Relato de Caso
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Ano 2020 -
Volume 10 -
Número
3
Relato de caso de COVID-19 em lactente com síndrome de hipoventilação congênita central
Case report of COVID-19 in an infant with central congenital hypoventilation syndrome
Jéssica Neuenfeld Paniz1; Valentina Coutinho Baldoto Gava Chakr1,2
RESUMO
Relatar um caso de COVID-19 confirmada por PCR em uma lactente de 10 meses com síndrome de hipoventilação congênita central, portanto dependente de ventilação mecânica. O quadro se caracterizou por febre, sibilância, prostração, e episódios de hipoxemia associados a hipercapnia. Recebeu tratamento com oxigênio suplementar, além de antimicrobianos por infecção bacteriana sobreposta. A paciente evoluiu com melhora: suspensa suplementação de oxigênio no décimo terceiro dia de doença e retorno a parâmetros basais de ventilação mecânica. Apesar da doença de base, o desfecho foi favorável, recebendo alta 17 dias após início dos sintomas, com plano de terminar tratamento antimicrobiano a nível ambulatorial.
Palavras-chave:
Coronavirus, Relatos de Casos, Lactente, Apneia do Sono, Tipo Central
ABSTRACT
To report a case of COVID-19 confirmed by PCR in a 10-month-old infant with central congenital hypoventilation syndrome, therefore dependent on mechanical ventilation. The main clinical features were fever, wheezing, prostration, and episodes of hypoxemia associated with hypercapnia. The patient received treatment with supplemental oxygen, in addition to antimicrobials for overlapping bacterial infection. Thirteen days after disease onset, the patient showed great improvement: supplemental oxygen was discontinued and mechanical ventilation parameters returned to baseline. Despite the underlying disease, the outcome was favorable. Discharge happened on the 17th day of disease and antimicrobial treatment was completed as outpatient.
Keywords:
Coronavirus, Case Reports, Infant, Sleep Apnea, Central
INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019, em Wuhan (China), foi reportado um número crescente de adultos com pneumonia de causa desconhecida, sobretudo em pessoas expostas ao mercado de frutos do mar. No início de janeiro, o vírus foi identificado e fez sua primeira vítima fatal1. Em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde, declarou a doença causada pelo SARS-CoV-2, a COVID-19, como pandemia mundial2. Em 26 de junho de 2020, o Brasil era o segundo país com maior número de casos e mortes no mundo3.
No Brasil, até o dia 27 de junho de 2020 foram confirmados 1.313.667 casos e 57.070 óbitos devido à COVID-19. Ainda, até a semana epidemiológica 26 (de 21 a 27/06/2020), haviam sido notificados 332.423 casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) hospitalizados, sendo 44,7% confirmadamente devido à COVID-19. Destes, 884 eram menores de 1 ano, 729 tinham de 1 a 5 anos e 1.544 tinham entre 6 a 19 anos, totalizando cerca de 2,1% da amostra. Quanto aos óbitos por SRAG por COVID-19, o percentual referente à faixa etária pediátrica é ainda menor: 0,72% do total destas mortes4. Tais dados reiteram o que já foi divulgado em recentes estudos de revisão sistemática sobre o prognóstico da COVID-19 em crianças: a prevalência de casos críticos ou graves não chega a 6% e as mortes representam menos de 1%5-7. Em adultos, está bem estabelecido que a presença de certas comorbidades sejam fatores de risco para pior prognóstico, mas ainda não há nenhum estudo abrangente que tenha quantificado a prevalência de comorbidades em crianças e sua relação com a gravidade da COVID-195,8.
Dessa forma, é relevante que sejam relatados casos pediátricos, sobretudo com comorbidades, acometidas pela COVID-19 para que sua evolução clínica seja avaliada de forma a revelar se doenças subjacentes podem influenciar significativamente no desfecho clínicos desses pacientes.
RELATO DE CASO
Paciente prematura de 34 semanas, 10 meses de idade, sexo feminino, dependente de ventilação mecânica por traqueostomia devido à síndrome de hipoventilação congênita central (síndrome de Ondine relacionada ao gene PHOX2B), com estenose de traqueia distal (80% de obstrução relacionada a complicações da traqueostomia), comunicação interatrial tipo ostium secundum (sem repercussão hemodinâmica), hipotireoidismo central em adequada reposição hormonal, em uso de sonda para alimentação por disfagia orofaríngea e fenobarbital por duas crises convulsivas neonatais.
Paciente internada desde o seu nascimento (impossibilidade de alta por estar aguardando fornecimento de serviço de home care pelo Estado), ventilada em modo pressão controlado (pressão inspiratória de 26mmHg, pressão expiratória final 6mmHg, frequência respiratória de 22mpm), apresentou quadro autolimitado de coriza por um dia, sendo solicitada pesquisa de vírus respiratórios por imunofluorescência (negativa). Três dias após, inicia com aumento de secreção em traqueostomia e episódios de quedas de saturação (até 87%), sendo necessária a suplementação de oxigênio nestas ocasiões. Realizou revisão da traqueostomia que não mostrou alterações que justificassem o quadro. No segundo dia, começou a apresentar coriza hialina, sibilância (sem esforço respiratório) e quedas mais frequentes de saturação. Realizou radiografia de tórax sem alteração em relação ao basal. No terceiro dia à noite apresentou febre baixa (37,9ºC).
No quarto dia, manteve episódios febris (até 38,2ºC), prostração e hipoxemia, sobretudo à noite (87-88%) com necessidade de oxigênio suplementar (fluxo de até 4L/min). Teve necessidade eventual de ventilação com pressão positiva com dispositivo bolsa/válvula devido a dessaturações mais longas. Repetida radiografia de tórax e coletados exames: proteína C reativa (4,1 mg/L), hemograma (7930 leucócitos com 58,7% de segmentados, 10,6% de monócitos e 28,2% de linfócitos, e 119.000 plaquetas), e gasometria (pH = 7,27, pCO2 = 69,9mmHg, HCO3 = 31,7mmol/L). Radiografia foi normal. Alterados parâmetros do ventilador (pressão inspiratória 27mmHg, pressão expiratória 5mmHg e frequência respiratória 25mpm). Coletado swab de nasofaringe, com PCR positivo para SARS-CoV-2, sendo colocada em isolamento. No dia seguinte, paciente mantinha-se febril (até 38,8º). No sexto dia, tolerou diminuição de oxigênio para 0,5L/min. No nono dia de doença, apresentou 5 episódios de diarreia, sem elementos patológicos e nem repercussão hemodinâmica.
No décimo dia de doença, coletou novos exames: hemograma com 6.710 leucócitos (sem desvio à esquerda), plaquetas de 263.000 e proteína C reativa de 2,2mg/L. Repetiu radiografia de tórax, visto que apresentava quedas de saturação frequentes e picos subfebris. Devido à clínica e às imagens de opacidades retrocardíaca e peri-hilar à direita, foram iniciadas amoxicilina com clavulanato e azitromicina. Aumentada frequência respiratória para 28mpm devido à gasometria com retenção de CO2 (pCO2 = 61mmHg). Gasometria de controle com boa resposta (pCO2 = 41,7mmHg). No dia seguinte, reduzida frequência respiratória para 25mpm, com gasometria de controle mostrando pCO2 de 38,5mmHg. No mesmo dia, alterado esquema antimicrobiano para ciprofloxacino e sulfametoxazol + trimetoprim devido à antibiograma de secreção traqueal com crescimento de Klebsiella oxytoca, Pseudomonas aeruginosa e Staphylococcus aureus. No décimo terceiro dia, tolerou suspensão de O2 (saturação de 98% em ar ambiente) e retomada de parâmetros basais de ventilação mecânica (pressão inspiratória = 25cmH2O; pressão expiratória final = 5cmH2O; frequência respiratória = 25mpm). No décimo quarto dia, apresentou alguns episódios de diarreia, com resolução espontânea. No décimo sexto e décimo sétimo dia de doença, realizados swabs de nasofaringe, ambos com resultado de PCR para SARS-CoV-2 não detectável. Paciente recebeu alta para casa (em regime de home care aprovado pelo Estado), além de plano de completar tratamento para pneumonia a nível ambulatorial (totalizando 14 dias de uso do último esquema antimicrobiano).
DISCUSSÃO
Apesar da COVID-19 ser menos grave em crianças (comparativamente aos adultos), é importante que o pediatra saiba suspeitar, reconhecer sintomas e avaliar a gravidade dos pacientes acometidos por ela. Até a presente data, apenas um estudo avaliou a gravidade da doença em função da idade, indicando que lactentes têm maior risco de apresentar doença severa9.
Três revisões sistemáticas descreveram quais são as principais manifestações clínicas, a distribuição da gravidade e os achados dos exames complementares. Os estudos são unânimes em apontar febre e tosse como as características clínicas mais prevalentes, ocorrendo em cerca de metade dos casos. Coriza e sintomas gastrointestinais surgem em até 20% e 12% dos casos, respectivamente. Quanto à gravidade, a maior parte tem doença leve ou moderada (96%), enquanto que 3% apresentam doença grave (caracterizada por hipóxia, dispneia ou cianose). Apenas 1% dos pacientes evoluem para a forma crítica (caracterizada por síndrome respiratória aguda grave, insuficiência respiratória, choque, encefalopatia, etc.). No hemograma, similar proporção ocorre entre leucocitose, leucopenia e linfopenia (cerca de 15%). A minoria apresenta elevação da proteína C reativa (até 25% dos casos). Radiologicamente, as alterações mais encontradas são opacidade em vidro fosco e consolidações. A paciente do caso não foi submetida à tomografia computadorizada para verificar a existência de opacidades em vidro fosco, sendo a consolidação observada na radiografia de tórax. Consideramos que este exame não era fundamental para o manejo do caso clínico, ainda mais que a exposição excessiva à radiação deve ser evitada sempre que possível5-7,10. Diagnóstico clínico de pneumonia foi feito em até 65% dos pacientes, segundo estudo recente sobre a COVID-19 em crianças, o que não surpreende, já que a coinfecção vírus-bactéria não é infrequente em casos infecciosos do trato respiratório inferior11,12.
Para finalizar, é importante salientar que a morte em crianças é rara, mas pode ocorrer em pacientes que já são previamente muito doentes5-7. Ainda, no caso em discussão, a paciente tinha diagnóstico confirmado de síndrome de hipoventilação congênita central, uma condição incurável, relacionada à mutação no gene PHOX2B, caracterizada por hipoventilação alveolar, hipoxemia e hipercarbia, sobretudo durante o sono. O manejo adequado é com otimização da ventilação e oxigenação com uso de ventilação mecânica a fim de minimizar danos no potencial neurocognitivo e evitar hipoxemia e, portanto, prevenir hipertensão pulmonar e cor pulmonale13.
CONCLUSÃO
No caso relatado, apesar da lactente ter tido a forma grave da COVID-19, provavelmente ela não evoluiu para um espectro mais crítico da doença devido ao fato de estar internada no momento da apresentação clínica, permitindo diagnóstico precoce, monitorização ostensiva e tratamento oportuno das principais complicações apresentadas.
REFERÊNCIAS
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1 Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Serviço de Pediatria - Porto Alegre - RS - Brasil
2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento de Pediatria - Porto Alegre - RS - Brasil
Endereço para correspondência:
Jéssica Neuenfeld Paniz
Instituição: HCPA - Hospital de Clínicas de Porto Alegre
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E-mail: nitamelo.le@gmail.com
Data de Submissão: 30/06/2020
Data de Aprovação: 07/07/2020