ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 1

Distúrbio de deglutição em criança com complexo de doenças pulmonares intersticiais: avaliação e proposta terapêutica

Deglutition disorder in children with interstitial lung disease complex: therapeutic assessment and proposal

RESUMO

Relato de caso de um bebê de 7 meses portador da doença estudada, em que foi realizada avaliação e proposta terapêutica do distúrbio de deglutição, em atendimentos domiciliares. Na avaliação fonoaudiológica foi identificada hipotonia da musculatura do sistema estomatognático, e reflexos de mordida e GAG presentes. Apresentou pouca tolerância ao toque intraoral, com sinais de estresse durante avaliação. Realizada avaliação direta de deglutição, com oferta de 5ml de alimento em consistência pastosa homogênea em que observamos incoordenação respiratória e tempo de trânsito oral lentificado, com estase alimentar em cavidade oral. Paciente apresentou desconforto respiratório, choro e irritabilidade, com a presença de regurgitação de secreção mucoide e a recusa a uma nova tentativa de oferta. Paciente com diagnóstico fonoaudiológico de disfagia orofaríngea, com sinais de dificuldades alimentares. Foram realizadas sessões de intervenção fonoaudiológica, de estimulação sensorial global, orientações para os responsáveis e a equipe de técnicas de enfermagem sobre postura, e atividades terapêuticas e de estimulação. Paciente apresenta um raro complexo de doenças pulmonares e a atuação fonoaudiológica mostra-se inovadora em pacientes com essa patologia.

Palavras-chave: Comportamento Alimentar, Fonoaudiologia, Visita Domiciliar.

ABSTRACT

Case report of a 7 month old baby with the disease studied, in which the evaluation and therapeutic proposal of the swallowing disorder was performed in home care. In the speech-language evaluation hypotonia of the musculature of the stomatognathic system was identified, and bite and GAG reflexes were present. It presented little tolerance to the intra-oral touch, with signs of stress during evaluation. A direct evaluation of swallowing was performed, offering 5ml of food in a homogeneous pasty consistency in which we observed respiratory incoordination and slow oral transit time, with food stasis in the oral cavity. Patient presented respiratory discomfort, crying, and irritability, with the presence of regurgitation of mucoid secretion and the refusal to a new attempt of supply. Patient with speech-language diagnosis of oropharyngeal dysphagia, with signs of eating difficulties. Speech-language intervention, global sensory stimulation, guidelines for those responsible and the nursing techniques team on posture, and therapeutic and stimulation activities were conducted. Patient presents a rare complex of pulmonary diseases and speech-language pathology is innovative in patients with this pathology.

Keywords: Feeding Behavior, Speech, Language and Hearing Sciences, House Calls.


INTRODUÇÃO

As doenças pulmonares intersticiais (DPIs) constituem um grupo heterogêneo de doenças, de difícil diagnóstico, devido às alterações nas paredes e nos espaços alveolares, e também pode ser chamada de doença pulmonar parenquimatosa difusa1. A prevalência das DPIs no grupo pediátrico sugere a prevalência de 3,6 por milhão2, contudo, não é muito conhecida, sendo na maioria das vezes, subdiagnosticada e subnotificada, mas rara em crianças3.

Os problemas alimentares nessas crianças com patologias respiratórias, vem sendo estudados, pois já foi encontrada relação de alterações de deglutição em lactentes com doenças pulmonares, mostrando a interferência do quadro respiratório no processo de deglutição4. Visto a raridade da doença apresentada e a inexistência de descrições de dados clínicos sobre deglutição de pacientes com DPIs, o presente artigo objetiva-se a descrever a avaliação e direcionamento da intervenção de deglutição em um paciente com complexo de DPI’s.


RELATO DE CASO

Estudo de caso, paciente do sexo masculino, realizado no município de São Leopoldo/RS, após assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, assinado pelos responsáveis pelo paciente. O presente trabalho foi desenvolvido seguindo os preceitos da ética em pesquisa científica de acordo com a resolução nº 466/12, sob parecer consubstanciado nº 2.492.475.

As informações do paciente foram obtidas através de anamnese com a responsável pelo paciente, avaliação de estruturas do sistema estomatognático e avaliação clínica da deglutição.

Dados do nascimento: mãe de 37 anos, na segunda gestação, sendo a primeira sem intercorrências. Parto normal, 39 semanas de idade gestacional, bebê com peso corporal de 3.320 gramas e 52 centímetros de comprimento. Apgar 9/9, com presença de disfunção respiratória precoce, sendo necessária internação em unidade de terapia intensiva neonatal devido à disfunção respiratória decorrente de pneumomediastino.

Dados pós-parto: fez uso de oxigênio por câmpanula, controle radiológico até desaparecimento do pneumomediastino, mantendo a infiltração pulmonar intersticial. A tomografia de tórax apontou infiltração intersticial bilateral, com maior intensidade do lado direto com aspecto de vidro fosco (Figura 1). Manteve-se hospitalizado por 217 dias, sendo que apresentou dificuldade respiratória com necessidade de oxigenioterapia. Fez uso de dreno de tórax e ventilação mecânica por 1 semana e, posteriormente, uso de ventilação não invasiva, e cateter de alto fluxo, até receber alta com traqueostomia. Obteve o diagnóstico clínico via biopsia pulmonar de proteinose alveolar, glicogenose pulmonar intersticial, características de hipertensão pulmonar, subdesenvolvimento alveolar e transtorno de proteína surfactante. Permaneceu com sonda nasoentérica até os 5 meses de idade, quando então, foi realizada gastrostomia.


Figura 1. Tomografia de tórax com infiltração intersticial bilateral.



Durante a internação hospitalar, aos 6 meses de idade, o paciente foi submetido à avaliação fonoaudiológica, contudo, a mãe relatou que o paciente não aceitava a intervenção, devido aos constantes episódios de choro e consequente cianose. Realizava fonoterapia de 2 a 3 vezes na semana, de estimulação tátil e sensorial global. Foi também realizado pela fonoaudióloga que acompanhava na internação hospitalar, Blue Dye Test (coloração da saliva com 4 gotas de corante alimentício azul e posterior aspiração da traqueostomia, verificando saída de secreção corada) com resultado negativo, indicando a ausência de aspiração laringotraqueal. Privado da oferta de alimentação via oral desde o nascimento e sem aceitação dos estímulos no período de internação, com tentativas realizadas por um mês.

No momento da avaliação domiciliar, paciente com 7 meses de idade, dieta exclusiva via gastrostomia, em uso de ventilação mecânica em pressão controlada na traqueostomia (parâmetros: PIP: 17.1cm H2O, fluxo máximo: 17.2 litros por minuto), cuff desinsuflado. Realizada avaliação fonoaudiológica com o paciente sentado com apoio cervical, frequência respiratória 31 respirações por minuto, frequência cardíaca de 103 batimentos por minuto e saturação periférica de oxigênio de 95%. Paciente alerta, boa interação com examinador, sem sinais sugestivos de desconforto respiratório. Foram observados os seguintes itens alterados na avaliação estrutural: lábios e bochechas com tônus diminuído, língua em repouso no assoalho bucal com tônus reduzido. Presença de reflexos protetivos de mordida e GAG. Hiperreatividade e hipersensibilidade aos toques extra e intraorais, com presença de náusea no contato com a língua. Na avaliação de deglutição salivar, o paciente apresentava aspecto da mucosa oral adequado e frequência de deglutição dentro da normalidade, sem sinais sugestivos de penetração e/ou aspiração laringotraqueal.

Realizada avaliação direta da deglutição, com oferta de 5ml de alimento em consistência pastosa homogênea (creme de cenoura) corado (inserção de 4 gotas de corante alimentício no alimento e oferta ao paciente, observando saída ou não, da coloração azul via traqueostomia). Observada captação inadequada do conteúdo alimentar, ofertado com colher de silicone, e presença reflexo de mordida. Movimentação da língua de forma adequada, com frequência de 2 deglutições na porção, apresentando incoordenação respiratória e tempo de trânsito oral lentificado, com estase alimentar em cavidade oral. Ainda, observada redução da elevação do complexo hiolaríngeo, restrição devido ao uso de traqueostomia. Paciente apresentou desconforto respiratório, choro e irritabilidade, com a presença de regurgitação de secreção mucoide e a recusa a uma nova tentativa de oferta. Realizada aspiração traqueal após oferta de via oral, sem saída de coloração azul, com resultado negativo do Blue Dye Test modificado.

Após avaliação clínica de deglutição, paciente apresentou diagnóstico fonoaudiológico de disfagia orofaríngea moderada a grave. Porém, para além da disfagia orofaríngea, foram observados sinais de dificuldades alimentares, possivelmente relacionados à associação de alguns fatores, tais como, evolução da doença de base, histórico de internação prolongada e privação da alimentação por via oral desde o nascimento.

A terapia fonoaudiológica domiciliar para esse caso, foi estabelecida com a periodicidade de três sessões semanais, de uma hora cada. Inicialmente, direcionou-se a terapia para a conscientização dos pais e equipe em geral, sobre hipótese diagnóstica do paciente. Também, realizadas orientações sobre estimulações sensoriais extra-terapia, com manipulação de objetos com diversas texturas e temperaturas em extremidades corporais. Pais foram orientados sobre a necessidade do paciente de vivenciar momentos de alimentação da família, identificando como uma ação prazerosa, sendo combinado que o paciente seria colocado em cadeirote de alimentação durante as refeições dos pais.

A fonoaudióloga além das orientações, designou como proposta terapêutica para esse caso, a realização de estimulação sensorial global com materiais de texturas diversas, temperaturas diferentes e estímulos vibratórios. Também, apresentou-se alimentos diversos para exploração e conhecimento, deixando o paciente manipulá-los e explorá-los com qualquer utensílio e parte do corpo que se sentisse confortável (Figura 2).


Figura 2. Terapia para recusa alimentar.



Paciente apresenta avanços no desenvolvimento global, comportamento exploratório quando expostos a novas texturas e alimentos, contudo, o interesse não se mantém por mais de 20 minutos, sendo necessárias novas abordagens no restante da sessão terapêutica. O apoio da família é determinante para o sucesso da intervenção. Observamos pais extremamente colaborativos e participativos em todas as etapas do tratamento, apresentando domínio das características da patologia de base do paciente, e orientados sobre as condutas para melhor evolução do quadro.


COMENTÁRIOS

O diagnóstico composto por diversas patologias da função respiratória, está diretamente ligado a presença do quadro de disfagia orofaríngea que encontramos nesse caso. Identificamos ele como um paciente com alteração na função respiratória concomitante à necessidade do uso de traqueostomia. Essa, por sua vez, causa alterações nos aspectos miofuncionais como a baixa sensorial, alterações do olfato e paladar, levando à alteração da fase antecipatória da deglutição onde haverá a redução do apetite. Outro impacto fisiológico decorrente da traqueostomia é a alteração da temperatura do fluxo nas vias aéreas inferiores o que proporciona a dessensibilização da mucosa com risco de aspiração silente5. Também, o uso de ventilação mecânica, acarreta em modificações na fisiologia da deglutição, apresentando alteração no tônus de língua e bochecha, dessensibilização de estruturas orofaríngeas, comprometendo a elevação laríngea e a coordenação deglutição-respiração6.

A alimentação é um processo complexo, aprendido e aprimorado, que depende de condições físicas e do desenvolvimento da criança, bem como das suas habilidades orais e sensoriais para interpretar e lidar com o alimento. Essa complexa função envolve emoções, motivação, contexto social e familiar e ambiente7. Estudo indica que 30% das crianças com desenvolvimento normal podem encontrar algum tipo de desafio nesse processo8, e estima-se encontrar 80% de distúrbios alimentares nas que possuem alterações no desenvolvimento9.

Para abordagem e compreensão do tratamento de crianças com dificuldades alimentares, foi descrito um modelo biopsicossocial, em que se leva em consideração fatores fisiológicos, comportamentais e sociais. É a chamada compreensão da “criança por inteiro” que engloba as áreas sensoriais, motoras, motoras orais, comportamentais, de aprendizagem, saúde física e nutricional, emocional e ambiental. Essas áreas possuem a mesma importância, e devem ser conectadas para diagnóstico e reabilitação da criança com aversão alimentar10,11.

Para tratamento da aversão alimentar nesse caso, seguimos o descrito por Junqueira (2017)7, que elenca seis etapas essenciais na reabilitação dessas crianças com dificuldades alimentares, sendo: identificar e tratar possíveis causas orgânicas; educar os pais; suporte emocional à mãe; desenvolvimento normal da sequência para o aprendizado alimentar; garantir habilidade e conforto na alimentação; estratégias lúdicas. As habilidades de comer são aprendidas e ensinadas, e nesse caso, foram permitidas. Paciente pode ver, interagir, cheirar e provar os alimentos. A criança conhece e se relaciona com o mundo por meio da brincadeira. Por isso, todo esse processo vem sendo baseado em atividades lúdicas relacionadas à alimentação.


REFERÊNCIAS

1. Fan LL, Deterding RR, Langston C. Pediatric interstitial lung disease revisited. Pediatr Pulmonol. 2004 Nov;38(5):369-78.

2. Dinwiddie R, Sharief N, Crawford O. Idiopathic interstitial pneumonitis in children: a national survey in the United Kingdom and Ireland. Pediatr Pulmonol. 2002 Jul;34(1):23-9.

3. Paiva MASS, Amaral SMM. Chronic interstitial lung diseases in children. J Bras Pneumol. 2009;35(8):792-803.

4. Barbosa LR, Gomes E, Fischer GB. Sinais clínicos de disfagia em lactentes com bronquiolite viral aguda. Rev Paul Pediatr. 2014 Set;32(3):157-63.

5. Barros APB, Portas JG, Queija DS. Implicações da traqueostomia na comunicação e na deglutição. Rev Bras Cir Cabeça Pescoço. 2009 Set;38(3):202-7.

6. Santana L, Fernandes A, Brasileiro AG, Abreu AC. Critérios para avaliação clínica fonoaudiológica do paciente traqueostomizado no leito hospitalar e internamento domiciliar. Rev CEFAC. 2014 Mar/Abr;16(2):524-36.

7. Junqueira P. Relações cognitivas com o alimento na infância. São Paulo (SP): International Life Sciences Institute do Brasil (ILSI Brasil); 2017. v. 5.

8. Kerzner B, Milano K, MacLean Junior WC, Berall G, Stuart S, Chatoor I. A practical approach to classifying and managing feeding difficulties. Pediatrics. 2015 Fev;135(2):344-53.

9. Williams S, Witherspoon K, Kavsak P, Patterson C, McBlain J. Pediatric feeding and swallowing problems: an interdisciplinary team approach. Can J Diet Pract Res. 2006;67(4):185-90.

10. Morris S, Klein MD. Pre-feeding skills: a comprehensive resource for mealtime development. 2a ed. USA: Vital & Marts; 2000.

11. Toomey KA, Ross ES. SOS approach to feeding. Dysphagia. 2011;20(3):82-7.










1. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PPG Pneumologia - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
2. Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Fonoaudiologia - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
3. Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Pneumologia - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil

Endereço para correspondência:
Vanessa Souza Gigoski Miranda
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre
Rua Sarmento Leite, nº 245, Centro Histórico
Porto Alegre, RS, Brasil. CEP: 90050-170
E-mail: vanessa_gigoski@hotmail.com

Data de Submissão: 11/03/2019
Data de Aprovação: 03/06/2019