ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Caso Clínico Interativo - Ano 2021 - Volume 11 - Número 1

Manifestação pulmonar de uma doença comum, mas frequentemente negligenciada: qual é o seu diagnóstico?

Pulmonary manifestation of a common, but frequently neglected disease: what is your diagnosis?


Paciente com 16 anos, sexo masculino, residente na Pavuna/ RJ. Queixa principal: febre, vômitos e dor abdominal.

Histórico médico

Em abril de 2019 iniciou quadro agudo com febre (não aferida), dor abdominal e vômitos. Medicado com sintomáticos. Em 48h houve piora e o paciente apresentou dor em panturrilhas, queda do estado geral, icterícia e tosse com hemoptise. Indicada internação, sendo administrada uma dose de ceftriaxone, hidratação venosa e sintomáticos.

Em 29 de abril foi transferido para hospital de referência em doenças infecciosas. O paciente referiu que o quadro se iniciou após ter mergulhado em um valão próximo à residência, em estado de repleção após chuvas fortes.

Exame físico

P: 56Kg, E: 173cm, IMC: 19,3, saturação de O2 em ar ambiente: 97%, Tax: 38,3°C, PA: 130x80mmHg. Paciente prostrado, ictérico 3+/4, hidratado e com boa perfusão capilar. FR: 20irpm à ausculta pulmonar com diminuição do murmúrio vesicular e roncos em ambos os hemitóraces. Ausculta cardíaca normal FC: 88bpm. Abdômen flácido com fígado palpável a 2cm RCD. Peristalse normal. Dor à palpação de membros inferiores.

Exames laboratoriais iniciais (veja Tabela 1).




1. Diante do quadro clínico, que antibiótico seria a 1ª escolha para o tratamento desse paciente?

A. Ceftriaxone.
B. Ciprofloxacina.
C. Penicilina cristalina.
D. Azitromicina.
E. Vancomicina.

C. Penicilina cristalina.


Os casos leves de leptospirose podem ser tratados com ampicilina, amoxicilina, eritromicina e cefalosporina. Os casos graves devem ser internados e tratados com altas doses de penicilina cristalina 200-250.000UI/kg/dia durante 7-14 dias1.

A radiografia de tórax mostrava infiltrado em língula e lobos inferiores com imagem ovalada, hiperaerada, identificada apenas na incidência em perfil, podendo corresponder à cavidade por processo específico (Figura 1). Silhueta cardíaca preservada. Seios costofrênicos livres.


Figura 1. Radiografia de tórax: infiltrado na lingula e lobos inferiores.



Na tomografia de alta resolução do tórax observaram-se (Figura 2):


Figura 2. Tomografia de tórax: Pequenas áreas com atenuação em vidro fosco esparsas bilaterais.




• Pequenas áreas com atenuação em vidro fosco esparsas e bilaterais, predominantemente periféricas e mais evidentes nos segmentos anterior do lobo superior direito e no lobo médio, estando o restante do parênquima pulmonar com valores de atenuação dentro dos limites da normalidade;

• Ausência de bronquiectasias e de derrame pleural;

• Traqueia e brônquios fonte sem alterações.

• Ausência de massas ou linfonodomegalias mediastinais e hilares;

• Aorta e artérias pulmonares de curso e calibres normais;

• Coração de volume normal.


As sorologias para toxoplasmose, rubéola, hepatite A e B foram negativas. A sorologia para citomegalovírus (CMV) foi reagente apenas para IgG. O derivado proteico purificado (PPD) foi não reator. Pesquisa de BAAR no escarro foi negativa em 2 amostras.

Evolução

O paciente evoluiu com melhora após o uso de penicilina, tendo alta no 14º dia. Revisão ambulatorial em 1 mês com melhora clínica e radiológica (Tabela 2).




O teste de aglutinação microscópica (MAT) veio positivo, confirmando o diagnóstico de leptospirose.

2. Sobre a epidemiologia da leptospirose, pode-se afirmar que:

A. Espécies patogênicas de leptospira foram isoladas de morcego e pinípedes.
B. A transmissão entre seres humanos não foi descrita.
C. A leptospira só é isolada de animais homeotérmicos.
D. A leptospira coloniza os glomérulos renais dos reservatórios.
E. NRA.

A. Espécies patogênicas de leptospira foram isoladas de morcego e pinípedes.


Os pequenos mamíferos, especialmente roedores, são os principais reservatórios, mas grandes herbívoros e animais domésticos como o cão são importantes fontes adicionais de infecção. As leptospiras também foram isoladas em morcegos e pinípedes como focas, leão marinho, morsas e outros2.

As leptospiras já foram isoladas em pecilotérmicos, como sapos e rãs, e é possível que os anfíbios tenham um papel na circulação da leptospiras no meio ambiente2.

Embora rara, a transmissão inter-humana pode ocorrer durante o ato sexual e durante a lactação. Quando ocorre na gravidez, pode resultar em abortamento ou natimorto2.

Após a entrada no hospedeiro, através da disseminação hematogênica, a leptospira atinge os glomérulos e capilares peritubulares, e daí chegam aos túbulos renais onde colonizam a borda em escova dos túbulos proximais, podendo persistir por um longo tempo2,3.

3. Qual é a manifestação considerada um marco da fase imune da forma anictérica?

A. Arritmia cardíaca.
B. Insuficiência renal.
C. Pneumonite.
D. Cistos hepáticos.
E. Meningite asséptica.

E. Meningite asséptica.


Noventa por cento ou mais dos pacientes apresentam a forma anictérica da leptospirose. Frequentemente o diagnóstico definitivo não é feito, pois icterícia e azotemia não estão presentes4.

A doença anictérica pode ser bifásica, tendo uma fase inicial septicêmica caracterizada por febre, calafrios, mal-estar, cefaleia, mialgia intensa, dor abdominal e prostração, com duração de 4 a 7 dias. A 2ª fase (imune), que começa na 2ª semana, é caracterizada por febre, uveíte, exantema, cefaleia e meningite asséptica, que é o marco dessa fase4.

A persistência ou recorrência de cefaleia após o término da fase septicêmica indica o início de meningite. Geralmente as complicações hemorrágicas estão associadas exclusivamente com a doença ictérica, mas sufusões conjuntivais ou hemorragia conjuntival acompanhada de fotofobia e dor ocular podem estar presentes na forma anictérica e são sinais diagnósticos úteis4.

Alguns pacientes anictéricos não apresentam doença bifásica e permanecem assintomáticos após a 1ª semana4.

4. Qual é a afirmativa correta em relação aos exames laboratoriais da leptospirose?

A. A leptospira pode ser isolada no sangue, líquor e urina na 1ª semana de doença.
B. O teste de aglutinação microscópica é o padrão ouro com resposta obtida em até 24h.
C. A plataforma do caminho duplo (DPP) é um teste rápido para diagnóstico5.
D. Leucopenia é o achado predominante no hemograma.
E. Elevação da creatinofosfoquinase ocorre em todas as fases da doença.

C. A plataforma do caminho duplo (DPP) é um teste rápido para diagnóstico5.


As hemoculturas devem ser coletadas o mais precocemente possível após a apresentação do paciente. A leptospiremia acontece antes do início dos sintomas e declina no término da 1ª semana de doença aguda, após a defervescência e melhora clínica. Outras amostras que podem ser usadas para cultura na 1ª semana de doença são o líquor (LCR) e o dialisado peritoneal2,4.

A urina deve ser cultivada a partir da 2ª semana de sintomas. A leptospirúria geralmente acontece na fase imune da doença, pode durar até 1 mês e não é afetada pela antibioticoterapia2,4. O teste de aglutinação microscópica (MAT) é considerado o teste padrão ouro para o diagnóstico, porém não permite o diagnóstico precoce da doença.

A plataforma de caminho duplo é um ensaio que usa altas concentrações de proteína recombinante imunoglobulina-like como antígeno. Tem sensibilidade semelhante ao IgM-ELISA e alta especificidade. Pode ser feito usando como amostra o sangue obtido por punção digital. É um teste confiável para o diagnóstico precoce da leptospirose humana, especialmente dos casos graves5.

O leucograma pode ser normal ou demonstrar leucocitose, às vezes com reação leucemoide (até 70.000 leucócitos/mm3)6. Trombocitopenia e anemia são comuns. A presença de leucopenia num contexto de anemia e trombocitopenia pode sugerir supressão da medula óssea2.

Os níveis de creatinofosfoquinase ficam aumentados apenas na 1ª fase da doença6.

5. Entre as manifestações abdominais da leptospirose na criança podemos citar:

A. Colecistite acalculosa.
B. Enterocolite.
C. Peritonite.
D. Abscessos subfrênicos.
E. Obstrução intestinal.

A. Colecistite acalculosa.


Sintomas gastrointestinais são frequentes e incluem náusea, vômitos, diarreia e dor abdominal2. A dor abdominal pode ser devido à colecistite acalculosa e/ou pancreatite. É importante lembrar que a função renal diminuída pode elevar o nível das enzimas pancreáticas quando o clearance é menor que 50ml/min2.

6. Quais as manifestações tomográficas da leptospirose pulmonar?

A. Opacidade em vidro fosco.
B. Nódulos de espaço aéreo.
C. Crazy-paving.
D. Espessamento septal.
E. Todas as respostas anteriores.

E. Todas as respostas anteriores.


Os pulmões podem ser acometidos nas formas anictérica e ictérica. O comprometimento pulmonar grave na leptospirose consiste primariamente em pneumonite hemorrágica. Nos casos avançados, a síndrome de angústia respiratória do adulto e a hemorragia alveolar difusa podem ocorrer com significativa mortalidade7.

A síndrome de hemorragia alveolar difusa (HAD) consiste em anemia, devido ao sangramento da microvasculatura pulmonar para o alvéolo, hemoptise e opacidade alveolar bilateral. É interessante observar que nos artigos sobre HAD, a leptospirose em geral não é citada no diagnóstico diferencial, embora seja uma doença com alta incidência e morbidade significativa7.

Von Ranke et al. (2016)7 publicaram um artigo sobre 16 pacientes com leptospirose pulmonar e hemorragia alveolar difusa. Os achados mais comuns na TCAR foram opacidade em vidro fosco e nódulos do espaço aéreo. Também foram observadas consolidações, padrão de crazy-paving e espessamento septal interlobular. Efusão pleural bilateral foi encontrada em 2 pacientes.


CONCLUSÕES

A leptospirose é uma doença comum, bastante negligenciada. Embora a maioria dos casos seja leve, pode cursar com gravidade, levando ao comprometimento de vários órgãos, redundando em fatalidade. As formas anictéricas, principalmente, podem ser confundidas com outros quadros infecciosos, como a dengue. A presença de sufusões hemorrágicas é uma pista diagnóstica importante.

A história epidemiológica de prática de esportes recreativos aquáticos, determinadas profissões, início do quadro após chuvas pesadas e inundações também pode contribuir para aumentar a suspeição.


REFERÊNCIAS

1. Aygün FD, Avar-Aydin PÖ, Çokuğraş H, Camicioğlu Y. Different clinical spectrum of leptospirosis. Turk J Pediatr. 2016;58(2):212-5.

2. Haake DA, Levett PN Leptospirosis in humans. Curr Top Microbiol Immunol. 2015;387:65-97.

3. Brito T, Silva AMG, Abreu PAE. Pathology and pathogenesis of human leptospirosis. Rev Inst Med Trop S Paulo. 2018;60:e23.

4. Nieves DJ. Leptospirosis. In: Cherry J, Demmler-Harrison GJ, Kaplan SL, Steinbach WJ, Hotez P, eds. Feigin and Cherry’s textbook of pediatric infectious diseases. 8ª ed. Philadelphia: Elsevier; 2019. v. 2. p. 1256-66.e5.

5. Nabity AS, Hagan JE, Araujo G, Damião AO, Cruz JS, Nery N, et al. Prospective evaluation of accuracy and clinical utility of the dual path platform (DPP) assay for the point-of-care diagnosis of leptospirosis in hospitalized patients. Plos Negl Trop Dis. 2018;12(2):e0006285. DOI: https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0006285

6. Fort GG. Leptospirosis. In: Ferri FF, ed. Ferri’s clinical advisor. Philadelphia: Elsevier; 2020. p. 213.e15.

7. Von Ranke FM, Zanetti G, Escuissato DL, Hochhegger B, Marchiori E. Pulmonary leptospirosis with diffuse alveolar hemorrhage: high-resolution computed tomographic findings in 16 patients. J Comput Assist Tomogr. 2016 Jan/Fev;40(1):91-5.










1. Chefe do serviço de Pneumologia Pediatrica Hospital Municipal Jesus/Prof Auxiliar de Saude da criança e adolescente UNESA
2. Médico Hebiatra do Hospital Municipal Jesus
3. Médica Pediatra do Hospital Municipal Jesus
4. Pediatra da enfermaria de adolescentes do HMJ
5. Doutora em Medicina pela UFRJ/ Prof Auxiliar de Saude da criança e adolescente UNESA
6. Medica Pneumologista Pediátrica Hospital Municipal Jesus
7. Infectologista Pediatrica Hospital Municipal Jesus
8. R4 de Pneumologia Pediatrica do Hospital Municipal Jesus
9. Radiologista Pediátrica do HMJ. 10 Chefe do serviço de Radiologia Pediatrica do HMJ

Endereço para correspondência:
Adriana Paiva de Mesquita
Hospital Municipal Jesus
Rua Oito de Dezembro, nº 717, Vila Isabel
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 20550-200
E-mail: dricapneumo@gmail.com

Data de Submissão: 01/09/2020
Data de Aprovação: 09/09/2020

Organizadora: Sandra Mara Amaral*

* Pediatra. Aposentada. Hospital Federal dos Servidores do Estado. Rio de Janeiro, RJ