ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Atresia de esôfago e obstrução duodenal: relato de dois casos

Esophagus atresia and duodenal obstruction: report of two cases

RESUMO

A atresia de esôfago, com ou sem fístula traqueoesofágica, e as obstruções duodenais congênitas são alterações relativamente frequentes do tubo digestivo em cirurgia pediátrica. A combinação de ambas, embora descrita na literatura, é incomum. Supõe-se que o diagnóstico precoce com exames de imagem e a programação cirúrgica combinada, embora ainda indefinida, pode reduzir a mortalidade dessas crianças. Relata-se os casos de dois recémnascidos com atresia de esôfago e obstrução duodenal congênita, interessando o diagnóstico, tratamento cirúrgico e a evolução clínica.

Palavras-chave: Atresia Esofágica, Obstrução Duodenal, Fístula Traqueoesofágica, Anormalidades Congênitas.

ABSTRACT

Esophageal atresia, with or without tracheoesophageal fistula, and congenital duodenal obstructions are relatively frequent changes in the digestive tract in pediatric surgery. The combination of both, although described in the literature, is unusual. It is assumed that the early diagnosis with imaging tests and the combined surgical schedule, although still undefined, can reduce the mortality of these children. We report the cases of two newborns with esophageal atresia and congenital duodenal obstruction, concerning diagnosis, surgical treatment and clinical evolution.

Keywords: Esophageal Atresia, Duodenal Obstruction, Tracheoesophageal Fistula, Congenital Abnormalities.


INTRODUÇÃO

Atresia de esôfago (AE) com fístula traqueoesofágica (FTE) é uma malformação congênita relativamente comum, afetando um em 2.500 a 4.000 nascidos vivos. Em 30-50% dos casos a AE/FTE está associada a outras anormalidades, mais comumente fazendo parte do espectro VACTERL (vertebral, anorretal, cardíaca, traqueoesofágica, renal e membros)¹. A obstrução duodenal congênita (ODC) afeta aproximadamente um em 2.500 a 10.000 nascidos vivos, representando quase metade de todos os casos de obstrução intestinal neonatal. A ODC pode ser de causa intrínseca como a atresia, estenose e membrana duodenal ou extrínseca por pâncreas anular, má rotação intestinal e veia porta pré-duodenal². A associação entre AE e ODC é uma entidade rara, não associada ao complexo VACTERL e pouco descrita na literatura.


RELATO DE CASO

Caso 1


Recém-nascido de 30 semanas de gestação, com peso ao nascer de 1.325 gramas. Polidramnia gestacional e ecocardiograma fetal com persistência do canal arterial e comunicação interatrial. Portador de Síndrome de Down e sem outras malformações aparentes. Na sala de parto tentou-se passar sonda nasogástrica, porém sem progressão. Encaminhado para unidade de terapia intensiva devido à prematuridade. Radiografia de tórax e abdome mostrou AE com provável associação à FTE e sinal da dupla bolha consistente com ODC (Figura 1). Realizado procedimento cirúrgico no 3° dia de vida em que foi comprovado a AE/FTE corrigida com anastomose esofágica primária e obstrução duodenal do tipo pâncreas anular reparada com duodeno-duodeno anastomose (diamond shaped), ambos os procedimentos em tempo cirúrgico único. Evoluiu bem, sendo alimentado por via oral no 7° dia pós-operatório e com alta hospitalar após 60 dias devido ao muito baixo peso e as complicações cardíacas associadas. Realizada 10 sessões de dilatação esofágica devido à estenose no período de 12 meses. Após um ano de vida foi submetido à orquidopexia bilateral e fundoplicatura videolaparoscópica para correção de doença do refluxo gastresofágico. Segue há dois anos em acompanhamento ambulatorial sem intercorrências.


Figura 1. A. Radiografia de tórax com sonda nasogástrica sem progressão dobrando-se em coto esofágico superior; B. Sinal da dupla bolha, sugestivo de obstrução duodenal.



Caso 2

Recém-nascido de 31 semanas de gestação, com peso ao nascer de 1.880 gramas. Polidramnia gestacional. Sem outras malformações aparentes. Na sala de parto tentou-se passar sonda nasogástrica, porém sem sucesso. Encaminhado para a unidade de terapia intensiva devido à idade gestacional e investigação clínica. Radiografia de tórax e abdome também mostrou AE com coto proximal em transição cervicotorácica com provável associação à FTE e sinal da dupla bolha compatível com ODC (Figura 2). Realizado procedimento cirúrgico no 2° dia de vida, onde foi comprovado a AE/FTE do tipo long-gap (04 corpos vertebrais), sendo optado pela realização de esofagostomia cervical com ligadura da fístula distal e tratamento da obstrução duodenal do tipo pâncreas anular reparada com duodeno-duodeno anastomose (diamond shaped), realizada em tempo cirúrgico único, além de gastrostomia. Evoluiu bem, sendo alimentado no 5° dia pós-operatório e alta hospitalar após 40 dias devido ao baixo peso ao nascer e complicações neurológicas (hemorragia ventricular e síndrome convulsiva). O paciente segue há dois anos em acompanhamento ambulatorial sem intercorrências e em programação cirúrgica para reconstrução de trânsito esofágico ao completar idade e peso ideal.


Figura 2. A. Radiografia de tórax com parada de progressão de contraste em posição cervicotorácica; B. Sinal da dupla bolha.



DISCUSSÃO

A associação de AE com ou sem FTE e ODC é conhecido, embora raro3. Série publicada por Ein et al.3 de 30 anos mostrou associação entre AE com ou sem FTE e ODC de 6%.

O manejo adequado do recém-nascido com AE com ou sem FTE e ODC reside no reconhecimento precoce dessas duas anomalias e uma abordagem bem organizada para seu reparo. Em bebês portadores de AE com FTE, o diagnóstico de um quadro coexistente de ODC geralmente pode ser sugerido com uma radiografia de abdome em que é visualizado do sinal da dupla bolha, como foram os dois casos descritos3. Nos casos de AE sem FTE, o diagnóstico de ODC, na maioria das vezes é retardado até que o trânsito esofágico seja estabelecido ou quando a alimentação por gastrostomia falha4 podendo levar ao aumento da taxa de mortalidade, sobretudo por broncoaspiração e insuficiência respiratória3, o que não foi descrito nessa casuística relatada.

O momento do reparo cirúrgico ainda é controverso5 devido às comorbidades e malformações associadas. O procedimento programado com diagnóstico prévio das duas afecções, AE e ODC, parece reduzir mortalidade em 26%3, porém não é possível atribuir somente a este dado essa redução, visto que se trata de um fenômeno com múltiplas variáveis em virtude de toda complexidade dos casos.


CONCLUSÃO

A AE com ou sem FTE associado à ODC é uma entidade rara que merece conhecimento. A investigação complementar de outras malformações congênitas do tubo digestivo, como a ODC, para além do espectro VACTERL em recém-nascidos portadores de AE com ou sem FTE deve ser sempre realizada com propedêutica simples e sinais precoces de não progressão da dieta após reestabelecimento do trânsito esofágico. O tratamento de forma programada e sincrônicas das duas malformações (AE e ODC) traz uma redução considerável da mortalidade, sobretudo devido à redução de complicações associados à ODC como pneumonia aspirativa. Portanto, o manejo cirúrgico de recém-nascidos com múltiplas malformações permanece um desafio para o cirurgião pediátrico que atrelado à alta suspeição clínica com organização e eficiência no tratamento traz, na maioria das vezes, melhores desfechos.


REFERÊNCIAS

1. Stark Z, Patel N, Clarnette T, Moody A. Triad of tracheoesophageal fistula-esophageal atresia, pulmonar hypoplasia, and duodenal atresia. J Pediatr Surg. 2007 Jun;42(6):1146-8.

2. Chen QJ, Gao ZG, Tou JF, Quan YZ, Li MJ, Xiong QX, et al. Congenital duodenal obstruction in neonates: a decade’s experience from one center. World J Pediatr. 2014 Aug;10(3):238-44.

3. Ein SH, Palder SB, Filler RM. Babies with esophageal and duodenal atresia: a 30-year review of a multifaceted problem. J Pediatr Surg. 2006 Mar;41(3):530-2.

4. McCook TA, Felman AH. Esophageal atresia, duodenal atresia and gastric distension: experience of 18 patients. J Pediatr Surg. 1981;16:4-7.

5. Karlan M, Thompson J, Clatworthy Junior HW. Congenital atresia of the esophagus with tracheoesophageal fistula and duodenal atresia. Surgery. 1957;41:544-8.










Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Pediatria e Cirurgia Pediátrica da Universidade Estadual de Londrina, Hospital Universitário Regional
do Norte do Paraná, Londrina, PR, Brasil - Londrina - PR - Brasil

Endereço para correspondência:
Julio Onofre de Oliveira Tavares
Universidade Estadual de Londrina
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E-mail: julioonofre.qi@gmail.com

Data de Submissão: 06/02/2019
Data de Aprovação: 08/04/2020