ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Ponto de Vista - Ano 2020 - Volume 10 - Número 2

Emoções: Um movimento propulsor em tempos de COVID-19

Emotions: a propellant motion in COVID-19 times

RESUMO

OBJETIVOS: Descrever a experiência de uma residente de pediatria durante a pandemia do COVID-19.
MÉTODOS: Relato de experiência.
RESULTADOS: Reconhecer as emoções e o processo de luto durante a pandemia.
CONCLUSÃO: Saber usar as emoções como um movimento propulsor na formação pessoal e profissional.

Palavras-chave: Internato e Residência, Luto, Infecções por Coronavírus, Emoções.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To describe the experience of a pediatric resident in the COVID-19 pandemic.
METHODS: Experience report.
RESULTS: Recognize emotions and the grieving process during the pandemic.
CONCLUSION: Know how to use emotions as a propelling movement in personal and professional training.

Keywords: Internship and Residency, Grief, Coronavirus Infections, Emotions.


Em 2020, iniciar a residência de pediatria na semana seguinte à divulgação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil, trouxe consigo um sentimento inesperado e contraditório: a alegria do ingresso tão almejado passou a ser associada a questionamentos quanto à manutenção da saúde individual e coletiva, bem como se o programa de residência médica seria reestruturado ou até mesmo paralisado.

Primeiramente, houve a necessidade de construção e implementação pelo próprio serviço de saúde, de novos protocolos de controle de infecção, de remanejamento de alas e setores em função de um maior número de pacientes com quadros respiratórios. Nesta fase, pude utilizar os inúmeros fluxogramas institucionais de atendimento ao paciente com quadro suspeito ou confirmado de COVID-19, os quais sofriam revisões semanais, na tentativa de acompanhar a evolução natural da doença e sua epidemiologia. Seguiram-se treinamentos como de paramentação e intubação orotraqueal, e instituiu-se o uso obrigatório de equipamentos de proteção individual (EPIs) em todos os atendimentos, além do reforço contínuo quanto a higienização das mãos e ambientes.

Estar inserida num hospital de ponta no Brasil, referência nacional em diversas tecnologias e pesquisas em saúde, possibilitou vivenciar a mudança no atendimento médico local e suas repercussões em âmbito nacional. Mesmo assim foram necessárias adaptações, para garantir a qualidade do ensino ao residente, como a transformação de aulas teóricas e reuniões, que seriam presenciais, em virtuais, e remanejamento de algumas atividades em ambulatório, por exemplo.

Observou-se, também, um declínio no número de pacientes pediátricos que acessavam os serviços médicos. A infecção pelo SARS-Cov-2 não só se mostrou menos grave nas crianças, mas também, o isolamento social, com escolas e ambientes públicos fechados, permitiu que estas adoecessem menos.

Nas atividades da residência, entretanto, houve pouco prejuízo em termos de conhecimento especializado, uma vez que a preceptoria e o corpo clínico esmeraram-se por manter os residentes atualizados (através de discussão de artigos científicos sobre a COVID-19, alocação de recursos, bioética e apresentação virtual de dados da pandemia), além de cumprir o cronograma de temas a serem estudados durante os primeiros meses de residência.

A residência neste contexto global, trouxe desafios ainda maiores e impensáveis, que vão além da área técnica1. Ao processo de adaptação somou-se a uma grande carga emocional e a tentativa de manter a saúde mental em meio à pandemia.

Vivenciar o medo e as incertezas desta nova doença e como isso afetaria a mim, meus familiares, amigos e pacientes, adicionado a preocupação da família por estar atuando na linha de frente da pandemia, gerou angústia e provocou uma sensação de incapacidade e vulnerabilidade.

Em meio a esses sentimentos, me deparei com uma entrevista2 de David Kessler, principal especialista em luto no mundo e coescritor com Elisabeth Kübler-Ross do livro “On grief and grieving: finding the meaning of grief through the five stages of loss”, na qual relatava estarmos vivendo um momento de luto à nível pessoal e populacional. Quando questionado sobre haver mais de um tipo de luto, ele respondeu que o luto antecipado seria o sentimento que temos sobre o que o futuro reserva quando é incerto.

Compreendendo que os estágios do luto podem não ser lineares, acontecendo por vezes em uma ordem diferente da descrita por Kübler-Ross, realizei uma tradução livre da entrevista, contextualizando para a residência médica: a negação, normalmente o estágio inicial do luto, poderia nos fazer pensar “este vírus não vai me afetar ou afetar a minha residência”. A raiva: “o isolamento social está me obrigando a ir de casa para o trabalho, e vice-versa, além de estar prejudicando minhas atividades da residência e de lazer”. A barganha: “ok, se estabelecermos o distanciamento social por algumas semanas e usarmos corretamente os EPIs, tudo vai melhorar, né?”. A tristeza: “eu não sei quando isto vai terminar e se vou terminar minha residência no tempo certo”. E, finalmente, a aceitação: “isto está acontecendo; eu descobri como lidar com isso durante a residência”.

Entendi, então, estar vivenciando um luto. O luto pelas vidas que não foram salvas. O luto pelos profissionais da saúde ao redor do mundo que tiveram que exercer a profissão com poucas condições de segurança e infraestrutura. O luto por não estar próximo da família e por não ter poderes especiais que não os deixassem adoecer.

Não obstante, como disse Kessler na entrevista, na aceitação está o nosso poder, nela temos algum controle. É preciso reconhecer e acolher as emoções sentidas durante esta pandemia e tentar canalizá-las de forma a vivenciar o presente, sem medo do futuro, aproveitando a residência médica como uma oportunidade não só de crescimento profissional, mas também, pessoal. Os ganhos em todas as áreas são enormes.

Meu desejo é que nós, residentes de pediatria, possamos usar nossas emoções como um movimento propulsor para nos tornarmos humanos e médicos melhores e com isso oferecermos aos nossos pequenos pacientes o nosso melhor, com amor, ciência e esperança.


REFERÊNCIAS

1. Sant’Anna MFBP. Coronavírus: a pandemia da dor e do despertar da Medicina!. Resid Pediatr. 2020;10(2):1. DOI: https://doi.org/10.25060/residpediatr-2020.v10n2-01

2. Berinato S. That discomfort you’re feeling is grief. Harvard Business Review [Internet]. 2020 Mar; [acesso em 2020 Mar 30]. Disponível em: https://hbr.org/2020/03/that-discomfort-youre-feeling-is-grief










Hospital Israelita Albert Einstein, Programa de Residência Médica de Pediatria - São Paulo - SP - Brasil

Endereço para correspondência:
Damaris Bueno Venâncio
Hospital Israelita Albert Einstein. Rua Professor Gabizo, nº 319, Maracanã
Rio de Janeiro - RJ. Brasil. CEP: 20271-065
E-mail: damaris.venancio@einstein.br

Data de Submissão: 30/06/2020
Data de Aprovação: 01/07/2020