ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

COVID-19: relato de manifestações cardiovasculares na infância

COVID-19: report of cardiovascular manifestations in childhood

RESUMO

Acreditava-se que a doença do coronavírus 2019 (COVID-19) pouco afetava a população pediátrica. Contudo, com o passar dos meses, ficou evidente que sua ocorrência ultrapassa a forma oligo ou assintomática na infância, fazendo parte de um vasto acometimento multissistêmico secundário à tempestade de citocinas inflamatórias, chamada síndrome inflamatória multissistêmica (MIS-C). Esta, por sua vez, inclui o envolvimento cardíaco, podendo levar à miocardite, pericardite e, até mesmo, alterações coronarianas. Descreveremos dois casos de crianças diagnosticadas com COVID-19, internadas na unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP), com formas distintas de acometimento cardiovascular. Assim, mediante esta variedade de sinais e sintomas associado ao vírus, nosso objetivo é poder contribuir para o preenchimento das lacunas a respeito de suas manifestações clínicas e possíveis abordagens terapêuticas, visando uma atuação mais homogênea para agregar conhecimento aos futuros estudos.

Palavras-chave: Infecções por Coronavírus, Criança, Síndrome de Linfonodos Mucocutâneos, Miocardite, Doenças Coronárias.

ABSTRACT

Coronavirus 2019 disease (COVID-19) was believed to have little effect on the pediatric population. However, over the months, it became evident that its occurrence goes beyond the oligo or asymptomatic form in childhood, being part of a vast multisystemic affection secondary to the inflammatory cytokine storm called, multisystemic inflammatory syndrome (MIS-C). This, in turn, includes cardiac involvement, which can lead to myocarditis, pericarditis and even coronary changes. We will describe two cases of children diagnosed with COVID-19, admitted to the pediatric intensive care unit (PICU), with different forms of cardiovascular involvement. Thus, through this variety of signs and symptoms associated with the virus, our goal is to be able to contribute to filling in the gaps regarding its clinical manifestations and possible therapeutic approaches aiming at a more homogeneous performance to add knowledge to future studies

Keywords: Coronavirus Infections, Child, Mucocutaneous Lymph Node Syndrome, Myocarditis, Coronary Diseases.


INTRODUÇÃO

Vivemos uma pandemia provocada pelo SARS-CoV-2, um vírus de transmissão predominantemente respiratória, da família dos coronavírus, descoberto em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, na China1.

Apesar do trato respiratório ser a via preferencial de multiplicação viral em qualquer faixa etária, com evolução benigna e oligo ou assintomática na infância, nos últimos meses, temos observado maior incidência de grave sintomatologia não pulmonar na faixa etária pediátrica2,3. Dentre estes sintomas estão os semelhantes à doença de Kawasaki (DK)4; o acometimento gastrointestinal5; o envolvimento cardíaco (variando de miocardite à vasculite aneurismática); e, ainda, o choque circulatório com potencial falência de múltiplos órgãos e óbito, também conhecido como síndrome inflamatória multissistêmica6-8.

Neste contexto, apresentamos dois casos de pacientes pediátricos infectados pelo SARS-CoV-2 apresentando formas graves e distintas de envolvimento cardíaco, internados na UTIP de um hospital terciário localizado na cidade do Rio de Janeiro. Almejamos agregar conhecimento para futuros estudos a respeito do acometimento predominantemente cardiovascular, provavelmente secundário ao SARS-CoV-2, um tema pouco explorado e com terapias não unificadas na pediatria.


RELATO DE CASO

Caso 1

Paciente masculino, 1 ano e 5 meses, pardo, previamente hígido, filho de pais contactantes de portadores da COVID-19 e com sintomas respiratórios leves, dá entrada na emergência com lesões cutâneas urticariformes e purpúricas difusas e não pruriginosas (Figura 1), edemas de extremidades, diarreia não sanguinolenta, rinorreia e febre alta durante três dias. Inicialmente, o teste rápido IgM e IgG para o SARS-CoV-2 era negativo, mas o swab naso e orofaríngeo pela técnica da polymerase chain reaction (PCR) era positivo, e apesar de estabilidade clínica, o D-dímero denotava elevado risco trombogênico, optando-se por transferência para UTIP. No quarto dia da doença, verificou-se elevação do peptídeo natriurético tipo B (pró-BNP) e das enzimas cardíacas, exceto pela troponina (Tabela 1); onda T apiculada no eletrocardiograma (ECG); dilatação coronariana esquerda de aproximadamente 2,5mm, sem lesões aneurismáticas e com fração de ejeção (FE) de 57% no ecocardiograma (ECO); e normalidade em doppler venoso de membros inferiores e de vasos cervicais e em doppler arterial de carótidas.


Figura 1. Manifestações cutâneas da COVID-19: lesões vasculares cutâneas difusas, referente ao paciente do caso 1. Foto autorizada pelos pais.





Após exclusão de arboviroses e de outras infecções virais e bacterianas comunitárias, foi aventado a hipótese de doença de Kawasaki incompleta e iniciado imunoglobulina venosa humana (IVIZG - 2g/kg/dia) e ácido acetilsalicílico (AAS - 80mg/kg/dia, posteriormente reduzido para 5mg/kg/dia). Criança manteve-se afebril e em excelente estado geral durante toda a internação, com resolução das lesões cutâneas em 72 horas após admissão, redução do diâmetro coronariano para 1,8mm e elevação FE para 70% no ECO de controle uma semana após início do tratamento medicamentoso. Evoluiu com alta hospitalar no décimo segundo dia da doença, em uso de AAS (5mg/kg/dia).

Caso 2

Paciente feminina, hígida, parda, 3 anos, sem contactantes com a COVID-19, é admitida com 6 dias de febre, dor abdominal em fossa ilíaca direita, vômitos e discreto exantema macular em membros superiores. Após 12 horas, evoluiu com alteração de sensório, distúrbio de perfusão, taquicardia com ritmo cardíaco irregular e oligúria. Foi transferida para UTIP sendo acoplada à prótese ventilatória e iniciado inotrópico para compensação hemodinâmica. Inicialmente, apenas o IgG para o SARS-CoV-2 era positivo; seus marcadores inflamatórios e D-dímero eram elevados (Tabela 1), sendo optado pelo início de anticoagulação profilática, apresentava opacidades em vidro fosco com consolidação e aerobroncogramas de permeio em 25 a 50% do parênquima pulmonar e apêndice com 6mm de diâmetro, com mínima densificação adiposa adjacente, pequena quantidade de líquido livre e sem linfonodomegalias profundas em exames tomográficos.

Evoluiu com infra desnivelamento de segmento ST nas derivações DII, V2 e V3, elevação das enzimas cardíacas e elevação de pró-BNP (Tabela 1), apesar da preservação da função cardíaca com FE de 67% (em uso de amina), da normalidade do diâmetro coronariano e da ausência de lesões aneurismáticas em ECO. Neste interim, o PCR para SARS-CoV-2 positivou, sendo iniciado metilprednisolona (2mg/kg/dia por 7 dias) pela hipótese de MIS-C, com posterior redução até suspensão em 2 semanas.

Após 72 horas, foi possível extubação eletiva e suspensão de droga vasoativa. No entanto, evoluiu com ptose palpebral esquerda (sem anisocoria); movimentos clônicos do tipo piscar do olho esquerdo e do quadrante inferior de hemiface esquerda; movimentos discinéticos orofaciais de língua e boca e hiperreflexia profunda em membros inferiores. Tomografia computadorizada (TC) de crânio não evidenciou sangramento e/ou isquemia e PCR para SARS-CoV-2 foi negativo no líquor. Pela suspeita de epilepsia parcial contínua, iniciou-se fenitoína empiricamente e, 48 horas após, houve resolução completa do quadro neurológico com suspensão da droga em 7 dias.

Recebeu alta no décimo sexto dia de internação com resolução das provas inflamatórias e dos marcadores de lesão cardíaca, além do D-dímero em queda (Tabela 1), sem anticoagulação e em uso de AAS (5mg/kg/dia).


DISCUSSÃO

Com o avançar da pandemia, vimos a incidência da COVID-19 e sua gravidade na população pediátrica aumentar. Enquanto na maioria das publicações científicas, crianças com as formas graves da doença apresentam uma média entre 5 e 8 anos de idade, nossa casuística ocorreu em idades menores, de 1 e 3 anos, respectivamente2-8.

A MIS-C, uma manifestação grave e variada desta doença, inicialmente descrita no final de abril de 2020, é diagnosticada segundo critérios propostos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos9,10. Os casos apresentados se enquadram nestes critérios, revelando a amplitude e a diversidade do comprometimento sistêmico relacionado à COVID-19. Inclusive, ambos pertencem à etnia mais prevalente na literatura, negros e pardos11.

Segundo coortes europeias, muitas crianças apresentam manifestações semelhantes à DK completa ou incompleta, com algumas particularidades, tais como uma menor faixa etária de acometimento, o comprometimento gastrointestinal mais exuberante e o maior risco de choque ou de comprometimento cardíaco5,11. Em conformidade com o que tem sido relatado, ambos apresentaram febre e quadro abdominal como sintomatologia inicial, inclusive mimetizando abdome agudo, como no caso 25. Diante de um quadro cutâneo sugestivo de vasculite, a presença de dilatação coronariana, dos sintomas gastrointestinais e do PCR positivo para o SARS-CoV-2, o primeiro caso nos remeteu a uma DK incompleta, mesmo que na presença de achados não usuais. Chamava atenção o bom estado geral do paciente, a alteração não significativa das provas de atividade inflamatórias e o acometimento cardíaco precoce, ainda na fase aguda da doença, e significativo do ponto de vista ecocardiográfico.

Contrastando clinicamente com o primeiro caso, o segundo apresentou-se de forma grave, com rápida evolução para o choque circulatório, com necessidade de droga vasoativa, assim como 47% dos pacientes pediátricos de uma coorte inglesa3. Neste caso, também observamos um acometimento cardíaco incomum. Apesar das alterações eletrocardiográficas e da elevação das provas inflamatórias e enzimas cardíacas, não houve comprometimento da FE. No entanto, deve-se levar em consideração o uso de inotrópico no momento da realização do ECO.

Estudos recentes mostram que crianças com marcadores de injúria miocárdica positivos possuem maior propensão a piores desfechos, como a falência cardíaca aguda, quando FE atinge valores próximos de 30%11. Percebemos que ambos os pacientes em estudo demostravam elevação das enzimas cardíacas e dos marcadores inflamatórios. Porém, no caso 2, esta era mais expressiva a despeito de uma FE limítrofe na vigência de amina, o que diverge da literatura vigente.

Com uma amostra escassa e consequente falta de estudos controlados, pouco se sabe sobre a terapia mais adequada para estes pacientes. Sendo assim, vale destacar o uso da IVIZG e do AAS de maneira similar à usada na DK no caso 1, visando a não progressão para sua complicação mais temida, a aneurismática12. Acredita-se que dois terços dos pacientes com dilatação coronariana menor que 5mm, tenham resolução desta alteração em até 30 dias, ainda na fase aguda da doença; que 50-70 % apresentem regressão em até 2 anos; e que passado este período raramente estas lesões cronificam13. Tal fato, poderia explicar a não progressão aneurismática neste paciente.

Ressaltamos ainda, no caso 2, o papel da corticoterapia venosa no controle da resposta imunológica secundária à liberação exacerbada de citocinas na MIS-C. Em conformidade com recomendações recentemente publicada quanto ao uso de heparina profilática em crianças como fatores de risco para trombose, vale destacar a anticoagulação profilática oferecida a este paciente14,15. O quadro infeccioso, a presença de um cateter venoso profundo instalado, os marcadores inflamatórios alterados e o envolvimento cardíaco foram decisivos para o início desta profilaxia.

Assim, nossa amostra demostra a variedade clínica e laboratorial da fase aguda de dois casos pediátricos com provável comprometimento cardiovascular pelo SARS-CoV-2, mas que felizmente apresentaram evoluções satisfatórias.


CONCLUSÃO

As observações no decorrer da pandemia deixaram claro que a população pediátrica não apresenta apenas as formas clínicas leves da COVID-19. Em consonância com o que tem sido demonstrado, estes dois casos ilustram fenótipos de acometimento inflamatório com manifestações cardiovasculares graves e variadas. Fica evidente a necessidade de novos estudos que reúnam casuísticas para aprimorar o conhecimento sobre as diferentes apresentações desta doença, a fim de otimizar estratégias diagnósticas e terapêuticas.


REFERÊNCIAS

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15. Loi M, Branchford B, Kim J, Self C, Nuss R. COVID‐19 anticoagulation recommendations in children. Pediatr Blood Cancer. 2020 Jun;67(9):1-3.










Hospital Naval Marcilio Dias, Pediatria - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

Endereço para correspondência:
Dakeny da Vitória Souza
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E-mail: dakeny_@hotmail.com

Data de Submissão: 29/06/2020
Data de Aprovação: 03/07/2020