ISSN-Online: 2236-6814

https://doi.org/10.25060/residpediatr



Relato de Caso - Ano 2021 - Volume 11 - Número 2

Cetoacidose diabética em paciente pediátrico associada a COVID-19: relato de caso

Diabetic ketoacidosis in a pediatric patient associated a COVID-19: case report

RESUMO

A pandemia causada pela COVID-19 provoca doença que se manifesta através de sintomas gripais de leve à severa intensidade, até variadas apresentações clínicas, envolvendo diferentes órgãos e sistemas. Em pacientes pediátricos, a COVID-19 tem mostrado manifestações mais brandas em relação aos pacientes adultos. Os autores relatam neste artigo um caso que sugerem a cetoacidose diabética (CAD) como manifestação inicial da COVID-19, em paciente do sexo feminino de 13 anos de idade, previamente diagnosticada com diabetes mellitus tipo I, admitida em um pronto-socorro pediátrico com sintomatologia compatível com CAD, posteriormente testada positiva para o coronavírus. Discute-se, neste artigo, a importância de considerar a COVID-19 como causa de descompensação diabética na população pediátrica e a possibilidade dessa relação auxiliar na descoberta de novos mecanismos da doença.

Palavras-chave: Cetoacidose Diabética, Diabetes Mellitus Tipo 1, infecções respiratórias, Infecções por Coronavírus.

ABSTRACT

The pandemic caused by COVID-19 triggers a disease that manifests itself through flu-like symptoms from mild to severe, up to varied clinical presentations, involving different organs and systems. In pediatric patients, COVID-19 has shown milder manifestations compared to adult patients. The authors report in this article a case that suggest diabetic ketoacidosis (CAD) as the initial manifestation of COVID-19, in a 13-year-old female patient, previously diagnosed with type I diabetes mellitus, admitted to a pediatric emergency room with symptoms CAD compatible, later tested positive for COVID-19. This article discusses the importance of considering COVID-19 infection as a cause of diabetic decompensation in the pediatric population and the possibility of this relationship helping to discover new mechanisms of the disease.

Keywords: Diabetic Ketoacidosis, Diabetes Mellitus, Type 1, Coronavirus Infections.


INTRODUÇÃO

A pandemia causada pelo COVID-19 provoca doença que se manifesta através de sintomas gripais de leve à severa intensidade, até variadas apresentações clínicas, envolvendo diferentes órgãos e sistemas1,2. Em pacientes pediátricos, a COVID-19 tem mostrado manifestações mais brandas em relação aos pacientes adultos3.

Diversos estudos têm mostrado maior impacto da doença em pacientes com comorbidades crônicas, incluindo diabetes mellitus4. O diabetes é uma das comorbidades mais comumente relatadas em pacientes com COVID-19, estando associado a um aumento do risco da infecção grave. Foram observadas complicações metabólicas graves do diabetes mellitus como a cetoacidose diabética e hiperosmolaridade, demandando altas doses de insulina excepcionalmente utilizadas1,3. Estes pacientes requerem internação em terapia intensiva e/ou uso de ventilação mecânica invasiva e estão associados a altas taxas de mortalidade. Apresentam desafios no manejo clínico e sugerem fisiopatologia complexa do diabetes mellitus associado à COVID-194. Observou-se que o vírus causador da COVID-19 se liga a receptores da enzima conversora da angiotensina-2, localizados em tecidos como adiposo, intestino e pâncreas, nas células B-pancreáticas. Deteriora o equilíbrio glicêmico e promove a ocorrência de complicações metabólicas, como a cetoacidose4,5.

É crescente aumento do número de casos de diabetes, obesidade e distúrbios metabólicos da população pediátrica ao redor do mundo nos últimos anos. Desta forma, em cenário de pandemia, torna-se relevante considerar também a COVID-19 como causa de descompensação diabética na população pediátrica2,6.

Em cenário de pandemia, torna-se relevante considerar a COVID-19 como causa de descompensação diabética na população pediátrica e essa relação poderá auxiliar na descoberta de novos mecanismos da doença.


MÉTODOS

Apresentação de um caso de cetoacidose diabética associada à infecção causada pelo SARS-CoV-2 em paciente de 13 anos de idade, com diagnóstico prévio de diabetes mellitus tipo 1. Para o relato do caso foram utilizados dados do prontuário da paciente.

O estudo foi aprovado pelo comitê de ética e pesquisa da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde/FEPECS, CAAE: 38618620.8.0000.5553.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 13 anos de idade, peso 53kg, com diagnóstico prévio de diabetes mellitus tipo 1 há um ano, sem acompanhamento regular em ambulatório de endocrinologia pediátrica. Procurou serviço de pediatria com queixa de vômitos e desconforto respiratório iniciados há 3 dias. Relato de contato com sua mãe, que estava com sintomas de COVID-19 há 7 dias.

Faz uso habitual de insulina NPH (23 unidades pela manhã e 13 unidades a noite), insulina regular (3 unidades no café da manhã, 6 unidades no almoço e 4 unidades no jantar) e correções a partir de 140mg/dl de glicemia, com fator de sensibilidade de 40. Realizou apenas uma consulta pelo serviço público desde o diagnóstico, limitando com isso as informações com relação aos valores de hemoglobina glicada (AC1) prévios.

Ao exame físico encontrava-se em grave estado geral, hipocorada, desidratada (+/++++), com respiração de Kussmaul, ausculta respiratória sem alterações, saturando 97%. Apresentava-se sonolenta, reativa, sinais meníngeos ausentes, escala de coma de Glasgow 14, além de fraqueza em membros inferiores. No momento da admissão foi realizado glicemia capilar (HI), cetonúria em fita (++) e gasometria arterial (pH=7.047, potássio de 5.1 e bicarbonato de 6.3). Feito o diagnóstico de cetoacidose diabética grave, iniciado tratamento, guiado pelo protocolo de CAD da FAMERP11 (Anexo 1) e coleta de RT-PCR para SARS-CoV-2. Permaneceu instável durante toda a madrugada.

Após 12 horas da admissão, paciente apresentou-se com vômitos, taquicardia e respiração de Kussmaul, onde foi feito nova expansão volêmica a 20ml/kg/h com soro fisiológico 0,9%, mantido insulinoterapia em bomba de infusão contínua na dose de 0.1UI/Kg/h, colocada em máscara não reinalante a 10litros/minuto. Após 1 hora, mesmo diante das medidas iniciais para controle, paciente persistiu com piora do padrão respiratório e da cetoacidose diabética (pH=6.89, bicarbonato de 5.1), sendo optado por intubação orotraqueal, acoplada à ventilação mecânica (parâmetros: FIO2 100%/PI: 19/TI: 1,02/PEEP: 6/MODO A/C/FR: 15 : RELAÇÃO 1:2,8) e acesso venoso profundo em subclávia direita. A pressão arterial era 104x46mmHg. Laboratório com as seguintes alterações: hemograma com 33.600 leucócitos, sendo 80,1% neutrófilos, 8% bastonetes, 0.1 % eosinófilos e 14.5% linfócitos. Foi prescrito ceftriaxona 4g/dia até resultado da hemocultura, 12h após, que foi negativa.

Paciente seguiu estável hemodinamicamente durante 10 horas, sob sedoanalgesia, sem necessidade de drogas vasoativas, sendo monitorada a glicemia capilar, gasometria e ajustadas doses de insulina, reduzindo vazão para 0.05UI/Kg/h. Realizada transferência para unidade de terapia intensiva após 24 horas de internação. Evoluiu com boa resposta clínica e melhora dos níveis de pH e HCO3-, sendo iniciada após 4 dias de tratamento a administração de insulina subcutânea, optado por glargina e insulina ultrarrápida devido à gravidade do quadro. A alta hospitalar seguiu-se à melhora do estado geral e à normalização dos exames laboratoriais, 7 dias após a internação, com cetonúria negativa e encaminhamento para ambulatório de endocrinologia pediátrica, onde mantém seguimento. Os controles de hemoglobinas glicadas (AC1) da paciente, durante o seguimento ambulatorial após a internação, estão listados no Gráfico 1.


Gráfico 1. Valores de hemoglobina glicada da paciente.



O resultado do RT-PCR para SARS-CoV-2 coletado nas primeiras 24 horas de doença foi positivo.

Na Tabela 1, são apresentados os exames laboratoriais realizados pela paciente, as datas e seus respectivos valores de referência.




COMENTÁRIOS

Durante os estágios iniciais da pandemia de COVID-19, os hospitais de Londres relataram um número acima do habitual de pacientes com COVID-19 desenvolvendo cetoacidose diabética, estado hiperosmolar, hiperglicêmico ou uma combinação de ambos. Frequentemente, eram necessárias doses muito altas de insulina para controlar a hiperglicemia. Foi proposto que esses distúrbios metabólicos pudessem resultar de severa resistência à insulina combinada com diminuição da secreção de insulina devido à disfunção das células beta7.

Para o paciente pediátrico diabético, a associação com patologias imunes que elevam a glicemia, é maior o risco de infecção e gravidade. A presença de infecção eleva ainda mais a glicemia e aumenta o risco de complicações, como CAD. A cetoacidose é a principal complicação aguda do Diabetes Mellitus (DM), podendo ser a manifestação inicial do DM tipo 1. Os fatores precipitantes mais comuns são infecções e uso inadequado da insulina8.

Em estudo realizado com dois pacientes moradores da Califórnia, portadores de diabetes mellitus tipo I, ambos foram tratados de maneira eficaz, por telessaúde, apesar do maior risco de cetoacidose diabética (CAD). Os dados compartilhados de glicose facilitaram ajustes frequentes da dose de insulina, aumento da ingestão de líquidos e carboidratos, e impediram internações nos dois casos. A presença do COVID-19 forçou mudanças dramáticas nos serviços de saúde, algumas das quais melhoraram o acesso e os resultados para os pacientes com diabetes. É possível que essas medidas possam evoluir para proporcionar melhorias significativas para os pacientes portadores de diabetes mellitus tipo I e prevenir a CAD9.

Em relato de dois casos de CAD, os autores sugerem a cetoacidose diabética (CAD) como manifestação inicial da COVID-19 em duas pacientes previamente hígidas, uma de 11 anos e outra de 9 anos de idade, admitidas com CAD, posteriormente testadas positivas para COVID-19. Enfatiza-se a importância de considerar a COVID-19 entre as possíveis causas infecciosas de descompensação da diabetes em crianças e adolescentes10.

Diante de um paciente pediátrico diabético em descompensação, é importante atentar para a rápida evolução para CAD e a possibilidade de associação à COVID-19. É importante avaliar as opções de tratamento, lembrando que a escolha do protocolo de tratamento deva ser sempre a melhor opção para o paciente4.


CONCLUSÃO

Sabe-se que infecções, em geral, levam mais frequentemente a cetoacidose diabética (CAD) em pacientes não aderentes como este, do que aqueles com boa adesão. E, devido a rápidas mudanças nas condições de pacientes pediátricos, a CAD em período de pandemia, por sua possível associação com a COVID-19, deve ser enfatizada durante o tratamento. É importante seguir o protocolo do serviço, fazer o diagnóstico precoce e utilizar tratamento correto, a fim de evitar complicações e garantir a segurança dos pacientes pediátricos, além de promover a recuperação precoce dos mesmos.

Assim, salienta-se a necessidade de publicação de mais estudos multicêntricos nacionais ou internacionais para elucidação da relação da COVID-19 e diabetes mellitus tipo 1.


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Hospital regional de Ceilândia/SES/DF, Pediatria - Brasília - Distrito Federal - Brasil

Endereço para correspondência:
Alessandra Ribeiro Ventura Oliveira
Hospital Regional de Ceilândia - HRC
QNM 27 Área Especial 1, QNM 28 - Taguatinga
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E-mail: a.oliveira53@gmail.com

Data de Submissão: 18/04/2021
Data de Aprovação: 19/07/2021