, dois do grupo não tratado apresentaram nefropatia em 24 e 72 semanas. Contudo, desses 12 pacientes, somente dois tiveram doença persistente após 12 meses do início da PHS. O estudo não foi randomizado nem com grupo placebo controlado.
Outro estudo avaliou 353 crianças no início da PHS, que foram randomizadas para usar prednisolona ou placebo. Após 12 meses, não houve redução na prevalência de nefropatia entre os dois grupos20.
Recente revisão Cochrane demonstrou prognósticos semelhantes em relação à doença renal persistente no período de 12 meses entre os grupos tratados com placebo ou corticosteroides21.
As evidências mostram que a redução na incidência de nefrite com o uso precoce de corticosteroides é conflitante22.
Quando indicar corticosteroides na NPHS?
Deve-se considerar a gravidade do acometimento renal por si só ou a associação com outros achados clínicos? O prognóstico favorável é possível mesmo em pacientes com doença grave na fase inicial. Estudo com 78 crianças classificadas quanto à gravidade clínica e aos achados histológicos não evidenciou fatores que tivessem valor preditivo23. Outra revisão mostrou o risco relativo de 11,9 de comprometimento renal em longo prazo entre a apresentação nefrítica/nefrótica e a hematúria microscópica isolada24, embora mesmo alguns pacientes com sintomas clínicos graves iniciais tenham apresentado total recuperação. Especialistas recomendam que, nessas situações, a histopatologia poderá orientar o uso ou não dos corticosteroides. As indicações para biópsia foram citadas anteriormente.
Tratamento da doença renal estabelecida
O tratamento é direcionado para a prevenção da doença renal grave em longo prazo naqueles pacientes considerados de maior risco. Fatores associados ao prognóstico menos favorável são: grau de acometimento renal, pacientes com idade maior de 8 anos no início, acometimento abdominal grave, púrpura persistente e piora progressiva histológica da biópsia renal22.
Em função do número pequeno de crianças com NPHS grave, há a falta de estudos para estabelecer o benefício do tratamento. Apenas dois ensaios clínicos randomizados foram identificados pela Cochrane. Um comparou o uso exclusivo da ciclofosfamida com nenhum tratamento específico em crianças com PHS e índices nefróticos de proteinúria. O estudo não mostrou benefícios com a ciclofosfamida25. O segundo estudo não concluiu, estatisticamente, que a ciclosporina A pudesse ser mais efetiva que a prednisolona ou metilprednisolona na indução de remissão da doença renal26. Há outros registros de tratamento com prednisolona, metilprednisolona, ciclofosfamida, azotioprina, ciclosporina, dipiridamol, warfarina e plasmaferése, mas sem evidências que comprovem a melhor prática terapêutica na NPHS18. A maioria dos estudos é retrospectiva e com amostras populacionais pequenas. Os inibidores da ECA são a primeira escolha para a hipertensão arterial e devem ser considerados na proteinúria persistente. Na atualidade, os dados são insuficientes para a elaboração de diretrizes de tratamento na NPHS.
COMENTÁRIOS GERAIS
A PHS sem nefrite é autolimitada, com resolução na maioria dos pacientes com tratamento sintomático.
No caso apresentado, sem dúvida, o bom estado geral da paciente facilitou a decisão do uso exclusivo de sintomáticos.
É válido o comentário de que a paciente preencheu todos os critérios diagnósticos da PHS e a biópsia cutânea não foi realizada por não ser mandatória em casos típicos. Tivemos dúvidas em relação à antibioticoterapia, devido às leucocitoses com discreto desvio para a esquerda. Como já citado, o estreptococo beta-hemolítico do grupo A é um dos possíveis desencadeantes. Contudo, a clínica foi soberana e o aumento do número de leucócitos pode ser um achado na PHS. O uso de anti-hipertensivos é inquestionável, mas desnecessário no caso até a atualidade.
Estima-se, pelo menos, um episódio de recorrência em um terço dos pacientes, com destaque para as manifestações cutâneas e abdominais, num período até dois anos após o primeiro surto. O envolvimento renal nem sempre é detectável no início da doença e é a principal complicação tardia. Ocorre em 10% a 50% dos pacientes, geralmente nos primeiros três meses da doença. As alterações mais frequentes são hematúria microscópica e proteinúria leve. As menos comuns são a síndrome nefrótica e a hipertensão arterial, podendo estar relacionadas com pior evolução. O EAS deve ser monitorado inclusive nos assintomáticos.
A incidência de artrite e/ou artralgia varia em torno de 50% a 80% dos pacientes. Não há dados mencionados na literatura que relacionem a presença de artrite e a cronicidade da PHS, mesmo porque o comprometimento articular é comum.
A rotina laboratorial mínima inicial: hemograma, bioquímica, EAS, TAP, PTT nem sempre é realizada, como mostrado por estudos. Esses exames são disponíveis inclusive em unidades primárias.
Os poucos estudos epidemiológicos internacionais e nacionais demonstram que as variações de conduta não refletem diferenças nos quadros clínicos dos pacientes. Estudos futuros deverão avaliar se as diferenças de tratamento e de acompanhamento das crianças com PHS estão ou não associados com as respostas clínicas.
Ressalta-se que, pelo SUS, os pacientes internados em emergências com doenças que necessitem de acompanhamento em outras unidades podem ser remanejados pelo Sistema de Regulação (SISREG) ou pelo Núcleo Interno de Regulação ao nível municipal, estadual e federal.
Desta forma, a paciente foi acompanhada no HMMC até a alta hospitalar, com seguimento posterior no Setor de Reumatologia e Imunologia do HFSE, criando uma rede única de assistência de saúde.
AGRADECIMENTOS
Aos responsáveis pela Revista Residência Pediátrica, em especial, aos professores: Dra. Sandra Mara Moreira Amaral e Dr. Clemax Couto Santanna, pelo incentivo aos jovens médicos na prática pediátrica desde o ensino, a assistência e a pesquisa, fortalecendo o conhecimento contínuo e a sabedoria do exercício médico; aos pais da paciente pelo consentimento da publicação e a todos os pediatras e residentes do Hospital Municipal Miguel Couto e a outros profissionais da saúde das Emergências do RJ, onde cada vez mais necessitamos de estímulos para os novos e antigos operadores numa política de Integração, Educação, Trabalho e Respeito em Saúde.
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1. Pediatra do Hospital Municipal Miguel Couto/RJ e Alergista e Imunologista do Hospital Federal dos Servidores do Estado/RJ.
2. Residente do 2° ano do Serviço de Pediatria do Hospital Municipal Miguel Couto/RJ.
3. Ex-Residente do Serviço de Pediatria do Hospital Municipal Miguel Couto/RJ.