Ética - Ano 2020 - Volume 10 - Número 3
A ética na pesquisa médica
Ethics in medical research
Há referências a Herófilo da Macedônia (325-280 a.C.), médico grego que junto com Erasístrato, fundou a Escola de Medicina de Alexandria. Ele identificou o cerebelo, diferenciou nervos de tendões e, também, os nervos motores dos sensitivos. Já Erasístrato (304-250 a.C.) descobriu os movimentos pulmonares, a válvula tricúspide e a próstata. Ambos se valeram da vivissecção em criminosos condenados à morte para realizar os seus estudos.
Relatos históricos mostram que, em 1559, na França, o rei Henrique II, durante uma batalha foi ferido no olho por uma lança. Vesalio e Paré, médicos, foram chamados, pela rainha, para atendê-lo. À época não havia aparelho de raios X e para visualizar a localização exata da lança os médicos dissecaram o crânio de condenados à morte, para tentar conhecer a trajetória da lança.
Na Inglaterra, no ano de 1721, o médico Charles Maitlandi, para estudar a evolução da varíola, inoculou o vírus em seis prisioneiros, com a promessa de liberdade.
Já no século XX, em 1931, o Ministério de Saúde da Alemanha, lançou um documento sobre novas terapias e experimentações em seres humanos, tendo como princípios básico a vontade do participante; o ensaio terapêutico e o ensaio não terapêutico; a responsabilidade do médico como pesquisador e a responsabilidade deste como terapeuta.
Isso não impediu que, durante a 2ª Guerra Mundial, prisioneiros se tornassem cobaias humanas, contra a sua vontade, e que fossem submetidos as maiores atrocidades, sob a justificativa de que tal conduta, supostamente, ajudaria à ciência e ao Terceiro Reich.
Essas ações abjetas e desumanas levariam, em 1940, a criação do Código de Ética de Nuremberg, com 10 princípios éticos:
1. Obter o consentimento voluntário do participante;
2. Produzir resultados vantajosos;
3. Ser baseada em resultados de experimentação em animais e estudos anteriores;
4. Evitar sofrimento e danos;
5. Ser conduzida por pessoas cientificamente qualificadas;
6. Ter sua continuação suspensa, se constatado que poderá causar dano, invalidez ou morte;
7. Não deve ser feita se existir risco de ocorrer morte ou invalidez permanente;
8. Ter o grau de risco aceitável e limitado pela importância do problema que se propõe a resolver;
9. Proteger o paciente de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte;
10. Dar liberdade ao paciente de se retirar em qualquer momento da pesquisa;
Em 1964, a Declaração de Helsinque lista tópicos a serem respeitados em toda pesquisa médica:
1. Ser baseada em experiências laboratoriais, in vitro, em animais e em conhecimento da literatura científica;
2. Ter o protocolo de pesquisa aprovado por um comitê independente;
3. Ser conduzida apenas por pessoas cientificamente reconhecidas;
4. Ser o risco para o participante, proporcional à importância do objetivo;
5. Ter a avaliação dos riscos comparada com os benefícios previstos, respeitada e assegurada a integridade do participante.
No Brasil, apenas na década de 90, o cuidado com a ética na pesquisa envolvendo seres humanos se torna obrigatório e isto fica mais nítido com a Resolução no 196/1996, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que regraria o funcionamento dos Comitês de Ética em Pesquisas (CEP) e da Comissão Nacional de Ética e Pesquisa (CONEP). Listemos os principais pontos do documento:
1. Consentimento do sujeito;
2. Manutenção da privacidade das informações do sujeito;
3. Aprovação pelos pares e pela comunidade.
Essa resolução seria revogada pela nº 466/2012, do mesmo CNS, com princípios éticos e fundamentos científicos bem mais presentes e explicitados.
Como conhecemos hoje, a preocupação com os princípios éticos e morais na ciência ficou mais evidente a partir do surgimento da bioética, no final da década de 60, que é, segundo Berlinguer, uma disciplina filosófica que conecta a ciência, a vida e a moralidade.
E não podemos deixar de pensar e discutir bioética quando nos defrontamos com inúmeros dos avanços científicos que conhecemos: o primeiro transplante cardíaco; o primeiro bebe de proveta; a epidemia de HIV/AIDS; a pesquisa com células tronco; a clonagem da ovelha Dolly; a morte encefálica; a eutanásia e o caso Karen Ann Quinlan.
Karen Ann Quinlan (1954-1985) entrou em coma, em 1975, evoluindo para um coma vegetativo. Os pais solicitaram aos médicos que desligassem o ventilador mecânico, o que foi barrado pela justiça. Após uma briga judicial, os pais, com apoio dos médicos, conseguiram, em 1976, autorização para desligar o aparelho. Karen Ann sobreviveu até 1985. Os pais afirmaram: “Nós nunca pedimos para ela morrer, nós apenas pedimos para que ela fosse colocada de volta em um estado natural para que ela pudesse morrer no tempo de Deus”. Esse caso, até os dias de hoje, impacta na bioética, por envolver a eutanásia, os direitos civis e a custódia legal do paciente, com repercussões na Medicina e no Direito.
Não podemos deixar de recordar, por ter sido um dos mais emblemáticos, o caso Tuskegee. Se trata do “Estudo da sífilis não tratada no homem negro”, realizado pelo Serviço Público de Saúde dos EUA, em Tuskegee, Alabama, entre os anos de 1932 e 1972. Na ocasião, foram selecionados 600 homens, 399 com sífilis latente e 201 como grupo controle. Não havia tratamento para sífilis na época e os pacientes recebiam placebo. Em 1947, foi descoberta a penicilina, que se mostro tratamento para sífilis e, mesmo assim, o placebo foi mantido. Na década de 60, após denúncia de um funcionário do próprio serviço, foi formado um comitê que, após analisar o projeto, optou pela sua continuação, para rastrear os pesquisados até as suas mortes, a fim de realizar necropsias e analisar os dados do estudo. Em 1972, a imprensa divulgou o fato e a reação popular obrigou o encerramento da pesquisa. Partes da pesquisa já haviam sido apresentados em congressos nos EUA. Quando do encerramento, 28 pacientes haviam morrido da doença; outros 100 pacientes, apresentavam complicações da doença; ao menos 40 cônjuges tinham sido contaminadas; e foram identificados 19 casos de sífilis congênita.
Não há em nossos dias espaço para discutirmos pesquisa médica sem nos reportarmos aos princípios bioéticos de beneficência, não maleficência, autonomia e justiça.
Avaliemos a situação de um determinado fármaco, que está liberado para uso, é eficiente contra determinada(s) doença(s), embora apresente efeito colaterais potencialmente graves e raros. Poderemos usá-lo se os seus resultados (benefício) justificarem o risco (custo). Nesta situação privilegiaríamos a beneficência.
Se mesmo fármaco não for comprovadamente eficiente contra outra patologia qualquer, seu uso não deve ser estimulado, pois um eventual e improvável benefício não justificaria o risco. Nesta situação a não maleficência deverá nossa principal preocupação.
Em ambos os casos devemos, dentro dos limites éticos, respeitar a vontade do paciente, o qual após ser informado e esclarecido sobre os eventuais riscos e benefícios envolvidos, poderá fazer a sua escolha, fazendo valer a sua autonomia.
Ressalta-se que, ao se buscar autorização para pesquisa em seres humanos, o código de ética médica, além de exigir o consentimento do objeto da pesquisa (autonomia), se refere, quando o paciente é menor de idade, a ser exigido o consentimento do representante legal e, também, o assentimento da criança ou do adolescente, reconhecendo assim, que os menores de idade devem ter a sua autonomia, dentro de sua capacidade de discernimento, reconhecida e respeitada.
Analisemos, agora, um estudo em que haja a necessidade de uma distribuição aleatória dos participantes em grupos de experimento e de controle (duplo cego randomizado), em que garantirmos não ser possível, a princípio, estabelecer vantagens de um procedimento sobre o outro. Se, durante o desenvolver da pesquisa, for detectada uma evidente vantagem, deverá a pesquisa ser interrompida e, a partir daí, ser garantido o melhor tratamento a todos os participantes, privilegiando, assim, o princípio da justiça e a beneficência.
Da mesma forma, se durante a pesquisa for detectado prejuízo, a mesma deverá ser encerrada, garantindo-se a saúde dos participantes: justiça e não maleficência.
Também em nome da justiça, devemos garantir a todos os participantes de qualquer pesquisa, os eventuais benefícios dela derivados.
Vejamos o que diz, a respeito da pesquisa, o código de ética médica, que trata do tema em alguns dos seus capítulos e em muitos dos seus artigos.
Em Princípios Fundamentais, Capítulo I, vemos que (artigo V) “Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade”: BENEFICÊNCIA; (artigo VI) “O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício, mesmo depois da morte. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativas contra sua dignidade e integridade”: BENEFICÊNCIA e NÃO MALEFICÊNCIA; (artigo XXIII) Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico agirá com isenção, independência, veracidade e honestidade, com vista ao maior benefício para os pacientes e para a sociedade”: BENEFICÊNCIA; (artigo XXIV) “Sempre que participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou qualquer animal, o médico respeitará as normas éticas nacionais, bem como protegerá a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa”: JUSTIÇA.
Devemos lembrar que o médico não pode ser capitulado em qualquer um dos artigos dos Princípios Fundamentais ou ser punido por desrespeitá-los. Para isso é necessário que estes princípios estejam presentes nos artigos deontológicos, nos quais há a obrigação de fazer.
Temos, no capítulo VII, Ensino e Pesquisa Médica, que é vedado ao médico (artigo 99) “Participar de qualquer tipo de experiência envolvendo seres humanos com fins bélicos, políticos, étnicos, eugênicos ou outros que atentem contra a dignidade humana”: NÃO MALEFICÊNCIA e JUSTIÇA; (artigo 100) “Deixar de obter aprovação de protocolo para a realização de pesquisa em seres humanos, de acordo com a legislação vigente”: JUSTIÇA; (artigo 101) “Deixar de obter do paciente ou de seu representante legal o termo de consentimento livre e esclarecido para a realização de pesquisa envolvendo seres humanos, após as devidas explicações sobre a natureza e as consequências da pesquisa. § 1º No caso de o paciente participante de pesquisa ser criança, adolescente, pessoa com transtorno ou doença mental, em situação de diminuição de sua capacidade de discernir, além do consentimento de seu representante legal, é necessário seu assentimento livre e esclarecido na medida de sua compreensão. § 2º O acesso aos prontuários será permitido aos médicos, em estudos retrospectivos com questões metodológicas justificáveis e autorizados pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) ou pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)”: AUTONOMIA e JUSTIÇA; (artigo 102) “Deixar de utilizar a terapêutica correta quando seu uso estiver liberado no País. Parágrafo único. A utilização de terapêutica experimental é permitida quando aceita pelos órgãos competentes e com o consentimento do paciente ou de seu representante legal, adequadamente esclarecidos da situação e das possíveis consequências”: AUTONOMIA e JUSTIÇA; (artigo 103) “Realizar pesquisa em uma comunidade sem antes informá-la e esclarecê-la sobre a natureza da investigação e deixar de atender ao objetivo de proteção à saúde pública, respeitadas as características locais e a legislação pertinente”: AUTONOMIA, JUSTIÇA e BENEFICÊNCIA; (artigo 104) “Deixar de manter independência profissional e científica em relação a financiadores de pesquisa médica, satisfazendo interesse comercial ou obtendo vantagens pessoais”: JUSTIÇA; (artigo 105) “Realizar pesquisa médica em sujeitos que sejam direta ou indiretamente dependentes ou subordinados ao pesquisador”: JUSTIÇA; (artigo 106) “Manter vínculo de qualquer natureza com pesquisas médicas em seres humanos que usem placebo de maneira isolada em experimentos, quando houver método profilático ou terapêutica eficaz”: BENEFICÊNCIA, NÃO MALEFICÊNCIA e JUSTIÇA; (artigo 107) “Publicar em seu nome trabalho científico do qual não tenha participado; atribuir a si mesmo autoria exclusiva de trabalho realizado por seus subordinados ou outros profissionais, mesmo quando executados sob sua orientação, bem como omitir do artigo científico o nome de quem dele tenha participado”: JUSTIÇA; (artigo 108) “Utilizar dados, informações ou opiniões ainda não publicadas, sem referência ao seu autor ou sem sua autorização por escrito”: JUSTIÇA; (artigo 109) “Deixar de zelar, quando docente ou autor de publicações científicas, pela veracidade, clareza e imparcialidade das informações apresentadas, bem como deixar de declarar relações com a indústria de medicamentos, órteses, próteses, equipamentos, implantes de qualquer natureza e outras que possam configurar conflitos de interesse, ainda que em potencial”: JUSTIÇA.
É fundamental que tenhamos em mente que o médico, ao participar de pesquisas, principalmente envolvendo seres humanos e/ou outros animais, deverá respeitar os princípios éticos e morais, sempre visando benefícios para o ser humano e para a sociedade.
Professor Adjunto da Disciplina de Saúde da Criança e do Adolescente e Responsável pela Disciplina de Bioética e Ética Médica. Universidade Iguaçu. Nova
Iguaçu/RJ, Brasil
Endereço para correspondência:
Carlindo Machado e Silva
Universidade Iguaçu
Abílio Augusto Távora, nº 2134, Nova Iguaçu
Rio de Janeiro - RJ, Brasil. CEP: 26275-580
E-mail: carlindo@cremerj.org.br