ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 1

COVID-19 em Pediatria: Relato de um caso com múltiplas complicações e bom desfecho clínico

COVID-19 in pediatrics: case report with many complications and a good clinical outcome

RESUMO

A doença do coronavírus 2019 (COVID-19) é uma doença infecciosa aguda responsável pela emergência de uma nova pandemia mundial. Em crianças, a infecção é muito menos prevalente do que em adultos, além de, na maioria dos casos, resultar em sintomas leves ou assintomáticos. Os casos graves representam menos de 1% do total, de forma que as informações sobre a doença nessa faixa etária são escassas em comparação com os dados em indivíduos mais velhos. Descrevemos o caso de um adolescente do sexo masculino, 16 anos de idade, com diagnóstico prévio de mielomeningocele, hidrocefalia com derivação ventrículo-peritoneal (DVP), infecções de repetição do trato urinário, epilepsia e obesidade. O paciente iniciou com tosse e crise convulsiva e evoluiu durante internamento, com síndrome respiratória aguda grave por SARS-CoV-2, necessidade de ventilação mecânica invasiva (VMI) por 9 dias, choque séptico e parada cardiorrespiratória. Apresentou, também, diversas outras complicações e fatores de prognóstico ruim, tais como elevação de marcadores inflamatórios (proteína C-reativa, D-dímero), aumento de troponina cardíaca e necessidade de terapia de substituição renal, fatores esses relacionados à maior gravidade e ao risco de óbito. Apesar disso, apresentou bom desfecho clínico, com alta para domicílio após 40 dias de internamento em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica.

Palavras-chave: Síndrome Respiratória Aguda Grave, Criança, Cuidados Críticos, Respiração Artificial.

ABSTRACT

Coronavirus disease 2019 (COVID-19) is an acute infectious disease that caused the emergence of the new serious global pandemic. The infection in children is much less prevalent than in adults and most cases are asymptomatic or have mild symptoms. Severe cases represent less than 1% of the total, therefore information about the disease in this age group is scarce compared to data in older individuals. We exposed a case of a 16-year-old male adolescent with a previous diagnosis of myelomeningocele, hydrocephalus with peritoneal ventricle bypass (PVB), recurrent urinary tract infection, epilepsy, and obesity. The patient presented cough and convulsive crises, which worsened during hospitalization with severe acute respiratory syndrome due to SARS-CoV-2, septic shock, and cardiorespiratory arrest and invasive mechanical ventilation (IMV) for 9 days was required. Also presented several other complications and factors of critical prognosis, such as elevated inflammatory markers (C-reactive protein, D-dimer), elevated cardiac troponin, and the necessity of renal replacement therapy. Nevertheless, the clinical outcome was satisfactory and he was discharged after a 40-day stay in the Pediatric Intensive Care Unit.

Keywords: Severe Acute Respiratory Syndrome, Child, Critical Care, Respiration, Artificial.


INTRODUÇÃO

A doença do coronavírus 2019, chamada de COVID-19, causada pelo SARS-CoV-2, é uma infecção respiratória aguda potencialmente grave, responsável pela gravidade da nova pandemia declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em janeiro de 2020, a qual teve início na China, no final de 20191,2.

As formas graves da doença representam cerca de 14% dos casos2. Em crianças, porém, a infecção é relatada com frequência menor do que entre os adultos, apresentando-se geralmente com sintomas leves e autolimitados1.

Dessa forma, os dados em infantes são muito escassos em relação à literatura já publicada sobre essa infecção em adultos. Estudos sugerem que a presença de comorbidades pode estar relacionada ao desenvolvimento de formas graves de COVID-19 em crianças3,4.

Neste cenário, relatamos o caso de um adolescente com COVID-19 crítica, em um contexto com a presença de diversos fatores relacionados à gravidade e às complicações, mas com bom desfecho clínico.


RELATO DE CASO

Paciente masculino, 16 anos, portador de mielomeningocele e hidrocefalia com derivação ventrículo peritoneal (DVP), com história de infecções de repetição do trato urinário, epilepsia e obesidade grau II [índice de massa corporal = 36,7]. Iniciou com tosse seca e ausência de febre. No mesmo dia, deu entrada no serviço de origem por crises convulsivas, sendo submetido à intubação orotraqueal (IOT), por rebaixamento de nível de consciência, e foi encaminhado à Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) de nosso serviço.

Ao exame físico, apresentava crepitações à ausculta pulmonar bilateralmente, sem sinais de instabilidade hemodinâmica. Nos exames laboratoriais da admissão, apresentava: leucopenia (3300/µL), bastonetose (20%), proteína C-reativa de 39,8mg/L (VR: <10mg/L). Os exames de transcrição reversa e de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR) para SARS-CoV-2 foram positivos, painel viral (RT-PCR) e teste para influenza - através de imunocromatografia rápida - negativos, tendo sido esses exames realizados cerca de 48h do início dos sintomas. Radiografia torácica evidenciava opacidades bilaterais. Os achados de tomografia computadorizada de tórax encontram-se nas Figuras 1 e 2.


Figura 1. Opacidades em vidro-fosco multifocais de distribuição lobular/"pseudonodular" (seta) e subpleural (seta dupla), tipicamente vistas em pneumonia SARS-CoV-2. Porém, devido ao predomínio peribroncovascular, a classificação tomográfica foi de achados de imagem indeterminados9.


Figura 2. Reconstrução coronal demonstrando opacidades em vidro-fosco multifocais peribroncovasculares e subpleurais.



No dia da admissão apresentou extubação acidental e foi mantido com oxigenoterapia em máscara não-reinalante. Foi iniciada terapêutica com hidroxicloroquina e azitromicina, além de ceftriaxona, empiricamente, por alteração de marcadores infecciosos. Após dois dias do internamento na UTIP, evoluiu com piora do padrão respiratório e síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), necessitando de IOT com ventilação mecânica invasiva (VMI) em altos parâmetros, embora demonstrasse complacência pulmonar adequada.

No quinto dia de internação, evoluiu com choque séptico de foco urinário - por Klebsiella pneumoniae produtora de beta-lactamase de espectro estendido (ESBL), havendo necessidade de uso de múltiplas drogas vasoativas e corticoterapia por choque refratário. Apresentou parada cardiorrespiratória (PCR) por 4 minutos em contexto de instabilidade hemodinâmica grave e isquemia miocárdica, evidenciada através de marcadores eletrocardiográficos (supradesnivelamento de segmento ST) e laboratoriais [troponina 198pg/mL (VR: <19pg/mL) e CK-MB 38U/L (VR: <16U/L)]. Evoluiu com insuficiência renal aguda, sinais de sobrecarga hídrica, com necessidade de terapia de substituição renal (TSR) com hemodiafiltração venovenosa contínua, seguida por hemodiálise convencional. Apresentou, também, aumento seriado de D-dímero de até 15.105µg/L (VR: <500µg/L) sendo anticoagulado com heparina não fracionada, escolhida devido à alteração de função renal e uso de TSR. Foi extubado após nove dias de VMI, com RT-PCR para SARS-CoV-2 negativo, decorridos 30 dias da admissão. Na sequência, apresentou disfunção de DVP, sendo submetido à drenagem ventricular externa (DVE), posteriormente revertida para DVP. Recebeu alta hospitalar após 40 dias de internação.

Os principais resultados de exames laboratoriais, conforme evolução temporal, encontram-se na Tabela 1.




COMENTÁRIOS

Descrevemos um caso grave de COVID-19 em um adolescente de 16 anos de idade, com presença de diversos indicadores relacionados a uma forma mais grave da doença, mas com desfecho favorável.

Sabe-se que, embora as crianças sejam mais vulneráveis às doenças, a maioria dos casos de COVID-19 são leves, o que totaliza uma porcentagem muito menor da doença nesse público do que em adultos3,5. O primeiro estudo retrospectivo avaliando a doença em pacientes pediátricos analisou 2143 casos na China, onde menos de 1% apresentava doença grave ou crítica, e mais da metade apresentava doença leve6. A literatura disponível acerca da epidemiologia demonstra uma incidência de 3% de doença grave e 0,6% de doença crítica nessa faixa etária1.

Nosso paciente apresentou, inicialmente, sintomas respiratórios discretos, sendo hospitalizado, naquela ocasião, por sintomas neurológicos (crise convulsiva). Em crianças internadas com COVID-19 em UTIP, nos Estados Unidos (EUA) e no Canadá, observou-se, também, que os sintomas respiratórios inicialmente não foram tão sérios, com admissão em UTIP por outros motivos3. Nesse contexto, nota-se a importância de um alto índice de suspeita para a doença nessa população, já que se apresentam, muitas vezes, assintomáticos, com sintomas leves ou até mesmo com ausência de indícios respiratórios, sendo a presença de sinais gastrointestinais – que podem ser a única manifestação clínica em pediatria – mais comum do que em adultos1.

Em pacientes pediátricos, os dados são limitados quanto aos possíveis fatores de risco associados à doença crítica por SARS-CoV-2. Em análise de 345 casos, as comorbidades mais prevalentes foram: asma, transtornos neurológicos, diabetes, obesidade, doença cardiovascular e doenças malignas/hematológicas1. Estudo realizado em Nova Iorque avaliou características clínicas e desfechos de casos críticos em crianças e adolescentes com COVID-19 e demonstrou que a presença de comorbidades, incluindo a obesidade, tem sido descrita como um dos fatores de risco para agravamento da doença nos pequenos. Além disso, foi sugerido que um subgrupo de pacientes pediátricos possa desenvolver a doença grave quando apresentar marcadores de inflamação significativamente mais altos: proteína C-reativa, pró-peptídeo natriurético atrial (BNP) e procalcitonina, o que, provavelmente, contribui para a alta taxa de SDRA nesses pacientes. Também foi observada sepse grave e choque séptico em 53,8% dos pacientes da UTIP, SDRA em 77% e necessidade de uso de VMI com média de 9 dias em 46,2%, sendo evidente a correlação do marcadores citados com o caso exposto4.

Sabe-se que a COVID-19 está associada a uma alta carga inflamatória, o que pode resultar em complicações cardiovasculares - miocardite, insuficiência cardíaca, arritmias, síndrome coronariana aguda, deterioração rápida e morte súbita - tendo o nosso paciente apresentado instabilidade hemodinâmica grave associada à isquemia miocárdica e PCR na ocasião1. Não ficou evidente se a insuficiência cardíaca sistólica aguda no contexto desta infecção é mediada por miocardite, tempestade de citocinas, complicações trombóticas de pequenos vasos, disfunção microvascular ou uma variante da cardiomiopatia induzida por estresse, de forma que a etiologia do estresse miocárdico desse caso não pode ser bem elucidada1.

O paciente em questão também apresentava níveis muito aumentados de D-dímero, que é associado a desfechos piores1,6. Sabe-se que a identificação de pacientes com alto risco é importante para que medidas de profilaxia para o tromboembolismo venoso possam ser instituídas, de forma que, nesta situação, optou-se pelo uso da heparina não fracionada devido à injúria renal e necessidade de TSR1.

Podemos citar, ainda, a presença de outros critérios para evolução desfavorável, como a presença de crises convulsivas, alteração de nível de consciência e choque séptico. Sabe-se que os enfermos com doença grave apresentam complicações neurológicas possivelmente decorrentes de invasão viral do sistema nervoso central, podendo haver doença cerebrovascular aguda, alteração de consciência, convulsões, neuralgia, lesão de músculos esqueléticos, meningite e encefalite. Em uma série de casos, o choque séptico foi relatado em 4% a 8% dos doentes, sendo recomendado corticoterapia em baixas doses para choque refratário. Quanto à lesão renal aguda, também presente nessa criança, são causas possíveis: alterações hemodinâmicas, hipovolemia, lesão tubular renal pelo vírus, processos trombóticos, patologia glomerular ou rabdomiólise1.

A intubação e VMI foi instituída diante de deterioração aguda (presença de fadiga e risco de exaustão por desconforto respiratório), tendo sido optado por estratégia de ventilação protetora – baixo volume corrente e baixa pressão inspiratória – a qual foi garantida por meio do uso de modo ventilatório volume controlado com pressão regulada (PRVC)1,7. Nota-se que o padrão ventilatório inicialmente descrito nesse paciente corrobora com o exposto em literatura. Logo após o início do distress respiratório, o paciente manteve uma complacência boa, apesar de hipoxemia grave na progressão da doença, com necessidade de pressão expiratória final positiva (PEEP) mais elevada para manutenção de oxigenação adequada, quadro compatível – incialmente – com o estágio da doença chamado de tipo-L, e após, condizente com o tipo-H – cenário clínico de SDRA típica6.

Por fim, observou-se detecção de carga viral por período prolongado, o que pode ser esperado em pacientes críticos. Nesse contexto de gravidade e baseado no exposto, podemos citar os fatores associados à pior evolução clínica e ao aumento do risco de óbito que foram observados: sexo masculino, presença de comorbidades, dispneia, leucopenia, comprometimento renal, elevação de marcadores inflamatórios, elevação de troponina cardíaca, elevação de D-dímero e sepse8.

A literatura sobre o quadro clínico de COVID-19 grave em crianças é escassa, especialmente em território nacional. Desta forma, esperamos que a exposição e discussão desse caso contribua – como forma de evidência –, com o conhecimento disponível acerca dessa patologia em pediatria, considerando tratar-se de doença emergente, em caráter de pandemia, cujo maior entendimento possibilita otimizar o manejo desses pacientes pelos profissionais responsáveis.


REFERÊNCIAS

1. Beeching NJ, Fletcher TE, Fowler R. Doença do coronavírus 2019 (COVID-19). BMJ Best Practice [Internet]. 2020 Mai; [acesso em 2020 Mai 20]. Disponível em: https://bestpractice.bmj.com/topics/pt-br/3000168/pdf/3000168/Doen%C3%A7a%20do%20coronav%C3%ADrus%202019%20%28COVID-19%29.pdf

2. Bouadma L, Lescure FX, Lucet JC, Yazdanpanah Y, Timsit JF. Severe SARS-CoV-2 infections: practical considerations and management strategy for intensivists. Intensive Care Med. 2020 Abr;46(4):579-82.

3. Shekerdemian LS, Mahmood NR, Wolfe KK, Riggs BJ, Ross CE, McKiernan CA, et al. Characteristics and outcomes of children with coronavirus disease 2019 (COVID-19) infection admitted to US and Canadian Pediatric Intensive Care Units. JAMA Pediatr [Internet]. 2020 Mai; [citado 2020 Jul 15]; 174(9):868-73. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jamapediatrics/fullarticle/2766037 DOI: https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2020.1948

4. Chao JY, Derespina KR, Herold BC, Goldman DL, Aldrich M, Weingarten J, et al. Clinical characteristics and outcomes of hospitalized and critically ill children and adolescents with coronavirus disease 2019 (COVID-19) at a tertiary care medical center in New York City. J Pediatr [Internet]. 2020 Mai; [citado 2020 Jul 15]; 223:14-9.e2. Disponível em: https://www.jpeds.com/article/S0022-3476(20)30580-1/fulltext DOI: https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2020.05.006

5. Dong Y, Mo X, Hu Y, Qi X, Jiang F, Jiang Z, et al. Epidemiology of COVID-19 among children in China. Pediatrics [Internet]. 2020 Jun; [citado 2020 Jul 15]; 145(6):e20200702. Disponível em: https://pediatrics.aappublications.org/content/145/6/e20200702 DOI: https://doi.org/10.1542/peds.2020-0702

6. Marini JJ, Gattinoni L. Management of COVID-19 respiratory distress. JAMA [Internet]. 2020 Abr; [citado 2020 Jul 15]; 323(22):2329-30. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2765302

7. Kneyber MCJ, Medina A, Alapont VM, Blokpoel R, Brierley J, Chidini G, et al. Practice recommendations for the management of children with suspected or proven COVID-19. ESPINIC [Internet]. 2020; [citado 2020 Jul 15]. Disponível em: https://espnic-online.org/News/Latest-News/Practice-recommendations-for-managing-children-with-proven-or-suspected-COVID-19

8. Santos DAS, Muglia DV. Grupo Força Colaborativa COVID-19 Brasil: orientações sobre diagnóstico, tratamento e isolamento de pacientes com COVID-19. ACM [Internet]. 2020 Abr; [acesso em 2020 Jul 15]. Disponível em: http://www.acm.org.br/grupo-forca-colaborativa-covid-19-brasil-orientacoes-sobre-diagnostico-tratamento-e-isolamento-de-pacientes-com-covid-19/

9. Foust AM, Phillips GS, Chu WC, Daltro P, Das KM, Garcia-Peña P, et al. International expert consensus statement on chest imaging in pediatric COVID-19 patient management: imaging findings, imaging study reporting and imaging study recommendations. Radiol Cardiothorac Imaging. 2020 Abr;2(2):e200214.










Hospital Pequeno Príncipe, Unidade de Terapia Intensiva - Curitiba - Paraná - Brasil

Endereço para correspondência:

Arianne Ditzel Gaspar
Hospital Pequeno Príncipe
Rua Desembargador Motta, nº 1070, Água Verde
Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80250-060
E-mail: ariannedgasp@gmail.com

Data de Submissão: 28/07/2020
Data de Aprovação: 06/09/2020