ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 1

Diagnóstico e tratamento da síndrome inflamatória multissistêmica temporalmente relacionada à COVID-19 em adolescente: relato de caso

Diagnosis and treatment of multisystem inflammatory syndrome temporally related to COVID-19 in an adolescent: case report

RESUMO

Em abril de 2020 a sociedade de pediatria do Reino Unido reportou à Organização Mundial de Saúde o aparecimento de uma síndrome rara, com um amplo espectro de sinais e sintomas, temporalmente associada à COVID-19, que afetava principalmente escolares e adolescentes habitualmente saudáveis, com alta letalidade quando não diagnosticada e tratada precocemente. Apresentamos o caso de uma criança de 12 anos que apresentava febre alta e persistente, exantema e vômitos, e que, após 6 dias, evoluiu com insuficiência respiratória aguda, disfunção miocárdica e renal, com necessidade de suporte ventilatório e hemodinâmico, tratada com antibióticos, imunoglobulina intravenosa e anticoagulante. O objetivo do relato é apresentar ao leitor as características peculiares do diagnóstico e do tratamento da síndrome e seus principais diagnósticos diferenciais à admissão hospitalar.

Palavras-chave: Coronavírus, Adolescente, Inflamação.

ABSTRACT

In April 2020, the UK pediatric society reported to the World Health Organization the appearance of a rare syndrome, with a wide spectrum of signs and symptoms, temporarily associated with COVID-19, which mainly affected normally healthy schoolchildren and adolescents, with high lethality when not diagnosed and treated early. We present the case of a 12-year-old child who had high and persistent fever, rash and vomiting, who, after 6 days, developed acute respiratory failure, myocardial and renal dysfunction, requiring ventilatory and hemodynamic support, treated with antibiotics, intravenous immunoglobulin, and anticoagulant. The purpose of this report is to present the reader with the peculiar characteristics of the diagnosis and treatment of the syndrome and its main differential diagnoses at the hospital admission.

Keywords: Coronavirus Infections, Teenager, Inflammation.


INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2019, o governo chinês reportou à Organização Mundial de Saúde (OMS) uma série de casos de pneumonias graves e de alta letalidade, que acometia principalmente indivíduos portadores de comorbidades e maiores de 60 anos. Após o alerta, uma força tarefa foi formada com o objetivo de identificar o agente etiológico responsável pelo surto. No dia 7 de janeiro de 2020 o SARS-CoV-2, sétimo vírus identificado da família coronavírus, foi descrito como causador do estado de emergência de saúde global1,2.

Em meados de abril de 2020 a sociedade de pediatria do Reino Unido notificou o aparecimento de uma síndrome rara e grave em crianças e adolescentes habitualmente saudáveis, possivelmente associada à COVID-19. Os pacientes apresentavam manifestações clínicas e alterações laboratoriais similares aos da doença de Kawasaki, da síndrome de choque associada à Kawasaki, síndrome de ativação macrofágica e síndrome de choque tóxico (SCT). Em seguida, os casos se espalharam pela Europa, América do Norte e, posteriormente, na América Latina, até que no mês de julho os primeiros casos foram relatados no Brasil3,4.

A síndrome apresenta um amplo espectro de sinais e sintomas envolvendo ao menos 2 órgãos ou sistemas, e pode ser letal quando não identificada e tratada precocemente. É resultado da ativação descontrolada de células T citotóxicas e liberação maciça de mediadores pró-inflamatórios. Cerca de 80% dos pacientes evoluem com disfunção cardiovascular, insuficiência respiratória aguda e disfunção de múltiplos órgãos5-7.

Nosso objetivo é atentar o leitor quanto às características peculiares do diagnóstico e do tratamento da síndrome inflamatória multissistêmica temporalmente associada à COVID-19 e seus principais diagnósticos diferenciais à admissão hospitalar. O responsável pelo paciente autorizou o uso dos dados do prontuário para confecção desse relato através da assinatura do termo de assentimento livre e esclarecido (TCLE), submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa por meio da Plataforma Brasil.


RELATO DE CASO

Adolescente de 12 anos previamente hígida, apresentando cefaleia holocraniana há 6 dias, de intensidade variável, com fotofobia, associada à febre (aferida e medicada), que cessava após o uso de dipirona por cerca de 6 horas. O quadro teve início um dia após a criança ter entrado numa represa próxima à sua residência. Mãe negou sintomas respiratórios nos últimos 3 meses. Passou em atendimento médico em duas ocasiões sendo liberado após analgesia intravenosa. No sexto dia de evolução teve 2 episódios de vômitos com restos alimentares, dor abdominal intensa, em cólicas, exantema polimórfico, principalmente no tronco e membros superiores, queda do estado geral, mialgia difusa, hiporexia e, segundo informações contidas no prontuário, rigidez meníngea. Recebeu ceftriaxone 100mg/kg, duas alíquotas de 20ml/kg cada de cristaloides e foi encaminhada da emergência à unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP).

O exame físico de admissão evidenciava criança em regular estado geral, descorada (1+), com desidratação moderada, anictérica, afebril e taquipneica (frequência respiratória: 38 respirações por minuto). O abdome era doloroso à palpação profunda, mas sem sinal de descompressão brusca ou peritonismo. As pupilas eram isocóricas, fotorreagentes, não havia sinais de irritação meníngea e a escala de coma de Glasgow era igual a 15. As extremidades estavam bem perfundidas, os pulsos cheios e simétricos; o tempo de enchimento capilar era de 3 segundos.

Foram colhidos exames laboratoriais (Quadro 1) e exames de imagem (Quadro 2), realizada monitorização e ofertado oxigênio através de cateter nasal tipo óculos. Associado doxiciclina à ceftriaxona e indicado isolamento respiratório até liberação dos resultados dos exames. Aventada hipótese de sepse de foco abdominal, dengue e leptospirose como diagnóstico diferencial.






Após 12 horas da admissão na UTIP houve piora da taquipneia, aparecimento de retração subdiafragmática e tiragem subcostal. As extremidades estavam frias, os pulsos finos, o tempo de enchimento capilar prolongado (4-5 segundos), houve redução do débito urinário e hipotensão arterial (sistólica 85mmHg, diastólica 40mmHg e média 55mmHg). Foi prontamente intubada, recebeu duas expansões com cristaloides, puncionado acesso venoso central em veia jugular interna direita e iniciado adrenalina 0,3mcg/kg/minuto. O murmúrio vesicular estava abolido em ambas as bases pulmonares, e tanto a tomografia de tórax quanto a radiografia evidenciavam derrame pleural bilateral. Paciente foi imediatamente submetida à drenagem torácica.

Diante da intercorrência a equipe assistencial optou pela troca da ceftriaxona pela piperaciclina e tazobactam em associação com a clindamicina, sendo considerando a possibilidade de síndrome do choque tóxico, sem descartar a síndrome de ativação imunofagocítica do diagnóstico diferencial.

No segundo dia de internação foi necessário associar norepinefrina ao suporte hemodinâmico e em seguida hidrocortisona. Furosemida foi administrada a fim de manter bom débito urinário diante da lesão renal aguda.

No terceiro dia de internação na UTIP (9° dia de sintomas) a equipe teve acesso ao resultado das sorologias para SARS-CoV-2 e RT-PCR; a IgG foi positiva nas duas amostras e o RT-PCR não reagente. Então optou-se pela administração de imunoglobulina endovenosa 2g/kg, enoxaparina 2mg/kg/dia e substituída hidrocortisona por metilprednisolona. Realizado ecocardiograma transtorácico com fração de ejeção de 54%, boa contratilidade cardíaca e sem comprometimento coronário.

Após três dias da administração de imunoglobulina (6º dia de internação na UTIP e 12º dia de história clínica) o paciente ficou afebril, foi possível reduzir o suporte vasoativo, que foi suspenso, e foi extubada no oitavo dia de internação. A criança recebeu alta após doze dias de internação.


DISCUSSÃO

Os sinais e sintomas da infecção causada pela COVID-19 são semelhantes aos da maioria das infecções respiratórias virais típicas da infância, e os casos graves são raros, sendo a maioria em menores de 1 ano, com antecedente de prematuridade ou naqueles portadores de comorbidades (cardiopatias, diabetes, hepatopatias e erros inatos do metabolismo). Já a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) geralmente ocorre em escolares e adolescentes, e as alterações nos marcadores de inflamação e de lesão cardíaca são mais exuberantes, como pôde ser evidenciado no caso relatado8,9.

O diagnóstico da síndrome inflamatória multissistêmica temporalmente associada à COVID-19 é estabelecido com base nos critérios de definição de casos da OMS (Quadro 3), sendo necessária, além dos sinais e sintomas e alterações laboratoriais, a confirmação da infecção pelo SARS-CoV-2, soroconversão ou exposição à COVID-19 nas últimas quatro semanas antes do início dos sintomas10.




A síndrome inflamatória ou também chamada de tempestade de citocinas causa alterações imunológicas responsáveis por desencadear um amplo espectro de sinais e sintomas (febre alta e persistente, exantema, vômitos, disfunção miocárdica e renal), e corroboram para o diagnóstico, entretanto, podem estar presentes em outras situações, como a síndrome do choque da doença Kawasaki e da síndrome do choque tóxico, principalmente em se tratando de adolescentes do sexo feminino11.

Esses pacientes evoluem rapidamente para formas graves da síndrome inflamatória, com disfunção pulmonar, cardiovascular, hematológica e renal, devendo ser manejados na unidade de terapia intensiva ou sob monitorização na sala de emergência. Muitas vezes o diagnóstico não é estabelecido na admissão, sendo necessário provas sorológicas, RT-PCR, dentre outros exames laboratoriais e de imagem. Assim, inicialmente o tratamento é de suporte, mantendo a via aérea pérvia, oxigênio suplementar para manter boa pressão arterial de oxigênio e boa saturação, suporte hemodinâmico, controle hidroeletrolítico e acidobásico, oferta hídrica adequada com bom débito urinário12.

Naqueles casos em que o paciente apresenta sepse com ou sem sinais de choque, a antibioticoterapia empírica deverá ser imediatamente iniciada levando em conta a apresentação clínica e a epidemiologia local. Considerando que, no caso relatado, uma das hipóteses diagnósticas iniciais foi a síndrome do choque tóxico, o uso de clindamicina é justificado, já que se trata de um antibiótico semissintético produzido pela substituição do grupo 7 (R)-hidroxi de um derivado da lincomicina, que se liga à subunidade 50S dos ribossomos bacterianos e evita a formação de uniões peptídicas, impedindo crescimento, reprodução e liberação de toxinas indutoras da SCT11,13.

A imunoglobulina deve ser considerada na SIM-P com apresentações moderadas e graves, e naqueles que preencham os critérios para doença de Kawasaki, completa ou incompleta. Na SCT pode atuar neutralizando os superantígenos bacterianos e modulando a resposta imune. A dose indicada é de 1 a 2mg/kg, devendo ser infundida em 12 horas e repetida nos casos refratários à primeira dose12,14.

A metilprednisolona é o esteroide de escolha nos casos graves, seja associada à imunoglobulina (pulsoterapia ou dose habitual de 1 a 2mg/kg a cada 6 horas), ou nos casos refratários. Já os imunomoduladores só devem ser usados nos casos refratários à imunoglobulina e pulsoterapia com esteroides. Não há evidências quanto ao uso de antivirais14.

Com a evolução da pandemia, vários trabalhos mostraram o aumento de fenômenos tromboembólicos em pacientes com as formas graves da doença. Apesar do paciente em questão não preencher critérios para doença de Kawasaki, não ter evidências ecocardiográficas de aneurismas coronarianos ou fração de ejeção <35%, optou-se por manter a enoxaparina devido ao estado de hipercoagulabilidade sanguínea15.


REFERÊNCIAS

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1. Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP, Departamento de Pediatria - Botucatu - São Paulo - Brasil
2. Santa Casa de Jaú, Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica - Jaú - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência:
Haroldo Teófilo de Carvalho
Faculdade de Medicina de Botucatu
Av. Prof. Mário Rubens Guimarães Montenegro, s/n, UNESP. Campus de Botucatu
Botucatu, SP, Brasil. CEP: 18618-687
E-mail: haroldoteofilo@gmail.com

Data de Submissão: 21/10/2020
Data de Aprovação: 09/11/2020