Caso Clínico Interativo
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Ano 2013 -
Volume 3 -
Número
3
Um paciente de cabelos prateados - qual o seu diagnóstico?
A silver hairs patient - What is the diagnostic?
Ana Paula do Carmo1; Mauro Cesar Dufrayer1; José Marcos Cunha1; Alice Azevedo1; Mariana de Sá Mader1, Bianca de Angelis Souto1; Mariana Queiroz Gomes1; Jaqueline Elaine Fernandes1; Ana Carolina Botelho de Barros1, Maraisa Fachini Spada1
RESUMO
Lactente de 3 meses de idade, com história de febre persistente há 7 dias, sem outras queixas. Ao exame físico, apresentava bom estado geral, palidez, olhos avermelhados, cabelos acinzentados, petéquias, equimoses difusas, hepatoesplenomegalia. Os exames laboratoriais evidenciaram anemia, leucopenia com neutropenia e hipofibrinogenemia. Iniciada antibioticoterapia empírica com cefepima. Confirmado o diagnóstico após avaliação de exame complementar. A associação de síndrome linfoma-like permaneceu como uma das hipóteses. Optou-se por iniciar profilaxia de infecções secundárias e quimioterapia com acompanhamento ambulatorial da paciente.
Palavras-chave:
criança, imunodeficiências, pulmão.
Coordenadoras: Sandra Mara Amaral2; Bianca Carareto Alves Verardino3
PERGUNTAS
1. Paciente com cabelos acinzentados ou prateados, albinismo ocular e diátese hemorrágica, como o paciente do caso descrito, apresenta como diagnóstico mais provável:
a) Síndrome de Wiskott-Aldrich
b) Síndrome de Quebec
c) Síndrome de Chediak-Higashi
d) Doença de Elaljade
e) Síndrome da plaqueta cinzenta
ComentáriosTodas as síndromes citadas acima são distúrbios do armazenamento plaquetário e cursam com diátese hemorrágica, geralmente de intensidade leve a moderada1.As síndromes de hipopigmentação podem envolver a pele, os cabelos e a íris e, geralmente, se apresentam ao nascimento. O albinismo óculo-cutâneo pode se manifestar como característica isolada ou associada à imunodeficiência. Diante de um paciente com cabelos prateados, o diagnóstico diferencial inclui um grupo heterogêneo de condições como as Síndromes de Chediak-Higashi (SCH), de Griscelli (SG), de Hermansky-Pudlak (SHP)2 e a doença de Elaljade3.As síndromes de Hermansky-Pudlak tipo 2, de Griscelli 2 e de Chediak-Higashi podem cursar com imunodeficiência e infecções recorrentes. Um novo tipo de SHP, conhecido como SHP-9, e a deficiência de MAPBPIP, recentemente descritos, também causam albinismo associado à imunodeficiência2.O exame físico pode fornecer pistas para o diagnóstico diferencial. Sintomas oculares, incluindo o nistagmo, evidentes ao nascimento, são comuns em pacientes com SCH e SHP. Albinismo com baixa estatura é característico da deficiência de MAPBPIP2.Linfohistiocitose hemofagocítica sugere principalmente o diagnóstico de SCH e SG22.Neutropenia crônica é uma característica da SHP e da deficiência de MAPBPIP. Nas SCH e SG2, a neutropenia é geralmente transitória2.A doença de Elaljade é uma doença muito rara que apresenta manifestações neurológicas, oftalmológicas e da pigmentação cutânea4.
2. A confirmação diagnóstica do caso ocorreu:
a) Por identificação de mutação específica
b) Pela presença de grânulos gigantes nas células sanguíneas e nos precursores da medula óssea
c) Por dosagem sérica de cobre elevada
d) Pelo exame de microscopia eletrônica realizado em tecido de biópsia hepática
e) Pelas alterações características no exame de fundo de olho
ComentáriosNum paciente com síndrome dos cabelos prateados, a presença de granulações grosseiras nos leucócitos do sangue periférico pode selar o diagnóstico de síndrome de Chediak-Higashi5.Essas granulações gigantes podem ser encontradas em outras células como os precursores da medula óssea, melanócitos, fibroblastos, células endoteliais, neurônios e células de Schwann5.Se o hemograma não mostrar as granulações características, o diagnóstico dessas síndromes poderá ser feito por meio da biópsia de pele ou análise de fio capilar6.
3. Hipopigmentação associada à diátese hemorrágica pode ser encontrada na:
a) Síndrome de Hermansky-Pudlak
b) Síndrome da plaqueta cinzenta
c) Síndrome de Quebec
d) Síndrome de Wiskott-Aldrich
e) Anemia diseritropoiética congênita com trombocitopenia ligada a X
ComentáriosA síndrome de Hermansky-Pudlak se manifesta por albinismo óculo-cutâneo (tirosinase positivo), diátese hemorrágica e distúrbio de armazenamento lisossomal. Compreende oito tipos genéticos. O tipo 2 e um subtipo recentemente descrito como SHP-9 se manifestam por albinismo associado à imunodeficiência. Pode evoluir com doença intersticial pulmonar1,2.
4. A diátese hemorrágica que ocorre na síndrome de Chediak-Higashi é causada por:
a) deficiência de grânulos α das plaquetas
b) deficiência dos receptores da membrana plaquetária
c) deficiência de grânulos α e δ das plaquetas
d) deficiência dos grânulos δ das plaquetas
e) por deficiência de fatores hepáticos da coagulação
ComentáriosEm geral, os distúrbios de armazenamento plaquetário cursam com diátese hemorrágica de intensidade leve a moderada, ao contrário das alterações dos receptores de membrana, em que a síndrome hemorrágica é mais grave1.Os grânulos plaquetários armazenam moléculas que são produzidas ou captadas pelos megacariócitos e são classificados como α e δ, estes últimos conhecidos como corpos ou grânulos densos1.Diferentes síndromes e doenças podem ser causadas por alterações no armazenamento de um ou de ambos os tipos de grânulos1.As síndromes de Hermansky-Pudlak, de Griscelli e de Chediak-Higashi decorrem de alterações no armazenamento dos grânulos δ1.
COMENTÁRIOS ADICIONAIS
A síndrome de Chediak-Higashi foi descrita pela primeira vez por Beguez-Cesar, em 1943. Chediak, um pediatra cubano, descreveu outro caso em 1952 e na década de 50 Higashi descreveu as manifestações hematológicas nas granulações contendo peroxidade5,7.
É uma síndrome rara, autossômica recessiva, que acomete o homem e outros mamíferos, resultando possivelmente da fusão dos grânulos lisossômicos primários e causando deficiência da morte bacteriana5.
Pode se apresentar sob duas formas distintas:
1) A forma clássica da infância com infecções recorrentes e risco de morte precoce ou com a fase acelerada hemofagocítica.
2) A forma rara, do adulto, com alterações neurológicas similares ao parkinsonismo, demência, degeneração espinocerebelar e neuropatia periférica sem maior susceptibilidade à infecção.
Por que a síndrome de Chediak-Higashi está classificada entre os defeitos metabólicos hereditários?
Os defeitos hereditários da função plaquetária compreendem alterações nos receptores de membrana ou nas organelas intracelulares das plaquetas.
Os distúrbios do armazenamento plaquetário como a síndrome de Chediak-Higashi se caracterizam por alterações nos grânulos ou em seus constituintes. Em algumas síndromes ou doenças, a lesão molecular é extensiva a outras células.
As granulações plaquetárias são classificadas em α e δ1.
Quais os constituintes dos diferentes grânulos plaquetários e que síndromes ou doenças estão associadas a sua deficiência?
Os grânulos α armazenam proteínas sintetizadas pelos megacariócitos ou endocitadas do plasma. São proteínas que atuam na adesão plaquetária (fator de Von Willebrand, P-selectina, fibronectina e fibrinogênio), fatores da coagulação (fatores V e XIII), fatores de crescimento (fator de crescimento derivado da plaqueta, fator de crescimento e transformação β) e fator plaquetário-4. Entre as síndromes que apresentam deficiência exclusiva de granulações α, temos a síndrome da plaqueta cinzenta, a síndrome de Quebec e a artrogripose1.
As granulações δ, conhecidas como corpos ou grânulos densos, contêm cálcio, ADP, ATP, serotonina, epinefrina e histamina. As síndromes de Hermansky-Pudlak, de Chediak-Higashi e de Griscelli são causadas pela deficiência exclusiva de grânulos δ.
A síndrome de Wiskott-Aldrich, a trombocitopenia ligada a X e a anemia diseritropoiética congênita com trombocitopenia ligada a X apresentam deficiência de ambos os tipos de granulações (α e δ)1.
A síndrome de Chediak-Higashi é causada por mutações no gene LYST/CH1 no cromossoma 1q42-44. Esse gene codifica a síntese da proteína LYST que regula o tráfego de material entre a rede trans-Golgi e os endossomas. Suas mutações causam alterações no transporte dos grânulos densos, melanossomas e lisossomas.
Por que o paciente apresenta albinismo e cabelos prateados?
As síndromes de hipopigmentação envolvem a pele, os cabelos e a íris.
O grau de hipopigmentação na SCH pode variar e as alterações oculares resultam de pigmentação ausente ou reduzida1. A liberação inadequada de melanossomas de dimensões exageradas para os queratinócitos e para os folículos pilosos explica os cabelos prateados e a pele mais clara que o esperado pela etnia familiar. A mesma anormalidade nos melanócitos leva ao albinismo óculo-cutâneo parcial com fotofobia8.
Cabelos prateados não são um achado exclusivo da SCH e também são observados na síndrome de Griscelli, Hermansky-Pudlak e na doença de Elejalde.
Quais as alterações imunológicas que ocorrem na SCH e quais os principais agentes etiológicos envolvidos nas infecções que esses pacientes apresentam?
A susceptibilidade aumentada às infecções pode ser atribuída a defeitos na citotoxicidade das células T, na função ou número de células naturais killer e na quimiotaxia dos granulócitos9. Os neutrófilos contêm lisossomas gigantes, com teor reduzido de enzimas proteolíticas, o que pode explicar a incapacidade microbicida destas células8.
As infecções recorrentes, principalmente de pele e trato respiratório, são comuns e são causadas geralmente pelo Staphylococcus aureus e Streptococcus β-hemolítico, micro-organismos gram-negativos, Candida e Aspergillus1,10. Infecções virais também têm sido descritas10.
Que alterações justificam a diátese hemorrágica?
As disfunções plaquetárias graves se associam principalmente com os defeitos nos receptores de membrana, mas as alterações na distribuição e número das granulações secretoras podem causar também sangramento significativo. A diátese hemorrágica decorrente de redução nos grânulos densos como ocorre na SCH é leve a moderada. Os pacientes exibem ausência da onda secundária da agregação plaquetária, aumento da razão ATP/ADP e captação diminuída de serotonina1.
O que é linfohistiocitose hemofagocítica?
A linfohistiocitose hemofagocítica (LHH), inicialmente denominada síndrome de ativação macrofágica primária11, é uma condição de hiperinflamação grave causada por uma resposta imune descontrolada e ineficaz2.
Engloba várias imunodeficiências primárias como linfohistiocitose hemofagocítica familiar (tipo 1 a 5), síndrome de Griscelli tipo 2, síndrome de Chediak-Higashi, síndrome linfoproliferativa ligada a X (tipo 1 e 2) e síndrome de Hermansky-Pudlak tipo 211. Os pacientes frequentemente apresentam sintomas neurológicos que aparecem no início da doença ou durante a evolução. Podem ser a única manifestação clínica e simular outros quadros como a encefalomielite aguda disseminada (ADEM) e vasculites. Alguns pacientes apresentam microcefalia congênita. Os sintomas neurológicos podem ser inespecíficos como convulsões, alterações da consciência e meningismo10.
O diagnóstico é baseado em critérios clínicos e laboratoriais. De acordo com a Hystiocyte Society (última revisão em 2007), são necessários cinco dos oito seguintes critérios: febre prolongada, esplenomegalia, função ausente ou diminuída de células naturais killer, anormalidades em duas ou mais linhagens de células sanguíneas, aumento dos níveis de triglicerídeos ou hipofibrinogenemia, dosagem aumentada de ferritina sérica, evidência de hemofagocitose na medula óssea sem características de malignidade e nível sanguíneo elevado de CD25 solúvel (sinal de ativação de célula T)2.
As enzimas hepáticas e a fibronectina podem estar aumentadas10.
Cerca de 85% dos pacientes com SCH apresentam a fase acelerada (linfohistiocitose hemofagocítica) na qual há uma proliferação descontrolada de linfócitos que infiltram vários órgãos10.
Essa fase pode simular o linfoma1,10. As manifestações hemorrágicas podem ser mais intensas devido à trombocitopenia e à disfunção hepática1.
A fase acelerada pode ocorrer logo após o nascimento ou após alguns anos. Leva frequentemente ao óbito12.
Numa série de casos, mais de 50% dos pacientes apresentavam ressonância magnética cerebral normal, mesmo quando sintomas neurológicos estavam presentes. Esses achados sugerem que a neuropatia seria secundária a efeitos citotóxicos de quimocinas e citocinas secretadas pelas células inflamatórias, precedendo a infiltração maciça de linfócitos T citotóxicos e macrófagos.
A presença de sintomas neurológicos agudos com achados normais na RM cerebral é incomum em outras doenças inflamatórias agudas do SNC e deve chamar atenção para a possibilidade de LHH.
Na mesma série de casos, em aproximadamente 33% dos pacientes a RM mostrava lesões de distribuição multilobar, bilateral ou simétrica, predominantemente periventriculares, justacortical, corticais ou cerebelares, poupando em geral o tálamo, os gânglios basais e o tronco cerebral.
É difícil prever a evolução neurológica, pois um número significativo de pacientes sintomáticos com ou sem ressonância magnética anormal evoluiu sem sequelas.
Neuropatias cranianas e periféricas, degeneração espinocerebelar e convulsões estão associadas aos infiltrados linfohistiocitários do SNC11.
Alterações cardiovasculares com risco de morte podem ser observadas na síndrome hemofagocítica, possivelmente como parte de um estado hiperinflamatório ou decorrente de um nível sanguíneo diminuído de ADP.
CONCLUSÃO
Independentemente dos grandes progressos tecnológicos, a anamnese e o exame físico continuam sendo ferramentas fundamentais na investigação clínica.
O albinismo óculo-cutâneo, embora possa ocorrer como manifestação isolada, em algumas síndromes está associado à imunodeficiência e infecções recorrentes.
O diagnóstico precoce da síndrome de Chediak-Higashi, como ocorreu no caso descrito, pode influenciar significativamente a sobrevida dos pacientes.
O transplante de medula óssea e/ou de células do cordão é indicado como tratamento definitivo.
É importante um alto grau de suspeição para estabelecer o diagnóstico, possibilitando que outras medidas terapêuticas de suporte e profiláticas sejam instituídas, resultando em melhor prognóstico.
REFERÊNCIAS
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1. Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
2. Médica pediatra. Hospital Federal dos Servidores do Estado. Rio de Janeiro, RJ
3. Medica pediatra. Ex residente do Nucleo de Estudos em Saude do Adolescente (NESA). UERJ. Rio de Janeiro, RJ