ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 1

Manifestações cutâneas em paciente com Síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica temporariamente associada ao SARS-CoV2: relato de caso

Cutaneous manifestations in a patient with temporarily associated pediatric multisystemic inflammatory syndrome with COVID-19: case report

RESUMO

OBJETIVOS: Descrever as manifestações cutâneas apresentadas por paciente com síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) temporariamente associada ao SARS-CoV-2.
MÉTODOS: Paciente do sexo feminino, 10 anos de idade, apresentando artralgia em punhos e tornozelos, edema em mãos e pés, febre persistente, surgimento de rash maculopapular difuso e pruriginoso associado à odinofagia e tosse produtiva. Evolução do rash para lesões violáceas em face, tronco e membros (superiores e inferiores), além de surgimento de vesículas em face, no intervalo de 48 horas. Hemograma sugestivo de quadro infeccioso, com PCR 307mg/L (inserir valor de referência) e VHS 61mm. RT-PCR para SARS-CoV-2 positivo.
RESULTADOS: Diagnóstico de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica temporariamente associada ao SARS-CoV-2. Transferida para UTI para monitorização e iniciada imunoglobulina humana endovenosa. Boa evolução, com desaparecimento das lesões e alta com acompanhamento ambulatorial.
CONCLUSÕES: A SIM-P apresenta diversas manifestações dermatológicas e o pediatra deve estar atento para o diagnóstico, não se limitando a uma apresentação específica. Neste relato de caso, ressalta-se a importância do encaminhamento a centros terciários de referência para o melhor manejo dos casos e o reconhecimento oportuno da síndrome nesses pacientes.

Palavras-chave: Inflamação, Doença de Kawasaki, Infecções por Coronavírus, SIM-P, SARS-CoV-2.

ABSTRACT

OBJECTIVES: To describe the cutaneous manifestations presented by a patient with pediatric multisystemic inflammatory syndrome (MIS-C) temporarily associated with SARS-CoV-2.
METHODS: Female patient, 10 years old, presenting arthralgia in the wrists and ankles, edema in hands and feet, persistent fever, appearance of diffuse, and itchy maculopapular rash associated with odynophagia and productive cough. Evolution of the rash to violaceous lesions on the face, trunk and limbs (upper and lower), in addition to the appearance of vesicles on the face, within 48 hours. CBC suggestive of an infectious condition, with CRP 307mg/L (insert reference value) and ESR 61mm. RT-PCR for SARS-CoV-2 positive.
RESULTS: Diagnosis of pediatric multisystemic inflammatory syndrome temporarily associated with SARS-CoV2. Transferred to ICU for monitoring and intravenous human immunoglobulin initiated. Good evolution, with the disappearance of injuries and discharge with outpatient follow-up.
CONCLUSION: MIS-C has several dermatological manifestations and pediatricians must be attentive to the diagnosis, not limited to a specific presentation. In this case report, the importance of referral to tertiary referral centers for better case management and timely recognition of the syndrome in these patients is emphasized.

Keywords: Inflammation, Kawasaki Disease, Coronavirus Infections, MIS-C, SARS-CoV-2.


INTRODUÇÃO

A fisiopatologia das doenças inflamatórias multissistêmicas, possivelmente associadas ao SARS-CoV-2 é, ainda, pouco conhecida. Há registros de casos de pacientes previamente hígidos que após adquirirem a infecção, manifestaram quadros de exantema papulovesiculares, urticariforme, morbiliforme, eritema pérnio, entre outros exantemas virais não especificados, alguns semelhantes à síndrome de Kawasaki1,2.

Nas publicações, observa-se que os sintomas respiratórios na infecção pelo SARS-CoV-2, em sua maioria, são leves e escassos, sendo precedidos ou seguidos do exantema e outras lesões tegumentares, como livedo reticular e lesões isquêmicas3. A maioria dos casos são autolimitados, sem grandes relatos de complicações, porém em pacientes com a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica temporariamente associada ao SARS-CoV-2 (SIM-P), já foram identificados pacientes com maior potencial de gravidade4,5.

Devido à escassez de dados na literatura sobre manifestações cutâneas presentes na infecção por SARS-CoV-2, os autores objetivam contribuir com evidências sobre essas manifestações na SIM-P.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 10 anos de idade, procurou serviço de pediatria com queixa de artralgia em punhos e tornozelos, edema de mãos e pés e febre persistente com duração de 2 dias (antes da admissão hospitalar). Evoluiu com surgimento de máculas e pápulas hiperemiadas, difusas pelo corpo, com prurido intenso associado à odinofagia e tosse produtiva (Figuras 1 e 2). Ao exame físico, apresentava edema bipalpebral, máculas e placas urticariformes difusas pelo corpo, mas com melhora da artralgia e prurido, após administração de dexclorfeniramina e dipirona. A pressão arterial era 110x90mmHg. Foi de alta com analgesia e anti-histamínico regular. Retornou 24 horas após, com evolução das máculas e pápulas urticariformes para arroxeadas (em face, tronco e membros superiores e inferiores), vesículas em face (Figuras 3 e 4), febre de 39,3°C, artralgia em punhos e tornozelos, além de dois episódios eméticos. Realizado tratamento para anafilaxia e coleta de RT-PCR para SARS-CoV-2. Laboratório com as seguintes alterações: hemograma (15.500 leucócitos: 94.5% neutrófilos, 21% bastões,1,7% monócitos, 3.4% linfócitos; PCR: 307,71mg/L (valor de referência: 0 à 5mg/l), VHS 61mm (valor de referência: 0 à 10mm/hora), TAP: 65.7% (valor de referência: 70 à 100%), TTPA: 41.6 segundos (valor de referência: 24.5 à 37.5 segundos).


Figura 1. Exantema maculopapular, pruriginoso e edema de pés e tornozelo (admissão).


Figura 2. Exantema maculopapular pruriginoso em membros (admissão).


Figura 3. Exantema maculopapular e vesicular violáceo em face (4° dia evolução).


Figura 4. Exantema maculopapular violáceo (4° dia evolução).



Foi prescrito ceftriaxona 4g/dia durante 48 horas até resultado da hemocultura que foi negativa. A paciente evoluiu com anafilaxia (piora das lesões urticariformes e presença de dispneia), feita adrenalina 0.01mg/kg via intramuscular, com boa resposta. O resultado do teste rápido para SARS-CoV-2 (IgM e IgG) foi não reagente, mas a paciente estava no 5º dia de doença. O resultado do RT-PCR para SARS-CoV-2, coletado no 3º dia de doença foi positivo. Radiografia de tórax sem alterações.

Foi diagnosticada com SIM-P (Tabela 1) por apresentar os critérios de acordo com documento publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS)6.




A paciente foi transferida à UTI para monitorização e tratamento com imunoglobulina humana endovenosa (2g/kg/dose única), infundida em 24horas. A equipe médica responsável optou pela não prescrição de ácido acetilsalicílico (AAS), visto que a paciente não apresentava todos os critérios para doença de Kawasaki completa. O resultado do ecocardiograma com doppler foi normal. Após o término da infusão de imunoglobulina, a paciente foi transferida para a enfermaria pediátrica, sem intercorrências. Melhora completa das lesões cutâneas. Obteve alta hospitalar após 9 dias de internação. Segue em acompanhamento ambulatorial na reumatologia pediátrica.

Na Tabela 2, são apresentados os exames laboratoriais realizados pela paciente, as datas e seus respectivos valores de referência.




DISCUSSÃO

Em documento recente publicado pela Organização Mundial de Saúde6, sugere-se uma definição de caso preliminar para a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica temporariamente associada ao SARS-CoV-2:


• Crianças e adolescentes de 0 a 19 anos com febre = 3 dias.

• E dois dos seguintes: 1. Exantema ou conjuntivite não purulenta bilateral ou sinais de inflamação mucocutânea (orais, mãos ou pés); 2. Hipotensão ou choque; 3. Características de disfunção miocárdica, pericardite, valvulite ou anormalidades coronárias (incluindo achados do ecocardiograma ou elevações de troponina/próBNP); 4. Evidência de coagulopatia (TP, TTPA, D-dímero elevado); 5. Problemas gastrointestinais agudos (diarreia, vômito ou dor abdominal);

• E marcadores elevados de inflamação, como VHS, PCR ou procalcitonina. E nenhuma outra causa de infecção microbiana;

• E evidência de COVID-196.


Na primeira série de casos publicada com a síndrome inflamatória multissistêmica foram relatados oito pacientes com idades que variaram de 4 a 17 anos. Apresentavam febre alta e persistente (38-40°C), exantemas de apresentações variadas, conjuntivite não purulenta, edema de mãos e pés, dor abdominal vômitos e diarreia. Todos apresentavam doença grave e multissistêmica e evoluíram para choque. Foram tratados com gamaglobulina endovenosa (2g/kg/dose única, nas primeiras 24 horas), antibioticoterapia (clindamicina e ceftriaxona) e ácido acetilsalicílico em dose anti-inflamatória (80-100mg/kg/dia). Os pacientes apresentaram anticorpos detectáveis, reforçando o conceito de que se tratava de uma síndrome pós-infecciosa2.

Nos Estados Unidos da América, foram descritos mais de 100 crianças e adolescentes (entre 1 e 21 anos de idade, sendo mais de 50% deles entre 5 e 14 anos), com características clinicas e laboratoriais compatíveis com síndrome de Kawasaki completo, síndrome de Kawasaki incompleto e/ou choque. Todos eles apresentaram febre, mais da metade apresentou exantema de apresentações variadas, dor abdominal e diarreia. Em 90% dos casos detectou-se a presença do RNA do SARS-CoV-2 ou anticorpos contra o vírus. Os casos ocorreram dias ou semanas após a doença, sugerindo que esta síndrome inflamatória pode ser uma complicação tardia caracterizada por resposta imunológica desproporcional à infecção3,4.

Na França, 21 crianças e adolescentes, de 3 a 16 anos, apresentaram quadro característico de doença de Kawasaki por um período de 15 dias, com 12 (57%) de ascendência africana, 12 (57%) apresentaram choque e 16 (76%) miocardite. Todos os pacientes apresentaram sintomas gastrintestinais durante os primeiros dias da doença e exantema com apresentações variadas. Do total, 19 (90%) apresentaram evidências de infecção recente por SARS-CoV-2. Todos receberam imunoglobulina intravenosa 2g/kg/dose única e 10 (48%) receberam corticosteroides. Todos receberam alta7.

Em uma série de casos com 58 crianças de 8 hospitais ingleses, no período de março a maio de 2020, com características para síndrome inflamatória multissistêmica (PIMS-TS) associadas ao SARS-CoV-2, mostrou um amplo espectro na apresentação de sinais e sintomas e gravidade da doença, onde 30 (52%) crianças apresentaram exantema polimorfo8.

Foram relatados dois casos de crianças de 2 meses e 6 anos com resultado positivo para SARS-CoV-2, apresentando manifestação cutânea isolada ou associada a sintomas leves, na Espanha. A criança de 2 meses, do sexo feminino, apresentou febrícula somada à urticária aguda pruriginosa na face e extremidades superiores com disseminação para tronco e extremidades inferiores, com duração de 4 dias. A criança de 6 anos, do sexo masculino, apresentou febre baixa e em torno de 2 semanas surgiu erupção maculopapular eritematosa, confluente e não pruriginosa no tronco e pescoço, com disseminação para bochechas, extremidades superiores e inferiores, com duração de 5 dias9.

Em estudo inglês, foi descrita uma série de exantemas vesiculares em 22 pacientes com SARS-CoV-2 comprovado por swab nasofaríngeo. O tempo médio de latência desde os sintomas sistêmicos até o exantema foi de 3 dias, com duração média das manifestações cutâneas de 8 dias. Desses 22 pacientes, apenas um era criança, 8 anos, sexo feminino, cuja lesão foi papulovesicular em tronco, dispersa, sem prurido, com duração de 7 dias. O tempo de latência foi de 3 dias, associado à febre e tosse10.

Os pediatras devem estar atentos quanto às manifestações cutâneas apresentadas relacionadas à síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica temporariamente associada ao SARS-CoV-2 para o reconhecimento oportuno no diagnóstico e seguimento adequado em centro de referência terciário.


REFERÊNCIAS

1. Mahase E. Covid-19: concerns grow over inflammatory syndrome emerging in children. BMJ. 2020 Apr;369(1):m1710.

2. Riphagen S, Gomez X, Gonzalez-Martinez C, Wilkinson N, Theocharis P. Hyperinflammatory shock in children during COVID-19 pandemic. Lancet. 2020 May;395(1023):1607-8.

3. New York City Health (NYC). 2020 health alert: pediatric multi-system inflammatory syndrome potentially associated with COVID-19 [Internet]. New York: NYC Health Department; 2020; [acesso em 2020 Mai 29]. Disponível em: https://www1.nyc.gov/assets/doh/downloads/pdf/han/alert/2020/covid-19

4. New York City Health (NYC). 2020 childhood inflammatory disease related to COVID-19 [Internet]. New York: NYC Health Department; 2021; [acesso em 2020 Mai 29]. Disponível em: https://coronavirus.health.ny.gov/childhood-inflammatory-disease-related-covid-19

5. Verdoni L, Mazza A, Gervasoni A, Martelli L, Ruggeri M, Ciuffreda M, et al. An outbreak of severe Kawasaki-like disease at the Italian epicentre of the SARS-CoV-2 epidemic: an observational cohort study. Lancet. 2020 Jun;395(1023):1771-8.

6. World Heath Organization (WHO). Multisystem inflammatory syndrome in children and adolescents temporally related to COVID-19 [Internet]. Geneva: WHO; 2020; [acesso em 2020 Mai 29]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/multisystem-inflammatory-syndrome-in-children-and-adolescents-with-covid-19

7. Toubiana J, Poirault C, Corsia A, Bajolle F, Fourgeaud J, Angoulvant F, et al. Kawasaki-like multisystem inflammatory syndrome in children during the covid-19 pandemic in Paris, France: prospective observational study. BMJ. 2020 Jun;369(1):m2094.

8. Whittaker E, Bamford A, Kenny J, Kaforou M, Jones CE, Shad P, et al. Clinical characteristics of 58 children with a pediatric inflammatory multisystem syndrome temporally associated with SARS-CoV-2. JAMA. 2020 Jul;323(3):259-69.

9. Morey-Olivé M, Espiau M, Mercadal-Hally, Lera-Carballo E, García-Patos V. Cutaneous manifestations in the current pandemic of coronavirus infection disease (COVID 2019). An Pediatric. 2020 Jun;92(6):374-6.

10. Marzano AV, Genovese G, Fabbrocini G, Pigatto P, Monfrecola G, Piraccini BM, et al. Varicella-like exanthem as a specific COVID-19-associated skin manifestation: multicenter case series of 22 patients. J Am Acad Dermatol. 2020 Jul;83(1):280-5.










Hospital regional de Ceilândia/SES/DF, Unidade de Pediatria - Ceilândia - Distrito Federal - Brasil

Endereço para correspondência:

Alessandra Ribeiro Ventura Oliveira
Hospital Regional de Ceilândia - HRC
QNM 27 Área Especial 1, QNM 28, Taguatinga
Brasília, DF, Brasil. CEP: 72215-270
E-mail: a.oliveira53@gmail.com

Data de Submissão: 24/06/2020
Data de Aprovação: 03/02/2021