Artigo de Revisao
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Ano 2020 -
Volume 10 -
Número
2
Transmissão vertical da COVID-19: uma revisão integrativa
Vertical transmission of COVID-19: an integrative review
Virginia Resende Silva Weffort; Barbara Rocha Rodrigues; Eduardo Oliveira Prado; Natalia Vieira Inácio Calapodopulos; Kellen Cristina Barbosa Kamimura Silva; Valeria Cardoso Alves Cunali
RESUMO
INTRODUÇÃO: A atual pandemia da COVID-19 suscita a necessidade de conhecimento sobre o impacto do novo coronavírus sobre a saúde da humanidade de maneira global. Até o momento, poucas evidências foram relatadas sobre a possibilidade de transmissão vertical da doença.
OBJETIVO: Apresentar evidências científicas, com base em revisão integrativa da literatura, sobre a possibilidade de transmissão vertical da COVID-19.
MÉTODOS: O levantamento bibliográfico foi realizado através das bases bibliográficas MEDLINE, na interface U.S. National Library of Medicine and the National Institute Health (PubMed); Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Cochrane. Os descritores foram selecionados utilizando-se Medical Heading Terms (MeSH): “transmissão vertical”, “neonatologia”, “COVID-19”, “SARS-CoV-2”. A busca limitou-se aos artigos em inglês, espanhol e português, com data de publicação dos últimos 10 anos (2010 a 2020). Selecionou-se 14 estudos dentre relato de caso, revisão de literatura, editorial e série de casos.
CONCLUSÃO: Alguns estudos demonstram a existência de transmissão vertical da COVID-19, enquanto outros consideram que os dados apresentados não sustentam tal afirmativa. Portanto, mais estudos são necessários para uma adequada comprovação.
Palavras-chave:
Transmissão Vertical de Doença Infecciosa Neonatologia Infecções por Coronavírus Betacoronavirus.
ABSTRACT
INTRODUCTION: The current pandemic of COVID-19 raises the need for knowledge about the impact of the new coronavirus on the health of humanity globally. To date, little evidence has been reported on the possibility of vertical transmission of the disease.
OBJECTIVE: To present scientific evidence, based on an integrative literature review, on the possibility of vertical transmission of COVID-19.
METHODS: The bibliographic survey was carried out through the MEDLINE bibliographic bases, in the U.S. National Library of Medicine and the National Institute Health (PubMed) interface; Latin American and Caribbean Literature on Health Sciences (LILACS) and Cochrane. The descriptors were selected using Medical Heading Terms (MeSH): “vertical transmission”, “neonatology”, “COVID-19”, “SARS-CoV-2”. The search was limited to articles in English, Spanish and Portuguese, with publication date of the last 10 years (2010 to 2020). 14 studies were selected from case report, literature review, editorial and case series.
CONCLUSION: Some studies demonstrate the existence of vertical transmission of COVID-19, while others consider that the data presented do not support this statement. Therefore, further studies are needed for adequate proof.
Keywords:
Infectious Disease Transmission Vertical Neonatology Coronavirus Infections Betacoronavirus.
INTRODUÇÃO
No final de 2019, foi identificado na província de Wuhan, na China, um novo coronavírus, nomeado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como COVID-19/SARS-CoV-21. O SARS-CoV-2 faz parte de uma grande família de RNA vírus, que causa doenças que variam desde um resfriado comum a condições mais graves e potencialmente fatais, com intenso comprometimento pulmonar2.
A infecção por SARS-CoV-2 é transmitida principalmente por gotículas, entretanto, conhecendo a fisiopatologia viral, é importante questionar outras formas de transmissão, sobretudo a transplacentária3. O coronavírus infecta células humanas por ligações de proteínas das espículas virais a-receptores celulares, como as moléculas da enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2) e a serina protease transmembrana 2 (TMPRSS2), ambas com atividade de protease e amplamente expressas em diversos tecidos e órgãos humanos, dentre eles o útero e a placenta4,5,6.
Chen et al.7, avaliaram por RT-PCR, a presença do SARS-CoV-2 em amostras obtidas do líquido amniótico, sangue do cordão umbilical, esfregaço da garganta neonatal e leite materno de seis pacientes com objetivo de analisar os possíveis potenciais de transmissão vertical da COVID-19. Os autores não encontraram evidência de transmissão vertical no final da gravidez7. Dados semelhantes foram mostrados por Zhu et al.8 que não encontraram evidências de transmissão congênita de SARS-CoV-2.
Por outro lado, Zeng et al.9 mostraram a presença de IgM e IgG no soro de crianças nascidas de mães com pneumonia por COVID-19. Entretanto, Procianoy et al.10 consideram que esses achados não são suficientes para confirmar a transmissão congênita da infecção.
Diante destes achados propôs-se a realização de uma revisão integrativa da literatura acerca da análise das evidências sobre a transmissão vertical da COVID-19.
REVISÃO DA LITERATURA
Para o levantamento bibliográfico, foram realizadas buscas de dados nas bases bibliográficas MEDLINE, na interface U.S. National Library of Medicine and the National Institute Health (PubMed); Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Cochrane.
Para compor a estratégia de busca, os descritores foram selecionados utilizando-se Medical Subject Heading Terms (MeSH). Os termos foram utilizados na busca na base de dados MEDLINE e posteriormente adaptados e traduzidos para espanhol e português, para a busca em outras bases de dados. Foram utilizados os seguintes descritores “transmissão vertical”, “neonatologia”, “COVID-19” e “SARS-CoV-2”.
Os critérios de inclusão definidos para seleção dos artigos foram artigos publicados em inglês, português e espanhol, com temática referente à revisão do período gestacional e neonatal e com população referente aos filhos de mães com COVID-19. Os critérios de exclusão referem-se a estudos com animais, estudos com seres humanos que não contemple a faixa etária e que não tenha associação com COVID-19. Foram considerados os últimos 10 anos (2010 a 2020) como limite temporal para a busca bibliográfica.
No intuito de eliminar a duplicidade de artigos, os documentos foram ordenados por títulos e autores, sendo excluídos os que apareceram mais de uma vez (PubMed e MEDLINE, PubMed e LILACS eram as mesmas referências). Para a seleção dos estudos, foi realizada uma revisão dos títulos e resumos. Após a primeira revisão foram selecionados 30 artigos da base de dados da PubMed e nenhum da Cochrane. Posteriormente, foi realizada nova avaliação dos textos na íntegra, resultando na exclusão de 16 artigos e seleção de 14 artigos da PubMed.
DISCUSSÃO
Um dos primeiros estudos, realizado por Dong et al.11 sugeriram para o comportamento do vírus uma possibilidade de transmissão vertical. O estudo avaliou um recém-nascido, nascido de parto cesárea, filho de mãe com COVID-19, que apresentou níveis elevados de IgM, IgG e citocinas inflamatórias horas após o parto. Os níveis elevados de IgM no RN sugerem fortemente a possibilidade de transmissão vertical, já que a mesma não ultrapassa a placenta. O resultado dos RT-PCR de swab nasofaríngeo foram repetidamente negativos e o recém-nascido se manteve assintomático11.
Penfield et al.12 avaliaram amostras placentárias e membranas amnióticas de gestantes com diagnóstico de COVID-19 consideradas graves no período periparto. Foram realizados swabs placentários e de membranas amnióticas de 11 pacientes, sendo encontrado RNA de SARS-CoV-2 em amostras de 3 pacientes, com recém-nascidos com testes RT-PCR negativos e assintomáticos do 1º ao 5º dia de vida. Mesmo sem sinais clínicos que evidenciam a transmissão vertical, como a contaminação do recém-nascido, os achados de RNA viral nas amostras de placentas e membranas sugerem exposição vertical12.
Tais evidências fomentam estudos para investigar a via de transmissão do vírus, transplacentária ou durante o período intraparto, uma vez que foram isoladas partículas virais de SARS-CoV-2, em amostras de vias aéreas superiores e ânus de recém-nascidos, filhos de mães sintomáticas positivas para COVID-19, de forma precoce, no segundo e no quarto dia de vida. Estes achados suscitam uma gama de questionamentos, dado que o teste colhido por técnica de swab anal e nasofaríngeo ocorreu após a exposição do recém-nascido a fluidos maternos durante o período intraparto, com outras possibilidades de contágio além da via transplacentária9.
Diante da dificuldade de caracterizar a transmissão vertical de SARS-CoV-2, uma vez que alguns autores relataram apenas a presença de anticorpos IgM específicos11, enquanto outros detectaram partículas virais, porém, não esclareceram sua origem9,12, foi proposta uma sistematização do diagnóstico de transmissão neonatal. O sistema de Shah et al.13 propõe cinco categorias: transmissão confirmada, provável, possível, improvável e não infectado, sendo a primeira e última categoria consideradas absolutas e confirmatórias. Para se enquadrar em uma categoria, o sistema de classificação leva em consideração os sintomas e os resultados dos testes maternos, o estado clínico do recém-nascido ao nascimento e os resultados dos testes neonatais13.
Com base nesta classificação, Vivantini et al.3 realizaram um estudo que comprovou a transmissão transplacentária de SARS-CoV-2. O trabalho descreve uma gestante comprovadamente infectada e sintomática, que foi submetida à cesariana com membranas amnióticas íntegras. Foram coletadas amostras do líquido amniótico, sangue e de lavado broncoalveolar do recém-nascido, além disso, foram coletadas amostras por swab orofaríngeo e retais após limpeza, na primeira hora de vida. A placenta ainda foi avaliada para presença viral. Todas as amostras foram positivas para SARVS-CoV-2.
De acordo com o Sistema de Classificação para Infecções Materna-Fetal-Neonatal SARS-CoV-2, uma infecção congênita neonatal é considerada comprovada quando partículas virais são detectadas no líquido amniótico antes da ruptura ou no sangue do recém-nascido no início da vida, sendo este caso enquadrado como transmissão vertical3. Não somente a transmissão transplacentária ficou evidente, mas o estudo ainda descreve sintomas inespecíficos do recém-nascido, durante o segundo dia de vida, como irritabilidade, hipertonia axial e opistótono, com ressonância magnética posterior demonstrando gliose bilateral da matéria periventricular e subcortical branca profunda. Estas imagens são semelhantes às encontradas em pacientes adultos que apresentam inflamação vascular por SARS-CoV-23,14.
Em revisão da literatura, Rasmussen et al.15 não evidenciaram transmissão em útero, enquanto Yu et al.16 e Procianoy et al.10 consideraram importante haver maiores evidências para avaliar a transmissão vertical. Peng et al.17 acompanharam um recém-nascido prematuro com exames negativos, filho de mãe com COVID-19 e Liu et al.18 acompanharam 19 recém-nascidos, filhos de mães positivas para COVID-19, todos com resultados negativos. No Quadro 1 consta a síntese dos artigos selecionados para esta revisão.
CONCLUSÃO
A atual pandemia da COVID-19 suscita a necessidade de conhecimento sobre o impacto do SARS-CoV-2 sobre a saúde da humanidade de maneira global, a curto, médio e longo prazo. Até o momento, poucas evidências foram relatadas sobre a possibilidade de transmissão vertical da doença.
Alguns estudos têm demonstrado que a transmissão vertical é possível e seus critérios de classificação são claramente propostos. Outros mostram que o potencial de transmissão vertical intrauterino da COVID-19 no primeiro e no segundo trimestres ainda é desconhecido. Foram sugeridas repercussões fetais e neonatais quando a doença foi adquirida no terceiro trimestre de gestação. Alguns autores encontraram amostras negativas, por técnicas de RT-PCR em diferentes materiais coletados de recém-nascidos, filhos de mães com COVID-19 confirmada. Ao passo que existe evidência de sorologia (IgM e IgG) positiva em sangue de recém-nascido filho de mãe com COVID-19 confirmada.
Nesse sentido, estudos de alta qualidade são primordialmente necessários para evidenciar claramente a possibilidade de transmissão vertical da COVID-19 e os riscos de repercussões da infecção grave em mulheres grávidas e seus conceptos. Assim, alguns estudos reforçam a importância do acompanhamento dos recém-nascidos, filhos de mães que tiveram COVID-19 confirmada, independentemente do período gestacional, da intensidade das manifestações clínicas ou mesmo se assintomáticas, visto que estes podem apresentar um desconhecido arsenal de comprometimentos futuros, secundários à infecção propriamente ou como consequência das reações inflamatórias maternas observadas durante a infecção pelo SARS-CoV-2.
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Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Departamento de Pediatria - Uberaba - MG - Brasil
Endereço para correspondência:
Virginia Resende Silva Weffort
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Rua Frei Paulino, 30 - Nossa Sra. da Abadia, Uberaba - MG, 38025-180
E-mail: virginiaweffort@gmail.com
Data de Submissão: 22/06/2020
Data de Aprovação: 24/06/2020