ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Febre maculosa: relato de caso

Spotted fever: case report

RESUMO

A febre maculosa é uma zoonose emergente grave causada pela bactéria Rickettsia e transmitida por carrapatos, esta pode ser fatal se não for diagnosticada e tratada no início dos sintomas clínicos. Segue o relato de caso de um paciente pediátrico, residente de área rural do interior do Espírito Santo, Brasil, com febre Maculosa que apresentou evolução desfavorável. O diagnóstico foi confirmado através da técnica de imunofluorescência indireta após o óbito. Considerando a alta letalidade e a prevalência da doença nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, deve-se pensar nesse diagnóstico diferencial na presença de sintomatologia e epidemiologia sugestivas desse agravo, visando reduzir a morbimortalidade da população acometida.

Palavras-chave: Doenças Transmitidas por Carrapatos, Criança, Rickettsiose do Grupo da Febre Maculosa.

ABSTRACT

Spotted fever is a severe and emergent zoonosis caused by Rickettsia and transmitted by ticks, it can be fatal if not diagnosed and treated in the begging of clinical symptoms. The following report is the description of a case of a pediatric patient residing in a rural area in the countryside of the state of Espírito Santo, Brazil, with spotted fever presenting unfavorable evolution. The diagnosis was confirmed by the indirect immunofluorescence test after death. Considering the high lethality and prevalence of the disease in the southeastern and southern regions of Brazil, this differential diagnosis should be considered in the presence of symptomatology and epidemiology suggestive of this disease, in order to reduce the morbidity and mortality of the affected population.

Keywords: Tick-Borne Diseases, Child, Spotted Fever Group Rickettsiosis.


INTRODUÇÃO

A Febre Maculosa Brasileira (FMB), doença de notificação compulsória, também é conhecida como Tifo transmitido pelo carrapato ou Febre Petequial. Foi reconhecida pela primeira vez, no Brasil, em 1929, em São Paulo1.

A febre maculosa tem sido registrada em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Goiás, Ceará, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Pernambuco. Santa Catarina e São Paulo são as Unidades Federadas que apresentam os maiores coeficientes de incidência por 100 mil habitantes. Vale lembrar que a notificação compulsória deve ser feita imediatamente. A taxa de letalidade média é de 32,9%, no entanto, chama-se a atenção para a região Sudeste do Brasil, onde a taxa de letalidade é de aproximadamente 50%1,4.

A bactéria gram negativa Rickettsia, causadora da febre maculosa, é intracelular obrigatória e transmitida por picada de carrapatos infectados do gênero Amblyomma1,2.

Embora no Brasil o número de casos confirmados de febre maculosa esteja em declínio desde 2005, as taxas de mortalidade giram em torno de 20 a 30%, em função das dificuldades em fazer o diagnóstico e estabelecer a terapia apropriada, relacionadas ao pouco conhecimento sobre a doença e à sintomatologia inespecífica1,3-4.

As manifestações clínicas têm início cerca de uma semana após a picada do carrapato, com febre alta, cefaleia, dores abdominais e erupção maculopapular. A doença pode evoluir para complicações respiratórias e renais, transtornos de coagulação e encefalite. Devido à gravidade da doença, a antibioticoterapia com tetraciclinas ou cloranfenicol deve ser iniciada rapidamente, independentemente da análise laboratorial1,5-6.

Os exames laboratoriais são inespecíficos, porém para confirmação do caso, há disponível no Brasil a cultura com isolamento da Rickettsia, este é o método diagnóstico ideal, a reação sorológica de imunofluorescência indireta (RIFI), utilizando antígenos específicos para Rickettsia, que é o mais utilizado. Deve ser considerado como confirmatório um aumento de 4 vezes no título em uma segunda amostra coletada, pelo menos, 2 semanas após a primeira. Outros métodos utilizados são a reação em cadeia da polimerase (PCR) e a imuno-histoquímica1,6.

Este relato almeja contribuir para melhor compreensão da doença pelos profissionais da saúde, a fim de auxiliá-los no reconhecimento de um caso suspeito, além de descrever um caso confirmado de febre maculosa evidenciando critérios clínicos e laboratoriais para diagnóstico, reforçando a importância da identificação precoce da febre maculosa e suas características clínicas, para melhor prognóstico.


RELATO DE CASO

R.V., masculino, 10 anos, morador de área rural no estado do Espírito Santo, encaminhado ao serviço de emergência do Hospital Estadual Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves, em Vila Velha, com relato de febre há 3 dias, associada a cefaleia, mialgia e dor em panturrilha, que evoluiu com exantema difuso, vômitos e diarreia.

História epidemiológica evidenciou moradia próxima a ratos e cavalos. Ao exame físico apresentava-se desidratado, ictérico +/4+, hipocorado +/4+, linfonodomegalia cervical e hepatomegalia, restante do exame sem alterações. O exame laboratorial evidenciou pancitopenia. Iniciado ceftriaxone e feito expansão volêmica com 20 ml/kg.

Após 14 horas paciente evoluiu obnubilado, taquipneico, taquicárdico, com sinais de má perfusão periférica, petéquias disseminadas e piora da icterícia. Sem resposta ao tratamento inicial, foi encaminhado à UTI pediátrica (UTIP) com hipotensão, exantema violáceo em membros inferiores e sangramento em locais de punção. Realizado intubação orotraqueal, iniciado adrenalina em infusão contínua, concentrado de plaquetas, vitamina K e associado oxacilina em antibioticoperapia.

Em 24 horas da entrada no hospital, o paciente teve piora do estado geral, com pulsos não palpáveis, múltiplas sufusões hemorráficas e insuficiência renal. Associado drogas vasoativas e hemoconcentrados, sem resposta. Evoluiu com cinco paradas cardíacas, sendo a última sem sucesso na reanimação. Veio a óbito 12 horas após admissão na UTIP. O corpo foi encaminhado ao Serviço de Verificação de Óbitos (SVO) para elucidação diagnóstica. Resultado confirmou Febre Maculosa através da reação sorológica de imunofluorescência indireta.


DISCUSSÃO

A Rickettsia tem sua evolução em estrito relacionamento com a de seus animais-reservatório, os equídeos, os roedores, como a capivara, e os marsupiais, como o gambá. Os animais mantêm infecção persistente ao amplificar as riquétsias, assim como transportar carrapatos potencialmente infectados2. No caso, o paciente residia em área rural próxima a cavalos no interior do Espírito Santo, um dos estados do Brasil que a Febre Maculosa tem sido registrada3,4,9.

O paciente apresentou um quadro febril inespecífico, gerando, por isso, muitas hipóteses diagnósticas, como leptospirose, dengue, salmonelose e viroses exantemáticas. Com a progressão da doença, a piora da icterícia e os sinais de má perfusão tecidual, outros diagnósticos diferenciais passaram a ser considerados, como meningococcemia, febre amarela, forma grave de leptospirose (Síndrome de Weil), ou ainda outras doenças transmitidas por carrapatos, como a Doença de Lyme1,4-6.

Já na UTIP, o paciente evoluiu com hipotensão, múltiplas sufusões hemorrágicas e insuficiência renal. Juntando todos os dados epidemiológicos bem como os exames laboratoriais e a evolução do agravo, a hipótese de Febre Maculosa se apresentou mais factível, porém não a principal, tendo em vista que a comprovação pela sorologia ainda não havia sido determinada. Desse modo, o paciente foi tratado com antibioticoterapia empírica de amplo espectro, além da realização do tratamento de suportes hemodinâmico e ventilatório.

A primeira escolha para tratamento de casos de Febre Maculosa é a Doxiciclina, independentemente da faixa etária, enquanto o cloranfenicol é a segunda opção terapêutica. Porém, há obstáculos técnicos e terapêuticos devido a não existência de doxiciclina via parenteral no Brasil1,6,9. De maneira análoga, as dificuldades existentes em todo o país, no serviço do presente caso, o tratamento de escolha seria o cloranfenicol endovenoso. Lamentavelmente, o paciente veio a óbito após a quinta parada cardiorrespiratória na UTIP, não proporcionando o tempo hábil para início da antibioticoterapia apropriada.

O diagnóstico de Febre Maculosa foi baseado na história clínico-epidemiológica e confirmado no SVO por meio da imunofluorescência indireta em apenas uma amostra, uma vez que o desfecho clínico do paciente impossibilitou uma segunda coleta. Foi realizada notificação compulsória ao centro de vigilância epidemiológica do município de Vila Velha.

Levando em consideração a alta letalidade e a prevalência da doença nas regiões Sudeste e Sul, o diagnóstico diferencial da febre maculosa deve ser instituído em quadros clínicos semelhantes para que não haja atraso no diagnóstico e tratamento, a fim de diminuirmos o desfecho desfavorável de tal doença6,9.


CONFLITOS DE INTERESSE

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.


REFERÊNCIAS

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1. Hospital Estadual Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves, Pronto Socorro e UTIP - Vila Velha - Espírito Santo - Brasil
2. Universidade Vila Velha, Curso de Medicina - Vila Velha - Espírito Santo - Brasil

Endereço para correspondência:
Thais Meneses Wyatt
Hospital Estadual Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves
Av. Min. Salgado Filho, 918 - Cristóvão Colombo, Vila Velha
ES,Brasil. CEP: 29106-345
E-mail: thaiswyatt@hotmail.com

Data de Submissão: 17/01/2019
Data de Aprovação: 24/04/2019