ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3

Relato de caso: síndrome inflamatória multissistêmica associada à infecção pelo SARS-CoV-2 em pediatria

Case report: multisystem inflammatory syndrome associated with SARS-CoV-2 infection in pediatrics

RESUMO

INTRODUÇÃO: A síndrome inflamatória multissistêmica em pediatria é uma entidade de apresentação aguda e grave, cuja associação com infecção pelo vírus SARS-CoV-2 da COVID-19 que vem sendo interrogada. Para definição de caso dessa síndrome, foram determinados critérios publicados pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) e World Health Organization (WHO). Uma das formas de apresentação dessa entidade é a doença de Kawasaki, seja na forma típica, atípica e/ou associada à choque tóxico.
OBJETIVOS: Relatar caso de paciente soropositivo para SARS-CoV-2, que evoluiu com síndrome inflamatória multissistêmica, doença de Kawasaki-like.
RELATO DE CASO: Pré-escolar, 4 anos, sexo masculino, chega à consulta pediátrica com histórico de febre há 12 horas sem outros sintomas associados, tendo sido infectado, previamente, pelo SARS-CoV-2. Ao exame físico, encontrava-se febril 38,3ºC, ativo, eupneico, com discreta hiperemia de orofaringe. Nas 24 horas subsequentes, houve persistência da febre e iniciado queixa de dor abdominal, tendo sido conduzido a um pronto atendimento pediátrico para investigação diagnóstica. Houve agravamento do quadro de dor e redução importante de atividade, com prostração, diminuição da aceitação alimentar e diurese. Após quatro dias do início da febre, evolui com sinais de descompensação cardíaca (choque), rebaixamento de fígado, taquicardia com presença de 3ª bulha, FC 186bpm, sendo conduzido à UTI pediátrica onde foi iniciada investigação laboratorial para síndrome inflamatória multissistêmica pós-COVID-19.
CONCLUSÃO: Aprimorar os conhecimentos acerca das manifestações de infecção por COVID-19 em crianças e suas complicações é necessário, visto que se acredita que haja relação entre a síndrome inflamatória multissistêmica em crianças que foram infectadas pelo SARS-CoV-2.

Palavras-chave: Síndrome de Linfonodos Mucocutâneos, Infecções por Coronavírus, Pediatria.

ABSTRACT

INTRODUCTION: The multisystemic inflammatory syndrome in pediatrics is a new entity with acute and severe presentation, which association with SARS-CoV-2 infection virus from COVID-19 has been questioned. The criteria to define a case of such syndrome were determined and published by Centers for Disease Control and Prevention (CDC) and World Health Organization (WHO). One form of presentation of this entity is Kawasaki disease, either in the classic or incomplete forms, and/or associated with toxic shock.
OBJECTIVES: Report a case of a SARS-CoV-2 seropositive patient, who developed Multisystemic Inflammatory Syndrome, Kawasaki-like disease.
CASE REPORT: Preschooler, 4-years-old, male, arrives at the pediatric consultation with a history of 12-hours fever without other associated symptoms, but previously infected by SARS-CoV-2. On physical examination, he was feverish 38.3ºC, active, eupneic, with mild oropharyngeal hyperemia. In the subsequent 24 hours, fever persisted, and complaints of abdominal pain started, thus he was taken to a pediatric emergency room for diagnostic investigation. A worsening of the pain and significant reduction in activity were observed, with prostration, decreased food acceptance and diuresis. Four days after the onset of the fever, he developed signs of cardiac decompensation (shock), liver lowering, tachycardia with the presence of third sound, HR 186bpm, being taken to the pediatric ICU and a laboratory investigation was started to confirm a post-COVID-19 multisystemic inflammatory syndrome pediatric.
CONCLUSION: Improving knowledge about the COVID-19 infection manifestations in children and its complications is necessary, since it is believed that there is a relationship between multisystemic inflammatory syndrome and SARS-CoV-2 infection in children.

Keywords: Mucocutaneous Lymph Node Syndrome, Coronavirus Infections, Pediatrics.


INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, na China, surgiu uma nova doença1. Em janeiro subsequente, ocorreu o primeiro caso fora da China, e em março é declarada pela OMS uma pandemia2.

A doença tem como agente etiológico SARS-CoV-2. A transmissão é determinada por gotículas aerossóis de pacientes sintomáticos, em período de incubação, e em indivíduos assintomáticos3-5.

Na pediatria, apesar de não haver grande incidência, uma nova apresentação aguda e grave, com possibilidade de associação causal ao SARS-CoV-2, que acomete crianças e adolescentes, foi inicialmente publicada no Reino Unido6, denominada síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIMP), bem como na Itália7 e Estados Unidos8.


RELATO DE CASO

Pré-escolar, 4 anos, masculino, refere febre há 12 horas sem outros sintomas. De antecedentes relevantes, apresentava sorologia IgM e IgG positivas para SARS-CoV-2, com duas amostras IgM em queda.

Ao exame físico, encontrava-se febril 38,3ºC, ativo, eupneico, com discreta hiperemia de orofaringe. Demais órgãos e sistemas sem alterações. Foi prescrito ambulatorialmente antitérmicos, aumento na oferta hídrica e retorno para reavaliação.

Nas 24 horas subsequentes, houve persistência da febre e iniciou queixa de dor abdominal. Exame físico não demonstrou modificações do quadro inicial, sendo solicitado hemograma e PCR (Tabela 1) e teste rápido para dengue (negativo). Porém, como evoluiu com piora da dor abdominal, foi acrescentado rotina de abdômen agudo (radiografia de tórax/abdômen dentro dos padrões da normalidade), além de USG de abdômen total, que identificou adenite mesentérica.




Após analgesia endovenosa, paciente foi conduzido ao domicílio. Passadas 24 horas desse atendimento, houve agravamento da queixa álgica, prostração, diminuição do apetite e da diurese.

Paciente é conduzido à internação, sendo prescrito hidratação venosa, analgesia e monitorização clínica. Após 4 horas da admissão, evolui com sinais de descompensação cardíaca (choque) - edema de face, extremidades e parede abdominal, rebaixamento de fígado, taquicardia, FC 186bpm, com presença de 3ª bulha. Sendo conduzido à UTI pediátrico, onde iniciou dobutamina, furosemida, captopril e investigação laboratorial para SIMP pós-COVID-19.

Eco-Doppler evidenciou aneurisma médio de tronco de coronária esquerda (Z-score > 5,23 DP), dilatação difusa não aneurismática de descendente anterior esquerda e circunflexa, sinais de derrame pericárdico e disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, além de leve derrame pleural, sugerindo fortemente doença de Kawasaki (Kawasaki-like).

Durante evolução da doença, apresentou eritema labial e rash difuso. Não apresentou sinais de comprometimento respiratório importantes, tendo feito uso de oxigênio suplementar, sob cateter nasal, por poucas horas.

Instituído tratamento com imunoglobulina endovenosa (2,0g/kg) e terapia anticoagulante com enoxaparina. A resposta clínica foi dramática, com desaparecimento da febre, melhora na performance cardíaca, redução de 50% do tamanho do aneurisma de tronco de coronária, reabsorção do derrame pericárdico e melhora na função ventricular.

Feito então transição da terapia anticoagulante com heparina para AAS, dose de 5mg/kg/dia, e mantido furosemida e captopril. Recebeu alta hospitalar no 9º dia pós-internação, com programação para novo ecocardiograma, que evidenciou dilatação discreta e difusa de tronco de coronária esquerda, sem repercussão hemodinâmica. Suspenso inibidor de ECA, atualmente, em uso de AAS, cursando assintomático.


DISCUSSÃO

A doença de Kawasaki é uma vasculite autolimitada, sem etiologia definida, tendo como principal complicação os aneurismas das artérias coronárias. Acomete crianças e lactentes jovens, preferencialmente menores de 5 anos e do sexo masculino9,10.

AHA define como sendo critérios febre persistente durando mais de 5 dias associada a mais de quatro sinais clínicos, incluindo alguns observados no presente caso (eritema e fissura de lábios, e rash cutâneo)11. A doença de Kawasaki pode, ainda, se apresentar sob forma atípica: febre e dois ou três sintomas (apresentação clássica), onde alterações laboratoriais são também consideradas sinais indiretos - PCR elevado, VHS elevado, plaquetose, leucocitose, anemia, hipoalbuminemia - e, alteração do ecocardiograma, exame obrigatório pela alta incidência da vasculite das coronárias11.

O caso relatado contempla uma apresentação clínica que remete fortemente a esse novo quadro de SIMP pós-COVID-19, uma vez que preenche os critérios diagnósticos da síndrome segundo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) e World Health Organization (WHO) (Tabela 2).




Tratamento não é curativo, deve ser instituído o mais precoce possível, antes do 10º dia de início da febre: imunoglobulina EV - 2,0g/kg dose única, AAS inicialmente na dose anti-inflamatória de 80 a 100mg/kg/dia e após 48 a 72 horas de curso afebril, dose de 3 a 5mg/kg/dia, como tromboprofilaxia7. Chama atenção a evolução assintomática em relação à infecção pelo SARS-CoV-2, incluindo a não deterioração da função respiratória em paralelo à gravidade dos sintomas sistêmicos, corroborando a maioria dos casos relatados.

Convém ressaltar a rapidez na evolução das provas inflamatórias (PCR - elevação em mais de cem vezes em 48 horas) e a excelente resposta à imunoglobulina endovenosa, visto que houve remissão da febre 24 horas após a medicação, como também melhora da performance cardíaca e redução importante da lesão vascular (aneurismas).


CONCLUSÃO

Apesar de poucas evidências científicas disponíveis, acreditamos que existe uma síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica provavelmente associada à infecção do SARS-CoV-2, com algumas similaridades com a doença de Kawasaki. Dessa forma, é importante estarmos alertas à essa entidade, tendo suspeição clínica mais dirigida, principalmente na apresentação clínica da doença de Kawasaki, para que o tratamento seja instituído de forma precoce e obtenhamos êxito no manejo dessa doença.


REFERÊNCIAS

1. Ren LL, Wang YM, Wu ZQ, Xiang ZC, Guo L, Xu T, et al. Identification of a novel coronavirus causing severe pneumonia in human: a descriptive study. Chin Med J (Engl). 2020 Mai;133(9):1015-24.

2. World Health Organization (WHO). WHO Director-General’s opening remarks at the mission briefing on COVID-19 [Internet]. Geneva: WHO; 2020 Abr; [acesso em 2020 May 20]. Disponível em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-mission-briefing-on-covid-19-16-april-2020

3. Hoehl S, Rabenau H, Berger A, Kortenbusch M, Cinatl J, Bojkova D, et al. Evidence of SARS-CoV-2 infection in returning travelers from Wuhan, China. N Engl J Med. 2020 Mar;382(13):1278-80.

4. Rothe C, Schunk M, Sothmann P, Bretzel G, Froeschl G, Wallrauch C, et al. Transmission of 2019-nCoV infection from an asymptomatic contact in Germany. N Engl J Med. 2020 Mar;382(10):970-1.

5. Zou L, Ruan F, Huang M, Liang L, Huang H, Hong Z, et al. SARS-CoV-2 viral load in upper respiratory specimens of infected patients. N Engl J Med. 2020 Mar;382(12):1177-9.

6. Mahase E. Covid-19: concerns grow over inflammatory syndrome emerging in children. BMJ. 2020;369:m1710.

7. Verdoni L, Mazza A, Gervasoni A, Martelli L, Ruggeri M, Ciuffreda M, et al. An outbreak of severe Kawasaki-like disease at the Italian epicentre of the SARS-CoV-2 epidemic: an observational cohort study. Lancet. 2020 Jun;395(10239):1771-8.

8. Daskalakis DC. 2020 Health Alert #13: pediatric multi-system inflammatory syndrome potentially associated with COVID-19 [Internet]. New York: New York City Health Department; 2020; [acesso em 2020 Jun 02]. Disponível em: https://www1.nyc.gov/assets/doh/downloads/pdf/han/alert/2020/covid-19-pediatric-mult i-system-inflammatory-syndrome.pdf

9. Rossi F, Silva M, Kozu K, Camargo LF, Rossi F, Silva C, et al. Extensive cervical lymphadenitis mimicking bacterial adenitis as the first presentation of Kawasaki disease. Einstein. 2015;3(3):426-9.

10. Silva CA, Hilário MO, Fonseca AR, Saad-Magalhães C, Sztajnbok FR, Carvalho MF, et al. Doença de Kawasaki [Internet]. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP); 2020; [acesso em 2020 Jun 02]. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/_22196c-DocCient_-_Doenca_de_Kawasaki.pdf

11. Newburger JW, Takahashi M, Gerber MH, Gewitz M, Tani LY, Burns JC, et al. Diagnosis, treatment, and long-term management of Kawasaki disease: a statement for health professionals from the Committee on Rheumatic Fever, Endocarditis and Kawasaki disease, Council on Cardiovascular Disease in the Young, American Heart Association. Circulation. 2004 Out;110(17):2747-71.










1. Centro Universitário CESMAC, Medicina - Maceió - Alagoas - Brasil
2. Hospital Geral do Estado Professor Osvaldo Brandão Vilela (HGE), Pediatria - Maceió - Alagoas - Brasil
3. Hospital Universitário Professor Alberto Antunes, Cardiologia - Maceió - Alagoas - Brasil
4. Santa Casa de Misericórdia de Maceió, Fisioterapia - Maceió - Alagoas - Brasil
5. Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL), Pediatria - Maceió - Alagoas - Brasil

Endereço para correspondência:

Ilma Ferreira Oliveira
Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL)
Rua Dr. Jorge de Lima, 113 - Trapiche da Barra
Maceió - AL, Brasil. CEP: 57010-300
E-mail: ilmaferreira_oliveira@yahoo.com.br

Data de Submissão: 30/06/2020
Data de Aprovação: 08/07/2020