Ponto de Vista - Ano 2020 - Volume 10 - Número 2
O cisne negro, a pediatria e o novo coronavírus
The Black Swan, Pediatrics And The New Coronavirus
Antes da descoberta da Austrália, as pessoas do mundo antigo estavam convencidas de que todos os cisnes eram brancos. Esta era uma crença inquestionável por ser absolutamente confirmada por evidências empíricas. Deparar-se com o primeiro cisne negro pode ter sido uma surpresa interessante para cientistas. Ela ilustra uma limitação severa no aprendizado por meio de observações ou experiências e a fragilidade de nosso conhecimento.
Em seu livro, A lógica do cisne negro, o autor Nassim Taleb defende que em Economia estamos constantemente à mercê do inesperado. A estes acontecimentos imprevisíveis o autor deu o nome de Cisne Negro. Um Cisne Negro é um evento com três características altamente improváveis: é imprevisível, ocasiona resultados impactantes e, após sua ocorrência, inventamos um meio de torná-lo menos aleatório e mais explicável. Para Taleb, os cisnes negros são a base de quase tudo o que acontece no mundo, da ascensão das religiões à nossa vida pessoal. Por que não reconhecemos o fenômeno antes que ele ocorra? Parte da resposta, segundo o autor, deve-se ao fato de, em geral, os seres humanos se limitarem a aprender conteúdos específicos em vez de adquirir sabedoria em diversas áreas do conhecimento. Concentramo-nos no que já sabemos e evitamos cada vez mais o desconhecido. Enquanto isso, grandes eventos surpreendem a todos e transformam a sociedade.
O evento tem um impacto extremo para quem o sofreu, ainda que ele tenha sido formado silenciosamente e surja de maneira explícita para quem não estava preparado.
Fomos surpreendidos seriamente pela pandemia de coronavírus, que assola o mundo e nos assusta.
Na Medicina enfrentamos a maior crise da nossa geração, talvez comparada a outras grandes epidemias, como a gripe espanhola ou a peste negra. Não estávamos preparados. Os desafios nos exigiram e continuam exigindo soluções que não estavam nos livros de Medicina. É uma guerra contra o inimigo invisível.
A Pediatria ficou inicialmente mais tranquila, pois a pandemia estaria poupando crianças e adolescentes, da mesma forma que acreditávamos que regiões tropicais não seriam tão afetadas. Confiamos que a maioria dos cisnes seriam brancos.
Estamos tendo relatos de crianças acometidas, com manifestações atípicas e aparecimento de síndromes relacionadas ao Covid-19 como a Síndrome Inflamatória Multissistêmica.
A SPSP tem publicado em seu site assuntos relacionados às especificidades da doença em pacientes pediátricos, focando suas particularidades em crianças e adolescentes.
Devemos ser otimistas, sim, mas sem estar alheios a uma nova cor exótica de um cisne.
Segundo o brilhante historiador Yuval Harari, essa tempestade passará. Porém as decisões que tomarmos hoje mudarão nossa vida nos anos vindouros.
Quando escolhemos entre alternativas, não somente devemos nos perguntar como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos assim que passar a tormenta. Sim, passará. A humanidade sobreviverá, a maioria de nós seguiremos vivos, porém habitaremos um mundo diferente.
Muitas medidas de emergência de curto prazo se tornarão em hábitos de vida. Essa é a natureza das emergências. Entram em serviço tecnologias imaturas e inclusive perigosas, porque os riscos de não fazer nada são maiores.
Precisamos passar orientações corretas e principalmente confiança. Um dilema que nos apresentou neste momento, é que nem toda população acredita e confia na ciência, nas autoridades públicas e nos meios de comunicação.
Ainda segundo Harari, a epidemia do coronavírus é uma grande prova de cidadania. Nos próximos dias, cada um de nós terá que escolher entre confiar em dados científicos e especialistas em atenção médica, ou em teorias conspiratórias infundadas e políticos interesseiros.
Coloco aqui um contraponto para reflexão: a atual pandemia poderia mesmo ser classificada como um cisne negro?
Em 2015, Bill Gates proferiu uma palestra na qual disse que se algo matasse milhões de pessoas nas próximas décadas, seria mais provável que fosse um vírus altamente contagioso do que uma guerra. Não mísseis, mas microrganismos. Afirmou também que estávamos investindo muito em estratégias antinucleares, mas muito pouco em um sistema que pudesse deter uma epidemia. Não estávamos preparados para uma próxima epidemia. Não tínhamos um grupo de epidemiologistas prontos para agir. Não tínhamos uma equipe médica pronta para agir. Não tínhamos uma forma de preparar pessoas. Fomos muito mais lentos para verificar abordagens de tratamento, para avaliar o processo de diagnóstico, para ver quais ferramentas deveriam ser usadas.
Podemos então considerar como cisne negro esta pandemia?
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1. Hospital Israelita Albert Einstein, Pediatria - São Paulo - SP - Brasil
2. Presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo
Endereço para correspondência:
Sulim Abramovici
Sociedade de Pediatria de São Paulo
Rua Maria Figueiredo, nº 595, 10º andar, Paraíso
São Paulo - SP. Brasil. CEP 04002-003
E-mail: sulim@uol.com.br
Data de Submissão: 15/06/2020
Data de Aprovação: 17/06/2020