Relato de Caso
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Ano 2013 -
Volume 3 -
Número
3
Atraso no desenvolvimento neuropsicomotor em lactente secundário à deficiência materna
Developmental delay in infants secondary to maternal deficiency
Jurema Amâncio Mascarenhas1; Meire Aparecida Tostes Cardoso2
RESUMO
Relato de caso de lactente de dois meses com atraso de desenvolvimento neuropsicomotor secundário à deficiência de vitamina B12, por deficiência materna durante a gestação. A deficiência de vitamina B12, embora infrequente nessa faixa etária, pode apresentar quadro neurológico, simulando outras afecções como infecções congênitas/adquiridas e erros inatos de metabolismo. O diagnóstico e o tratamento adequados devem ser realizados para prevenir sequelas neurológicas definitivas.
Palavras-chave:
deficiência de vitamina B 12, lactente, transtornos do desenvolvimento da linguagem.
ABSTRACT
Case report of two months old infant with delayed neurodevelopment secondary to B12 vitamin deficiency, due to mother unrecognized B12 vitamin deficiency during pregnancy. The B12 vitamin deficiency, although uncommon in this age group, may present neurological abnormalities, mimicking other diseases such as congenital infection or acquired and inborn metabolism errors. The appropriate diagnosis and treatment should be done in order to prevent permanent neurological sequelae.
Keywords:
child development, infant, vitamin B 12.
INTRODUÇÃO
As anemias megaloblásticas correspondem a um grupo de doenças as quais apresentam alterações morfológicas semelhantes no sangue periférico e medula óssea, em sua maioria causadas pela deficiência nutricional de ácido fólico e/ou vitamina B12 (cianocobalamina) e mais raramente fazendo parte do quadro clínico de doenças metabólicas1.
Na anemia megaloblástica, ocorre um distúrbio bioquímico, que envolve a síntese de DNA, bloqueando a síntese de timidina, um nucleotídeo que compõe o DNA, prejudicando a replicação e a reparação celular. Por outro lado, a síntese de RNA permanece intacta, permitindo a maturação citoplasmática e crescimento celular, o que explica as alterações celulares responsáveis pelas manifestações clínicas e citológicas dessas deficiências1.
A vitamina B12 inclui um grupo de compostos contendo cobalto, conhecidos como cobalaminas, que participam da síntese de mielina, proteínas, DNA e degradação de ácidos graxos.
Esta vitamina atua como cofator para duas enzimas: a metionina-sintetase e a metilmalonil-CoA mutase, que após várias modificações bioquímicas é convertida em metilcobalamina e adenosilcobalamina. Durante esse processo, vários erros genéticos podem ocorrer e serem responsáveis por doenças genéticas agrupadas em oito grupos de complementação (cblA - cblH)1,2.
Em síntese, a vitamina B12 está envolvida em duas reações bioquímicas importantes no organismo: uma converte metilmalonil-CoA em succinil-CoA e a outra homocisteína em metionina. Esta última reação intervém indiretamente na síntese de timidina, transformando simultaneamente o folato para sua forma ativa (tetrahidrofolato). Esta reação tem dois efeitos importantes: reduzir a concentração plasmática de homocisteína, a qual é tóxica para as células endoteliais e nervosas. Mas, talvez, o papel mais importante é dimetilar o tetrahidrofolato, um ponto crítico na síntese de DNA porque o tetrahidrofolato e não o metil-tetrahidrofolato é o substrato para a enzima que converte o tetrahidrofolato-1 para a forma poliglutamato1.
A deficiência de vitamina B12 em recém-nascidos e lactentes ocorre na maioria das vezes secundária à deficiência materna. Anemia megaloblástica, pancitopenia, déficit de crescimento e atraso do desenvolvimento neuropsicomotor podem estar presentes ao diagnóstico, inclusive com sequelas neurológicas irreversíveis se o diagnóstico for tardio. Erros inatos do metabolismo afetando absorção (deficiência de fator intrínseco, síndrome de Grasbeck), transporte (deficiência de transcobalamina), bem como o metabolismo intracelular, podem ocorrer mais raramente2-4.
Dada a dificuldade diagnóstica da deficiência de vitamina B12 em lactentes cujo quadro clínico pode mimetizar várias outras doenças que podem ocorrer nessa faixa etária e pelas sequelas neurológicas definitivas que podem ocorrer motivou-nos ao relato desse caso e revisão da literatura.
DESCRIÇÃO DO CASO
Lactente, 2 meses, apresentando dificuldades na amamentação, ganho de peso insuficiente, irritabilidade e sonolência desde o nascimento. Gestação e parto sem intercorrências, em amamentação exclusiva. História familiar inespecífica. Ao exame físico, apresentava palidez cutâneo-mucosa, desnutrição aguda (Z-score: - 4,14), duas manchas café-com-leite em membros inferiores com diâmetro de meio e 1 cm respectivamente, irritado à manipulação, hipotonia global, demais órgãos e sistemas sem alterações. Exames complementares na Tabela 1.
Mielograma: medula óssea com alterações megaloblásticas nos setores eritroide, mieloide e megacariocítico;Sorologias para toxoplasmose, rubéola, citomega lovírus, sífilis, HIV e herpes vírus negativas;Triagem para erros inatos de metabolismo negativa;Radiografia de ossos longos e fundo de olho normais;Tomografia de crânio: lesão axial benigna da infância;Dosagem de vitamina B12 materna 150 ng/dL (> 300).
Foi iniciado tratamento com vitamina B12 e ácido fólico. Na quarta semana de tratamento, o paciente já apresentava melhora do quadro clínico, correção das alterações laboratoriais e regressão da maioria das manifestações neurológicas, permanecendo hipotonia.
DISCUSSÃO
A primeira descrição da deficiência de vitamina B12 causando alterações neurológicas em lactentes ocorreu em 1962, em lactentes indianos; porém, a fisiopatogenia do envolvimento neurológico ainda permanece pouco esclarecida5-7.
A vitamina B12 é uma vitamina hidrossolúvel, sintetizada somente por micro-organismos e está presente em produtos de origem animal como o fígado, o leite, ovos, camarões frescos, carne de porco e de galinha1.
A reserva de vitamina B12 do recém-nascido é feita por transferência placentária (25-50 mg) e a ingestão diária necessária para o metabolismo celular é de 0,1-0,4 mg/dia. Lactentes em aleitamento materno exclusivo consomem em torno de 0,25 mg/dia de vitamina B12 do leite materno nos primeiros 6 meses de vida. Lactentes nascidos de mãe com deficiência de vitamina B12, ou que apresentem erros inatos de metabolismo envolvendo a vitamina B12, apresentam estoques muito baixos ou ausentes ao nascimento. Estes lactentes geralmente irão desenvolver sintomas entre dois a 12 meses de idade2-5,8.
A deficiência de vitamina B12 em lactentes produz um conjunto de sinais e sintomas neurológicos como irritabilidade, atraso ou regressão do desenvolvimento neuropsicomotor, além de déficit de crescimento, anorexia, apatia, que podem preceder as manifestações hematológicas. O mecanismo de base o qual leva às alterações neurológicas permanece pouco esclarecido e pode envolver atraso na mielinização ou desmielinização dos nervos. A síntese de mielina é inibida pelo acúmulo de metil-malonil, o qual é um inibidor competitivo da malonil-CoA importante na síntese de esfingomielina. Também ocorre alteração na relação S-adenosilmetionina/S-adenosilhomocisteína, o que pode diminuir reações de metilação essenciais para a síntese de proteínas, lipídios e neurotransmissores no sistema nervoso central, desbalanço entre citocinas neutrotróficas e neutrotóxicas e ou acúmulo de lactato no cérebro. Alterações cerebrais também ocorrem e consistem em focos de desmielinização da substância branca1,2,5,6,9.
O quadro clínico pode confundir-se com uma série de afecções que acometem lactentes como infecções congênitas e doenças metabólicas, o que pode atrasar o diagnóstico e, consequentemente, o tratamento adequado, evitando que sequelas neurológicas definitivas ocorram5,10,11.
A dificuldade em amamentação ou a recusa do desmame está presente em 53% a 83% dos pacientes com deficiência de vitamina B12, provavelmente induzida por hipotonia e dificuldade em ingerir alimentos sólidos4.
As alterações laboratoriais que podem ser observadas são a presença de anemia com macrocitose, plaquetopenia, pancitopenia e à análise do sangue periférico pode ser observado hiperssegmentação dos neutrófilos (pelo menos um neutrófilo com mais de seis lobos ou cinco neutrófilos com cinco lobos/100 células). O exame de medula óssea mostra hipercelularidade, com hiperplasia eritroide megaloblástica, assincronia na maturação núcleo-citoplasmática, contrastando com a reticulocitopenia. Também são observadas alterações semelhantes no setor mieloide e megacariocítico. O aspecto da medula óssea é de predomínio de células jovens. A eritropoiese é profundamente ineficaz. A coloração com ferro pode mostrar a presença de sideroblastos. Devido à apoptose, ocorre menor sobrevida das hemácias circulantes, causando leve aumento da bilirrubina indireta e pela intensa multiplicação celular e apoptose ocorre também grande elevação da DHL1,3,12,13.
A dosagem sérica de vitamina B12 não é necessária para o diagnóstico, uma vez que 5% dos pacientes com deficiência apresentam valores dentro da faixa de normalidade. Isto ocorre por diferenças metodológicas e pela baixa sensibilidade e especificidade da dosagem1,12-14. Dosagens séricas dos metabólitos ácido metilmalônico e homocisteína são sensíveis, porém, não são específicas e devem ser avaliados com cuidado14.
Vale ressaltar que nenhum exame complementar (dosagem de excreção fecal de vitamina B12 radiomarcada, teste de Shilling, teste de supressão com deoxiuridina, dosagem de transcobalamina II, pesquisa de anticorpos anticélula parietal e fator intrínseco) sozinho é capaz de confirmar ou afastar o diagnóstico de deficiência de vitamina B1212-14.
Muitas vezes, o teste terapêutico se impõe e a resposta clínica e laboratorial satisfatória com a reposição da vitamina B12 é o único recurso diagnóstico e ao mesmo tempo terapêutico13,14.
Embora a deficiência de vitamina B12 seja rara, mesmo na ausência de fatores de risco, como vegetarianismo materno, o diagnóstico deve ser considerado em todo o lactente amamentado, apresentando problemas de desenvolvimento inexplicáveis. Os sintomas neurológicos podem ocorrer sem anemia, por isso, o diagnóstico precoce e intervenção são importantes para evitar danos irreversíveis.
O presente caso também apresentava-se com quadro clínico semelhante ao descrito na literatura. A investigação confirmou o diagnóstico de anemia megaloblástica por deficiência de vitamina B12, secundária à deficiência materna, não reconhecida, durante a gestação. A instituição de tratamento adequado possibilitou resposta terapêutica com correção do quadro hematológico e melhora significativa do quadro neurológico.
A recuperação do dano neurológico é variável, podendo ocorrer dentro de dias a meses após o início do tratamento, o prognóstico neurológico a longo prazo está relacionado à gravidade e duração da deficiência da vitamina B12 e muitos lactentes podem permanecer com retardo do desenvolvimento neuropsicomotor, apesar da correção das alterações hematológicas5,10,11. Observamos, também, na evolução do caso descrito recuperação rápida das anormalidades hematológicas, regressão da maioria dos sintomas neurológicos. No entanto, ele permanece com atraso leve do desenvolvimento neuropsicomotor. Atualmente, o nosso paciente encontra-se em acompanhamento com neuropediatria e fisioterapia e não foi observada mudança no quadro clínico que sugira doença genética ou metabólica relacionada à deficiência de vitamina B12.
CONCLUSÃO
O diagnóstico e tratamento precoces da deficiência de vitamina B12 no lactente são de fundamental importância para a prevenção do dano neurológico permanente.
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1. Residência Médica em Pediatria pela UFBa - Médica Pediatra
2. Mestrado - Hematologista Pediatra da UFMG
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