Relato de Caso
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Ano 2020 -
Volume 10 -
Número
3
Enteropatia como manifestação de alergia alimentar
Enteropathy as a manifestation of food allergy
Aline Lima Ribeiro1; Ana Luiza Moura Ceia1; Silvio da Rocha Carvalho2; Raquel Priscila Cardoso Sudré2; Alessandra Martins Secco2; Mariana Brandão Grecco2; José César da Fonseca Junqueira2
RESUMO
A alergia alimentar vem aumentando a incidência, principalmente entre crianças. Considera-se o leite de vaca como o alimento mais frequentemente relacionado a esta entidade nos lactentes de baixa idade. Tipos distintos de mecanismos fisiopatológicos estão envolvidos nessas reações, ocorrendo ou não a mediação por IgE. O caso relatado tem apresentação precoce, com características clínicas de enteropatia - diarreia protraída e importante influência no estado nutricional - e marcante recuperação com a dieta de exclusão.
Palavras-chave:
Hipersensibilidade Alimentar, Imunidade Celular, Transtornos Nutricionais, Proteínas do Leite.
ABSTRACT
Food allergy has been increasing the incidence mainly among children. Cows milk is considered the most frequently related food for this desease in infants of low age. Different types of pathophysiological mechanisms are involved in these reactions, whether or not IgE mediation occurs. The reported case has an early presentation with clinical features of enteropathy - protracted diarrhea and important influence on nutritional status - and marked recovery with the exclusion diet.
Keywords:
Food Hypersensitivity, Immunity, Cellular, Infant Nutrition Disorders, Milk Proteins.
INTRODUÇÃO
Reações adversas a alimentos ocorrem em 6,25 a 28% das crianças. Estas reações são classificadas em intolerância, reações não imunológicas; e, as alergias, reações imunológicas. Dentre essas, a alergia à proteína do leite de vaca não mediada por IgE, caracterizada pela mediação celular, pode ocorrer na forma de enterocolite (reações que mimetizam as IgE mediadas, mas sem urticária/angioedema ou sintomas respiratórios, com neutrofilia e trombocitose), proctite ou proctocolite (com presença de muco e sangue nas fezes, sem acometer o crescimento) e, finalmente, a enteropatia (diarreia persistente, podendo apresentar má absorção, saciedade precoce e déficit de crescimento)1.
É relatado o caso de uma lactente com diarreia e desnutrição, diagnosticada com alergia à proteína do leite de vaca não-IgE mediada, com início precoce dos sintomas, demonstrado pela demora na recuperação do peso de nascimento. A importância deste relato se deve ao agravo nutricional relacionado à alergia alimentar, na forma de enteropatia.
RELATO DE CASO
Lactente, feminina, nascida de 37 semanas de gestação, Apgar 10 (1º min) e 10 (5º min), tendo a mãe sido internada em UTI três dias por hipertensão arterial periparto imediato, onde amamentava. Não há relato de exposição a fórmulas. Nasceu pesando 2.550g, medindo 44cm e com perímetro cefálico de 33cm. No acompanhamento de puericultura foi relatado recuperação do peso de nascimento com 24 dias. Com 2 meses e 22 dias mantinha baixo ganho ponderal e apresentava irritabilidade, fezes semilíquidas, com muco, como sempre fora, com um episódio de raias de sangue. Foi prescrito ranitidina (10mg/kg/dia), com pouca melhora durante seu uso. Com 4 meses e 10 dias e usando aleitamento materno exclusivo desde o nascimento, foi iniciada dieta de exclusão de leite de vaca na alimentação materna, por iniciativa própria e continuada pelo médico assistente. Manteve o baixo ganho ponderal (com 5 meses e 15 dias ganhou 70g), sendo relatado fezes mais líquidas e com mais muco quando da ingestão de milho pela mãe e do medicamento prescrito para reposição de cálcio, sendo mantida a dieta materna de exclusão e orientado iniciar papa de fruta para a criança. Com 6 meses e ganho ponderal de 5g, foi associado ao leite materno uma fórmula extensamente hidrolisada com triglicerídeo de cadeia média e sem lactose, sendo excluído da alimentação materna soja, milho, corantes e amêndoa, mantendo a exclusão do leite de vaca.
Ao completar 6 meses e 20 dias apresentava o mesmo quadro clínico, sendo retirado o leite materno e mantida alimentação com a fórmula citada e frutas, passando a ter boa aceitação da dieta. Após quatro dias houve diminuição do número de evacuações e melhora da irritabilidade, apresentando ganho de 235g em cinco dias. Foi encaminhada para geneticista por orientação do pediatra assistente. Com 6 meses e 25 dias foi atendida em nosso ambulatório de gastroenterologia pediátrica apresentando fezes semilíquidas a pastosas de 3 a 9 vezes ao dia e em recuperação nutricional. No restante da anamnese não havia alterações a serem citadas. Exames já realizados, todos sem alterações: ultrassom abdominal total; cromatografia de aminoácidos; amônia; gasometria venosa; perfil lipídico; função renal e hepática; enzimas hepáticas; proteínas séricas; eletrólitos; T4 e TSH; imunoglobulinas; IgE específica para diversos alimentos além de alfalactalbumina, betalactoglobulina e caseína; antitransglutaminase IgA; urina tipo I e urocultura; coprocultura. Hemograma: Hm: 4.10milhões/mm3, Hg: 11,1g/dL; Ht: 33,8%; VGM: 82,4 fl; RDW: 14%; leucócitos: 10.900/mm3, com 0/6/0/0/2/19/61/12; plaquetas: 234.000/mm3. O exame físico não mostrava outras alterações, além de um dimple sacral; peso de 3.882g (muito baixo peso para a idade) e comprimento de 56cm (muita baixa estatura para a idade). Foi mantida a fórmula exclusivamente e solicitou-se radiografia lombossacra.
Retornou 7 dias após com aumento de 348g (49,7g/dia) e 1cm. Houve melhora da irritabilidade e da aceitação da fórmula, mostrando-se sorridente, com diminuição da frequência das evacuações, passando a 1 a 2 vezes ao dia, semipastosas, sem muco ou sangue. Foi solicitada avaliação pelo serviço de nutrologia, que confirmou a recuperação nutricional. Apresentou rastreio para erros inatos do metabolismo negativo. Foi orientada a introdução da alimentação complementar sem outras restrições além do leite de vaca e prescrito polivitamínico. Retornou 15 dias após com ganho de 600g (40g/dia).
Em consulta com 8 meses e 16 dias, mantinha a melhoria do padrão evacuatório e ganho ponderal de 30,5g/dia. A radiografia lombossacra foi normal, assim como o cariótipo (não retornou ao geneticista). Retirou-se a ranitidina. Retornou à consulta com 9 meses e 18 dias, mantendo a restrição apenas do leite de vaca, com ganho de 1.166g (36,5g/dia). Com 11 meses obteve alta da nutrologia, após “catch up” do peso. Com 1 ano e 25 dias realizou nova consulta no ambulatório de gastroenterologia, já tendo iniciado a reintrodução de alimentos com leite de vaca sob orientação do ambulatório onde era fornecido a fórmula que usava. Houve ganho de 2.336g (24,1g/dia), sem apresentar sintomas. Teve alta do ambulatório da gastroenterologia. As Figuras 1 e 2 mostram a evolução do peso, comprimento, perímetro cefálico e IMC.
Figura 1. Gráficos de índice de massa corporal/idade e comprimento/idade.
Figura 2. Peso/idade e perímetro cefálico/idade.
COMENTÁRIOS
A alergia alimentar é uma entidade clínica que notadamente vem aumentando sua incidência. No Brasil atualmente é estimada em 2,2%2. Pode ser esquematicamente dividida em reações mediadas e não mediadas por IgE. O auxílio de laboratorial pode ser obtido nos casos relacionados com a IgE, porém naqueles relacionados à mediação celular, pouco se tem progredido em termos de testes diagnósticos, se restringido à melhora dos sintomas com a exclusão do alimento e reaparecimento com a reintrodução3. A enteropatia é uma entidade clínica não-IgE mediada, que incide principalmente em lactentes de baixa idade, com diarreia persistente, em geral não sanguinolenta e má absorção, influenciando o estado nutricional. Mais comumente o leite de vaca é o responsável quando há o aparecimento precoce; outros alimentos como soja, ovo e trigo podem ser citados com menor envolvimento4. Particularmente esta síndrome parece apresentar declínio em sua incidência5.
No caso relatado, as manifestações clínicas iniciaram precocemente com a ausência de recuperação do peso de nascimento antes dos 24 dias. A presença de diarreia semilíquida, com várias evacuações diárias, protraída, associada ao baixo ganho ponderal, levaram à suspeição de enteropatia alérgica. O quadro clínico nessa doença é decorrente das alterações da mucosa do intestino delgado, enquanto mantido o alimento responsável na dieta; em crianças mais velhas que já ingerem glúten, pode ser necessário o diagnóstico diferencial com doença celíaca3,6. A regressão dos sintomas pode demorar algumas semanas após a retirada do alimento, enquanto o restabelecimento da mucosa pode demorar meses7. Nesse lactente foi relatado um episódio de sangue nas fezes, que, em geral, não ocorre nessa doença4, mas a associação a uma possível proctite passageira pode ocorrido. A ausência de leucocitose e trombocitose, que podem estar presentes na enterocolite alérgica, parece reforçar o diagnóstico1. A ausência de sintomas clássicos e a negatividade das IgE específicas indicam menor probabilidade envolver mecanismos IgE mediados. A coprocultura negativa diminui a possibilidade de diarreia infecciosa. Foi realizada triagem por anticorpos para doença celíaca, solicitada pelo médico assistente, mas já que ainda não havia ocorrido contato com glúten, não se fazia necessária.
O tratamento foi baseado na retirada do leite de vaca da alimentação materna7. Inicialmente não aparentou resultado, porém a resposta pode demorar algumas semanas. Devido à ausência de ganho de peso imediato, foi introduzido fórmula extensamente hidrolisada, indicado na alergia ao leite de vaca4, e com triglicerídeos de cadeia média, para aumento do valor calórico, além de ser de fácil absorção em um epitélio lesionado8. Após um período sem sintomas, houve a possibilidade de reintrodução do alimento sem recaída, sendo mantido o adequado ganho de peso e comprimento.
REFERÊNCIAS
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2. Vieira MC, Morais MB, Spolidoro JVN, Toporovski MS, Cardoso AL, Araujo GTB, et al. A survey on clinical presentation and nutritional status of infants with suspected cow’ milk allergy. BMC Pediatr. 2010 Apr;10:25. DOI: https://doi.org/10.1186/1471-2431-10-25
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8. Costa ACR, Rosado EL, Soares-Mota M. Influence of the dietary intake of medium chain triglycerides on body composition, energy expenditure and satiety: a systematic review. Nutr Hosp. 2012 Jan/Feb;27(1):103-8. DOI: https://doi.org/10.1590/S0212-16112012000100011
1. Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, Médica Residente do Serviço de Gastroenterologia Pediátrica - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
2. Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, Serviço de Gastroenterologia Pediátrica - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
Endereço para correspondência:
Aline Lima Ribeiro
Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira
Rua Bruno Lobo, nº 50, Cidade Universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro - RJ. Brasil. CEP: 21941-912
E-mail: aline_lr@hotmail.com
Data de Submissão: 12/01/2019
Data de Aprovação: 10/03/2019