ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Artigo Original - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Alimentação complementar: o que sabemos?

Complementary feeding: what do we know?

RESUMO

INTRODUÇÃO: Alimentação complementar (AC) é definida como o conjunto de alimentos que são oferecidos ao lactente, a partir do 6º mês de vida, em complemento ao aleitamento materno ou às fórmulas infantis. Um dos papéis do pediatra é orientar sobre a introdução da AC.
MÉTODOS: Estudo transversal descritivo, através da autoaplicação de questionário não validado com pediatras e residentes de pediatria, sobre informações demográficas, conhecimentos de práticas alimentares, nutrição e suplementação nos primeiros dois anos de vida. Foram verificadas associações entre o tempo de formado e grau de formação com as variáveis suplementação de ferro e vitamina D.
RESULTADOS: A amostra final foi composta por 109 questionários; 63% dos participantes consideraram a presença de tópicos sobre alimentação infantil pouco suficiente ou insuficiente em sua formação. Dos participantes, 66,9% e 38,53% seguem as recomendações vigentes quanto à idade de suplementação de ferro e vitamina D, respectivamente.
DISCUSSÃO: Observou-se orientações divergentes das evidências científicas atuais por parte dos pediatras e residentes em pediatria. Houve relação entre o tempo de formado e maior proporção de orientações inadequadas quanto à suplementação de ferro.
CONCLUSÃO: Deve-se considerar uma abordagem mais enfática do tópico alimentação infantil tanto na formação pediátrica quanto no contexto de atualização profissional.

Palavras-chave: Pediatria,Sulfato Ferroso, Alimentação, Vitamina D.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Complementary feeding (CF) is defined as the set of foods that are offered to the infant, from the 6th month of life, in addition to breastfeeding or infant formulas. One of the roles of the pediatrician is to guide the introduction of CF.
METHODOS: Descriptive cross-sectional study through self-administered questionnaire with pediatricians and pediatrics residents on demographic information, knowledge of feeding practices, nutrition and supplementation in the first two years of life. There were analyzed associations between time since medical degree and degree of formation with the variables supplementation of iron and vitamin D.
RESULTS: The final sample consisted of 109 questionnaires; 63% of the participants considered the presence of topics on infant feeding insufficient. A total of 66,9% and 38.53% of the participants follow the current recommendations regarding the age of supplementation of iron and vitamin D, respectively.
DISCUSSION: We observed divergent practices of current scientific evidence by pediatricians and pediatric residents. There was a relationship between training time and a higher proportion of inadequate practice regarding iron supplementation.
CONCLUSION: A more emphatic approach to the topic of infant feeding should be considered both in pediatric training and in the context of professional update.

Keywords: Pediatrics, Ferrous Sulphate, Feeding, Vitamin D.


INTRODUÇÃO

Alimentação complementar (AC) é definida como o conjunto de alimentos que são oferecidos ao lactente, a partir do 6º mês de vida, em complemento ao aleitamento materno e/ou às fórmulas infantis1.

Sabe-se que fatores nutricionais e metabólicos, em fases iniciais do desenvolvimento humano, tem efeito a longo prazo na programação da saúde na vida adulta. O período entre o nascimento e os dois anos de vida é particularmente crítico para a promoção do desenvolvimento físico, da saúde e do comportamento. Um exemplo importante é a relação entre as más práticas de alimentação nos primeiros anos de vida e o desenvolvimento futuro de obesidade2,3. A introdução alimentar inadequada deve-se, principalmente, à falta de informação e a crenças incorretas sobre o assunto por parte de familiares e cuidadores, assim como profissionais da saúde4,5.

As crianças brasileiras, na faixa etária da introdução de AC, apresentam hábitos alimentares, em sua maioria, inadequados, fato que requer atenção especial dos profissionais da saúde. Pesquisa realizada com pais de 38.566 crianças, entre 6 e 23 meses de idade, em Unidades Básica de Saúde de municípios de todo o país, mostrou que apenas 14% delas consumiam alimentos ricos em ferro no dia anterior à consulta com pediatra, enquanto 56% algum tipo de alimento ultraprocessado6.

Um processo adequado de introdução da AC é diretamente dependente do conhecimento dos familiares sobre o assunto, com ênfase no papel materno neste contexto. Em um estudo acerca do conhecimento de mães sobre AC, apenas 34% delas sabia identificar os grupos alimentares adequados para compor o cardápio de uma criança de 6 meses de idade, enquanto 72% não sabia identificar a melhor forma de oferecer os alimentos7.

Embora nos últimos anos tenha ocorrido um avanço importante na promoção do aleitamento materno, não é verificado os mesmos avanços na promoção da AC. Novos conhecimentos sobre a alimentação infantil tornaram ultrapassadas muitas recomendações que fizeram parte da prática pediátrica por muito tempo2,8.

Silva e Gubert9, analisando informações contidas em sites da internet de profissionais da saúde sobre recomendações de introdução de AC, verificaram que os conteúdos não estavam de acordo com as orientações vigentes do Ministério da Saúde.

Um dos papéis do pediatra é, em conjunto com nutricionistas e demais profissionais da área da saúde, orientar sobre a introdução da AC, destacando a importância de nutrientes adequados à melhor composição corporal e avaliando a qualidade dos alimentos consumidos pela família10.

Diante da epidemia de obesidade infantil e de fome oculta, é importante avaliar, de forma objetiva, o conhecimento de pediatras sobre estes assuntos.


MÉTODOS

Trata-se de um estudo transversal descritivo. O instrumento da pesquisa foi um questionário não validado, autoaplicado, elaborado pelos pesquisadores com questões fechadas sobre informações demográficas, conhecimentos de práticas alimentares, nutrição e suplementação nos primeiros dois anos de vida (anexo suplementar). O questionário foi aplicado a pediatras e médicos residentes em pediatria em amostra por conveniência, por colaboração espontânea e de forma anônima, através da ferramenta Google Formulários. Foram convidados a participar pediatras e médicos residentes vinculados a um hospital terciário e também médicos de um grupo de interessados em nutrição. Os participantes receberam texto informativo orientando que, ao responder o questionário, estavam concordando em participar da pesquisa. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição sob o número 170427.

Foram verificadas associações entre tempo de formado e grau de formação com as variáveis suplementação de ferro e vitamina D. No estudo de associações, foi utilizado o teste de qui-quadrado, com significância estatística de 5% (p<0,05), no Software SPSS® v.20.


RESULTADOS

A amostra final foi composta por 109 questionários, sendo 51 (46,7%) residentes de pediatria e 58 (53,3%) pediatras. Dados sobre a especialização, tempo de formação dos participantes e de onde obtinham formação continuada em nutrição infantil estão descritos na Tabela 1.




Quando perguntados se consideravam ter sido suficiente a abordagem do tópico aleitamento materno na sua formação, 76 (69,7%) participantes consideraram muito suficiente ou suficiente; 28 (25,7%), pouco suficiente e 5 (4,6%), insuficiente. Quanto à presença de tópicos sobre alimentação infantil, 69 (63%) consideraram pouco suficiente ou insuficiente e 40 (37%), suficiente ou muito suficiente.

Com relação à introdução da AC, 78 (71,6%) profissionais consideraram que as frutas deveriam ser os primeiros alimentos ofertados; 20 (18,3%), a papa de legumes e carne; 6 (5,5%), os sucos e 3 (2,8%), uma papa principal com legumes. Sobre a consistência do início da AC, 104 (95,4%) participantes consideraram que os alimentos deveriam ser oferecidos em forma de papa, amassados com o garfo.

Quanto à idade da oferta de ovo inteiro (clara e gema), 76 (66,1%) orientavam que fosse oferecido a partir dos 6 meses; 21 (19,3%), a partir de 1 ano de idade; 15 (13,8%), a partir dos 9 meses e 1(0,9%), a partir dos 4 meses.

Apenas 1 (0,9%) participante orientava a introdução do mel na dieta a partir dos 6 meses de idade, enquanto os demais 108 (99,1%) a partir de 1 ano.

Setenta e três (67%) participantes orientavam a introdução do peixe à dieta do lactente a partir dos 6 meses de idade, 18 (16,5%) a partir de 1 ano de idade, 17 (15,6%) a partir dos 9 meses e 1 (0,9%) a partir dos 4 meses.

Quando questionados sobre qual deveria ser o intervalo médio entre cada refeição, 95 participantes (87,2%) responderam 3 horas; 9 (8,3%), 4 horas; e 5 (4,6%), 2 horas.

O tempo máximo considerado para ingestão de uma papa foi de 30 minutos para 62 profissionais (56,9%), 45 minutos para 31 profissionais (28,4%); 60 minutos para 14 participantes (12,8%) e 90 minutos para 2 participantes (1,8%).

Quando questionados sobre quando os sucos podem ser oferecidos pela primeira vez, 49 participantes (44,9%) responderam ser a partir de um ano de idade; 36 (33%), a partir dos 6 meses; e 2 (1,8%), a partir dos 9 meses. Quanto à recomendação de volume máximo de suco a ser ofertado por dia, 55 (50%) orientavam 100mL; 30 (27,5%), 200mL e apenas 2 participantes (2%), 300 ou 400mL. Foram excluídos 22 participantes por terem respondido mais de uma opção nesses itens.

Quanto à suplementação de ferro, 73 participantes (67%) responderam corretamente quanto ao período recomendado. Foram consideradas como corretas as respostas que se referiam ao início da suplementação de ferro com 6 meses e também na idade de início da AC, ambas com término aos 2 anos de idade. Com relação à suplementação de vitamina D, 42 participantes (38,5%) responderam corretamente quanto ao período recomendado, enquanto 51 (46,8%) erraram a questão. Foram consideradas como corretas as respostas que se referiam ao início da suplementação de vitamina D com 7 dias de vida e término aos 2 anos de idade. Foram excluídos 4 e 16 participantes, respectivamente, por terem respondido mais de uma opção nessas perguntas.

Quando correlacionadas as variáveis tempo de formação e grau de formação vs. suplementação de ferro, observou-se uma associação estatística entre o menor tempo de formação (< 1 a 5 anos) e o status da formação (atual médico residente de pediatria) com a adequada orientação em relação à suplementação de ferro na infância (Tabela 2).




Não foi possível correlacionar as variáveis suplementação de vitamina D com tempo de formado ou grau de formação devido ao número de respostas inválidas.


DISCUSSÃO

Considera-se que até o 6º mês de vida, tanto em lactentes em aleitamento materno quanto em uso de fórmula láctea, não há necessidade de introdução de outros tipos de alimento no plano alimentar para atender suas necessidades nutricionais. Após o sexto mês, deve-se introduzir alimentos de maneira gradual, com atenção especial à higiene no preparo e à presença de micronutrientes, não utilizando alimentos ultraprocessados2.

Os benefícios da AC adequada nos primeiros dois anos de vida são indiscutíveis4,11,12. Enquanto os pais ou cuidadores são os responsáveis por preparar e oferecer a AC, os pediatras devem orientar práticas de alimentação baseadas em evidências científicas1,3,10,11.

Mais da metade dos profissionais participantes do presente estudo não consideravam suficientes os ensinamentos sobre alimentação infantil na sua formação, fato que provavelmente pode repercutir na prática profissional futura. Em contraste com a grande quantidade de literatura disponível acerca de aleitamento materno, menos atenção é dada ao período de introdução de alimentos e sua influência na saúde e desenvolvimento das crianças, fato que parece contribuir para as diferentes orientações quanto à AC11. A capacitação dos profissionais da saúde com vistas a prover recomendações de AC é fundamental para melhorar as práticas dos cuidadores13.

O Ministério da Saúde recomenda que após os seis meses de idade a criança receba duas papas de frutas e uma papa principal (almoço ou jantar), inicialmente amassados com o garfo. A papa principal deve conter alimentos dos seguintes grupos: cereais/tubérculos, legumes e verduras, carnes ou ovos e feijões. O grupo das carnes engloba diversas origens animais, incluindo o peixe14. No presente estudo, a maioria dos participantes orienta a introdução dos alimentos na consistência correta. Entretanto, aproximadamente um terço deles, recomenda a introdução do peixe à dieta após os 9 meses de idade.

Embora ainda existam orientações discrepantes quanto à introdução do ovo inteiro à dieta das crianças, metanálise de Ierodiakonou et al.15 mostrou que há menor risco de alergia quando introduzido entre os 4-6 meses de idade. A orientação do Ministério da Saúde é que o ovo inteiro cozido seja ofertado à criança amamentada aos 6 meses de idade14. Em nosso estudo, 43% dos participantes orientam a introdução do ovo inteiro na dieta das crianças fora do período recomendado pelas evidências atuais.

Quanto ao intervalo entre as refeições e o tempo para ingestão de papas, a Academia Americana de Pediatria sugere intervalo entre 2 a 3 horas entre cada uma16. Tal prática é orientada pela maioria dos participantes do presente estudo.

Observou-se diferentes orientações quanto à introdução de suco na AC, talvez porque esta seja uma recomendação mais recente. Anteriormente o suco era recomendado pelos pediatras como fonte de vitaminas e de hidratação17. Posicionamento de 2017 da Academia Americana de Pediatria oficializou a recomendação de não oferecer sucos às crianças até 1 ano de idade e após limitar o consumo ao máximo de 100mL/dia até os 3 anos de idade. Deve-se incentivar o consumo da fruta inteira, uma vez que somente o suco não oferece benefício nutricional em uma dieta saudável e balanceada17.

O período da introdução da AC, a partir dos 6 meses de vida, é de alto risco para desenvolvimento de deficiência de micronutrientes, principalmente de ferro. A deficiência de ferro está associada à 60% dos casos de anemia18. Além da orientação de ofertar alimentação variada que inclua insumos de origem animal, frutas e verduras, evitar bebidas de baixo valor nutricional e que diminuam a absorção do ferro e da fortificação de alimentos, a suplementação de ferro também faz parte da estratégia de prevenção da anemia nesta faixa etária19.

A Organização Mundial da Saúde recomenda suplementação de ferro como medida de saúde pública para prevenção de deficiência de ferro e anemia em crianças de 6-23 meses de idade, em locais onde a prevalência de anemia é maior ou igual a 40%19. No Brasil, a prevalência descrita de anemia varia entre 40% e 50% das crianças estudadas18. O Ministério da Saúde, através do Programa Nacional de Suplementação de Ferro, orienta que crianças entre seis e 24 meses devem ser suplementadas com sulfato ferroso profilático na dosagem de 1mg/kg/dia20. Observou-se que 70% dos participantes do presente estudo recomendam a suplementação de sulfato ferroso dos 6 meses de idade ou por ocasião da introdução da AC até os 2 anos de idade. Consenso recente da Sociedade Brasileira de Pediatria18 sugere a revisão dos critérios de suplementação profilática adotados atualmente, recomendando o início a partir do 3º mês de vida para recém-nascidos a termo, de peso adequado para a idade gestacional, independentemente de estarem ou não em aleitamento materno exclusivo.

A vitamina D é um pró hormônio que está envolvido no metabolismo ósseo e na regulação dos níveis plasmáticos de cálcio e fósforo. Pesquisas recentes mostram que sua deficiência parece estar relacionada não somente com alterações ósseas, mas também com o aparecimento de diferentes doenças autoimunes, cardiovasculares e oncológicas21,22. Pequena quantidade de vitamina D é proveniente da dieta, sendo a maior parte sintetizada na pele através da exposição aos raios ultravioleta. A quantidade de vitamina D no leite materno é insuficiente para suprir a ingestão recomendada – 40UI vitamina D em 1 litro de leite materno23. A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda suplementação profilática de 400UI/dia a partir da primeira semana de vida até os 12 meses - para crianças a termo, inclusive aquelas em aleitamento materno exclusivo - e de 600UI/dia dos 12 aos 24 meses, independentemente da região do país24. Apesar de bem estabelecida, a recomendação de 2014 parece estar pouco incorporada à prática dos profissionais, como podemos ver em 45% das respostas válidas corretas.

Observa-se relação inversa entre o tempo de formado e status da formação com recomendação de suplementação de ferro adequada às evidências atuais, o que sugere que o tópico nutrição infantil necessita de abordagem mais enfática no que diz respeito à atualização profissional. Cabe salientar que a nutrologia pediátrica é uma especialidade que vem sendo mais valorizada nos últimos anos, mas ainda é jovem.

Como limitações do presente estudo, citamos a impossibilidade de estabelecer relação causa-efeito entre as variáveis, inerente de todo estudo transversal. Além disso, há possível viés de seleção pela amostra ser por conveniência. Houve perda significativa de respostas em algumas perguntas que podem ser decorrentes de o questionário ser autoaplicável, embora tenha sido realizado teste de aplicação em amostra piloto.


CONCLUSÃO

Considerando o papel fundamental que o pediatra exerce na introdução da AC e a influência das práticas alimentares da infância no desenvolvimento de hábitos para toda a vida, é imprescindível que as orientações de alimentação e suplementação estejam de acordo com as recomendações vigentes. Deve-se considerar uma abordagem mais enfática do tópico alimentação infantil tanto na formação pediátrica quanto no contexto de atualização profissional.


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1 Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Serviço de Pediatria - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento de Pediatria - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
3 Universidade Federal São Carlos, Faculdade de Medicina - São Carlos - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:

Verônica Indicatti Fiamenghi.
Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Rua Ramiro Barcelos, 2350 - Santa Cecilia, Porto Alegre - RS, Brasil. CEP: 90035-007
E-mail: vifiamenghi@gmail.com

Data de Submissão: 05/02/2019
Data de Aprovação: 10/03/2019