ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 2

Pneumonia lipóide exógena em lactente

Exogenous lipoid pneumonia in an infant

RESUMO

OBJETIVOS: Relatar caso de lactente em aleitamento materno exclusivo que evoluiu com pneumonia após broncoaspiração de óleo mineral para tratamento de pseudoconstipação intestinal.
RELATO DE CASO: LGZ, sexo masculino, cinco meses, previamente hígido, em aleitamento materno exclusivo, com relato materno de ausência de evacuação há seis dias. Procurou atendimento médico na unidade básica de saúde (UBS), onde foi prescrito óleo mineral e, posteriormente, alta domiciliar. Ela relatou que ao administrar óleo mineral paciente apresentou uma crise de engasgo seguida de tosse e vômito. Após quatro horas do evento foi trazido ao serviço de emergência, devido ao quadro de gemência. Deu entrada em regular/mau estado geral, choroso, taquipneico, com obstrução nasal e gemente, saturando 90% em ar ambiente. Foram realizadas medidas de suporte não invasivas, seguida de rastreamento infeccioso e radiografia de tórax. Optou-se pelo início imediato de antibioticoterapia parenteral por pneumonia lipoide exógena. Permaneceu internado em enfermaria por 10 dias, recebeu corticoterapia (metilprednisolona 2mg/kg/dia) e antibioticoterapia com amicacina (15mg/kg/dia) e clindamicina (30mg/kg/dose) para cobertura de infecção secundária. Durante internação, realizou tomografia computadorizada de tórax no 3º dia e procedeu-se a coleta de lavado broncoalveolar no 9º dia. Evoluiu bem, tendo recebido alta hospitalar após 10 dias de internação, em bom estado geral, eupneico, permanecendo em acompanhado ambulatorial, sem aparentes sequelas.
CONCLUSÕES: A pneumonia lipoide é uma patologia potencialmente fatal, causada pelo preenchimento alveolar por óleo, impedindo a troca gasosa. O tratamento principal é a suspensão imediata do óleo mineral.

Palavras-chave: Pneumonia Lipoide, Criança, Óleo Mineral, Diagnóstico, Lavagem Broncoalveolar.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To report a case of an exclusive breastfeeding infant who developed pneumonia after bronchoaspiration of mineral oil for the treatment of intestinal pseudoconstipation.
CASE REPORT: LGZ, male, 5 months old, previously healthy, exclusive breastfeeding, with maternal report of absence of evacuation for six days. She sought medical attention at the basic health unit (UBS), where mineral oil was prescribed and later, discharged home. She reported that when administering mineral oil the patient had a choking crisis followed by cough and vomiting. After four hours of the event he was brought to the emergency room due to grunting. He checked in presenting regular to poor general condition, tearful, tachypneic, with nasal obstruction and grunting, saturation oxygen 90% in ambient air. Non-invasive supportive measures were taken, followed by infectious screening and chest radiography. We chose immediate initiation of parenteral antibiotic therapy for exogenous lipoid pneumonia. He was admitted to the nursery for 10 days, received corticosteroid therapy (methylprednisolone 2mg/kg/day) and antibiotic therapy with amikacin (15mg/kg/day) and clindamycin (30mg/kg/dose) for secondary infection coverage. During hospitalization, the patient underwent chest computed tomography on the 3rd day and bronchoalveolar lavage was collected on the 9th day. He got better as expected and soon discharged after 10 days of hospitalization, in good general condition, eupneic, remaining in outpatient follow-up, without apparent sequelae.
CONCLUSIONS: Lipoid pneumonia is a potentially fatal condition, caused by alveolar filling with oil. The main treatment is the immediate suspension of mineral oil.

Keywords: Pneumonia, Lipid, Child, Mineral Oil, Diagnosis, Bronchoalveolar Lavage.


INTRODUÇÃO

A constipação crônica e pseudoconstipação (relacionada ao aleitamento materno exclusivo) são queixas pediátricas comuns, sendo o óleo mineral frequentemente receitado por médicos1. No Brasil, ainda não há estimativas sobre o uso, mas presume-se que seja ainda maior por não haver necessidade de receita médica para a compra. Assim, devido à utilização amplamente difundida, tornam-se mais frequentes os casos de broncoaspiração por óleo mineral.

Dentre os principais riscos de broncoaspiração lipídica estão os medicamentos intranasais ou orais oleosos, a vaselina, o leite com alto teor de gordura, a gema de ovo, batons, alimentação em posição horizontal (lactentes), presença de fenda palatina, distúrbios da deglutição2, entre outros. No entanto, em muitos casos, a broncoaspiração acidental pode ocorrer na ausência de qualquer fator de risco3.

A alta viscosidade do óleo mineral no trato respiratório não provoca o reflexo da tosse e inibe o movimento ciliar do epitélio brônquico, podendo atingir os alvéolos de forma silenciosa1. As aspirações, particularmente as microaspirações, podem então passar despercebidas, pois não há engasgo ou sufocação e os pais não as relacionam ao quadro respiratório que leva ao atendimento médico, o que em muitos casos, dificulta o diagnóstico4.

A pneumonia lipoide exógena foi mencionada pela primeira vez na literatura por Laughlin, em 19255, sendo descrita com base da autópsia realizada em 3 crianças e 1 adulto3 e, apesar de poder levar a quadros clinicamente severos, muitas vezes fatais, a literatura ainda é escassa.


RELATO DE CASO

LGZ, sexo masculino, cinco meses, previamente hígido, em aleitamento materno exclusivo, com relato materno de ausência de evacuação há seis dias. Procurou atendimento médico na unidade básica de saúde (UBS), onde foi prescrito óleo mineral e, posteriormente, alta domiciliar. Ela relatou que ao administrar óleo mineral o paciente apresentou uma crise de engasgo seguida de tosse e vômito. Após quatro horas do evento foi trazido ao serviço de emergência, devido o quadro de gemência. Deu entrada em regular/mau estado geral, choroso, taquipneico, com obstrução nasal e gemente, saturando 90% em ar ambiente. Foram realizadas medidas de suporte não invasivas, seguida de rastreamento infeccioso (Tabela 1) com hemograma (hemoglobina (Hb)=11,4, plaquetas (Plaq)=306 mil, leucócitos (leuc)=16,7 mil com 2% bastões, 76% segmentados e 17% linfócitos) e radiografia de tórax com infiltrado hilar (Figura 1). Optou-se pelo início imediato de antibioticoterapia parenteral.


Figura 1. Radiografia de tórax de chegada: parênquima pulmonar com infiltrado hilar bilateral, com aparente comprometimento de lobos superiores mais aparente a direita.





Paciente apresentou febre baixa no 1º dia de internação com discreta piora clínica do quadro respiratório, laboratorial (Hb=10,0, plaq=259 mil, leuc=19,3 mil com 7% bastões, 64% segmentados e 25% linfócitos) (Tabela 1) e radiográfico. Na radiografia de tórax de controle após 6 horas (Figura 2), apresentou opacificação difusa em vidro fosco de predomínio pericardíaco à direita. Tais achados corroboraram para hipótese de broncoaspiração de óleo mineral e diagnóstico de pneumonia lipoide exógena.


Figura 2. Radiografia de tórax com 6 horas de evolução: piora radiográfica com opacificação difusa pericardíaca e de lobos superiores.



Permaneceu internado em enfermaria por 10 dias, recebeu corticoterapia (metilprednisolona 2mg/kg/dia) e antibioticoterapia com amicacina (15mg/kg/dia) e clindamicina (30mg/kg/dose) para cobertura de infecção secundária. Durante a internação, realizou tomografia computadorizada de tórax no 3º dia e procedeu-se a coleta de lavado broncoalveolar no 9º dia (tabela 2). Não foram realizados citologia global e específica e as colorações especiais para gordura, portanto não houve comprovação diagnóstica neste método.




Evoluiu bem, tendo recebido alta hospitalar após 10 dias de internação, em bom estado geral, eupneico, permanecendo em acompanhado ambulatorial, sem aparentes sequelas.


DISCUSSÃO

A revisão da literatura foi realizada em base de dados eletrônicos. A busca eletrônica foi conduzida nas seguintes bases de dados: MEDLINE/PubMed e SciELO, utilizando os seguintes descritores: “lipoid pneumonia exogenous” e “pneumonia lipóide exógena”.

A pneumonia lipoide exógena foi descrita na Ásia, Américas e Europa6, e está relacionada à broncoaspiração de gordura, causando sintomas respiratórios devido à alta viscosidade e tensão superficial das moléculas7. É rara e tende a ser subdiagnosticada8. É associada a fatores de risco como alimentação em posição horizontal (lactentes), presença de fenda palatina e distúrbios da deglutição3. Na maioria das vezes, deve-se a causas iatrogênicas9, tendo-se então uma grande importância a prática de prevenção primária10. O óleo mineral é um dos principais causadores e deve ser evitado em indivíduos com alto risco de broncoaspiração.

As manifestações clínicas da pneumonia lipoide variam de casos assintomáticos a grave comprometimento pulmonar de acordo com a quantidade, qualidade e duração da aspiração. Os sintomas mais comuns são tosse, febre, taquidispneia, dificuldade de ganho ponderal e cianose7. A maioria dos relatos de casos pesquisados na literatura apresentaram evolução clínica grave. Esta pneumonia tem evolução arrastada pela dificuldade de remoção do óleo dos pulmões9, além disso, o óleo mineral pode servir como meio carreador de germe para a via aérea inferior, sendo responsável por infecções respiratórias agudas recorrentes. Já foi descrito coinfecção com micobactérias5. A pneumonia lipoide deve ser considerada como diagnóstico diferencial em casos de pneumonias arrastadas sem boa resposta aos antimicrobianos e tuberculose pulmonar8.

A anamnese e exame físico adequados associados aos exames de imagem, como a tomografia computadorizada de tórax e lavado broncoalveolar, são suficientes para o diagnóstico2, sendo o lavado broncoalveolar um método seguro que evita procedimentos invasivos, como a biópsia, e é considerado padrão diagnóstico de escolha.

A anamnese pode conter história do uso de medicamentos intranasais oleosos, leite com alto teor de gordura, óleos de peixe, gloss labial e óleos minerais11. O óleo pode não ser irritativo à mucosa em primeiro momento e não desencadeia o reflexo de tosse2.

Na radiografia de tórax, pode-se observar alguns padrões como opacificação difusa ou consolidações expansivas em topografias que sugerem aspiração, como os segmentos posteriores de ambos os lobos superiores e inferiores. Já na tomografia, foi observado padrões de opacificação em vidro fosco, espessamento septal interlobular, consolidações expansivas em ápice superior direito e atenuação de gordura nas áreas de consolidação do espaço aéreo6.

O lavado alveolar é o padrão ouro para diagnóstico deste tipo de pneumonia, quando pode demonstrar macrófagos com múltiplos vacúolos intracitoplasmáticos corados com red oil ou Sudan, devido à presença de lipídeos, assim como gotas de lipídeos no extracelular que se coram ao método, e número aumentado de células6. Estudos longitudinais mostraram que as alterações no lavado, como a presença de macrófagos lipídicos podem estar presentes em até 18 meses do episódio da broncoaspiração11. Ainda que haja melhora com diminuição dos macrófagos lipídicos, alguns pacientes podem ter danos permanentes associados à necrose e fibrose do parênquima pulmonar11.

Conforme os artigos revisados, o principal consenso entre eles é o tratamento através da broncoscopia com lavado alveolar. Sendo enfatizado mais uma vez a importância da prevenção contra a broncoaspiração. Devido ao fato de a depuração do óleo aspirado ser um processo lento, a melhor estratégia terapêutica seria retirar o óleo o mais rapidamente possível através de broncoscopia12.

O uso de corticosteroide é controverso no tratamento da pneumonia lipoide, sendo recomendado, nos casos mais graves, como estratégia para bloquear a inflamação e evolução para processo cicatricial com fibrose11. A corticoterapia tem sido também sugerido nos casos em que alterações funcionais e radiológicas continuam apesar da melhora clínica13. A fisioterapia respiratória pode ter benefício, para ajudar na remoção da gordura pulmonar8.

A anamnese com história típica de aspiração foi de grande auxílio diagnóstico no caso relatado, possibilitando aventar corretamente e prontamente a hipótese diagnóstica, sendo possível iniciar medidas adequadas.

Foi iniciado o tratamento com antibioticoterapia devido aos sinais clínicos e imagem compatível com pneumonia; corticoterapia, que apesar de controverso na literatura, foi utilizada para reduzir o processo inflamatório irritativo, e foi realizado o lavado broncoalveolar, que além do caráter diagnóstico, serviria também como parte do tratamento, evitando o prolongado contato da substância com as vias aéreas, e assim a fibrose e pneumonias de repetição.

O tempo prolongado de espera de 11 dias até a realização da broncoscopia foi devido à indisponibilidade do procedimento na cidade de origem, assim, o exame foi disponibilizado e agendado em sua referência, o que certamente pode ter influenciado no resultado negativo do exame, já que em literatura, o tempo médio entre a primeira tomografia computadorizada e o exame é de 2,4 dias, variando entre 1 a 7 dias14.

O lactente previamente hígido tem dentre os fatores de risco para a broncoaspiração a própria idade e alimentar em posição horizontal15.

Um agravante no caso relatado é que o lactente se encontrava em aleitamento materno exclusivo e o prazo da ausência de evacuação até sete dias é normal nestes casos16. Apesar do aleitamento materno ser um dos pilares da atenção primária, principalmente na unidade básica de saúde onde ocorreu o atendimento, presenciamos uma prática inadequada de saúde. Não há necessidade da indicação de qualquer fármaco e sim a uma puericultura adequada com uma orientação médica sobre os aspectos fisiológicos da amamentação15.


CONCLUSÕES

A prescrição inadequada do fármaco, bem como ausência de orientação para broncoaspiração ao prescrever óleo mineral em qualquer idade, colocaram em risco o paciente, com repercussões psicosocioeconômicas familiares, além de um custo elevado de internação para o sistema único de saúde.

Alertar aos profissionais de saúde sobre a prevenção da broncoaspiração e aleitamento materno exclusivo aos lactentes são importantes e essenciais na atenção primária.


REFERÊNCIAS

1. Bandla HP, Davis SH, Hopkins NE. Lipoid pneumonia: a silent complication of mineral oil aspiration. Pediatrics. 1999 Fev;103(2):E19.

2. Buda P, Wieteska-Klimczak A, Własienko A, Mazur A, Ziołkowski J, Jaworska J, et al. Lipoid pneumonia--a case of refractory pneumonia in a child treated with ketogenic diet. Pneumonol Alergol Pol. 2013;81(5):448-52.

3. Zanetti GMR. Tomografia computadorizada de alta resolução na avaliação de pacientes com pneumonia lipoídica exógena. Radiol Bras. 2009;40(5):332.

4. Oliveira GA, Lamego CMB, Vargas PRM. Pneumonias lipóides exógenas na infância. Rev Ass Med Brasil. 1984;30:34-36.

5. Laughlin GF. Studies on pneumonia following nasopharyngeal injections of oil. Am F Pathol. 1925;407-415

6. Marangu D, Pillay K, Banderker E, Gray D, Vanker A, Zampoli M. Exogenous lipoid pneumonia: an important cause of interstitial lung disease in infants. Respirol Case Rep. 2018 Out;6(7):e00356.

7. Modaresi M, Dadkhah M, Sayedi SJ. Exogenous lipoid pneumonia: dramatic clinical and radiological improvement after multiple segmental bronchoalveolar lavages. Iran J Pediatr. 2015 Dez;25(6):e3172.

8. Magalhaes E, Vieira ALP, Beraldo CL, Luz BSR. Pneumonia lipídica em um lactente. Rev HCPA. 2012;32:354-7.

9. Oliveira GA, Pessanha LB, Guerra LFA, Martins DLN, Rondina RG, Silva JRP. Pneumonia por aspiração na infância: ensaio iconográfico. Radiol Bras. 2015 Nov/Dez;48(6):391-5.

10. Ferraz ST. Pneumonia lipoídica secundária a dose única de óleo mineral: um relato de caso. Resid Pediatr. 2013;3(2):36-8.

11. Midulla F, Strappini PM, Ascoli V, Villa MP, Indinnimeo L, Falasca C, et al. Bronchoalveolar lavage cell analysis in a child with chronic lipid pneumonia. Eur Respir J. 1998 Jan;11(1):239-42.

12. Salgado IA, Santos CC, Salgado JV, Ferraz PC, Haidar DM, Pereira HA. Exogenous lipoid pneumonia in children: a disease to be reminded of. Rev Assoc Med Bras. 2012 Abr;58(2):135-7.

13. Sias SMA, Santos TQ. Pneumonia lipóide na criança: revisão da literatura. Pulmão RJ. 2009;1(Supl 1):S9-S16.

14. Sias SMA, Daltro PA, Marchiori E, Ferreira AS, Caetano RLO, Santos CS, et al. Clinic and radiological improvement of lipoid pneumonia with multiple bronchoalveolar lavages. Pediatr Pulmonol. 2009 Apr;44(4):309-15.

15. Paiva MASS, Amaral SMM, Pedrozo CS. Pneumonia lipóide exógena na criança - importância da história no diagnóstico. Rev Ped SOPERJ. 2009;10(2):16-9.

16. Melo MDCB, Torres MRF, Guimarães EV, Figueiredo RCP, Penna FJ. Constipação intestinal. Rev Med Minas Gerais. 2003;13(Supl 2):S35-S43.










1. Hospital Universitário da Faculdade de Medicina de Jundiaí, Pediatria - Jundiaí - SP - Brasil
2. Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Pediatria - São Paulo - SP - Brasil
3. Hospital Universitário da Faculdade de Medicina de Jundiaí, Departamento de Pediatria - Jundiaí - SP - Brasil

Endereço para correspondência:
Ana Flávia Varella e Silva
Hospital Universitário da Faculdade de Medicina de Jundiaí
Praça Rotatória, s/nº , Jardim Messina
Jundiaí, SP, Brasil. CEP: 13207-450
E-mail: anaflavia_ves@hotmail.com

Data de Submissão: 13/05/2019
Data de Aprovação: 11/11/2019